Forma escolar é um conceito que aparece no fim dos anos 1970, na França, em trabalhos conduzidos de uma perspectiva sócio-histórica, visando compreender como, na Idade Moderna, estrutura-se um determinado projeto político-pedagógico, rompendo, assim, com uma historiografia presa a etimologias, à hagiografia, a uma concepção teleológica de educação. A forma escolar é compreendida como uma configuração sócio-histórica particular que se constrói a partir do século XVI, nas sociedades europeias, ligada a uma reorganização do campo político e religioso, à instauração de uma ordem urbana, que exigia o estabelecimento de novas formas de relação social entre sujeitos de diferentes grupos sociais, a aprendizagem de formas de exercício do poder. (Vincent, Lahire e Thin, 1994).
Essa configuração escolar se organiza, sobretudo, pela construção de um espaço escolar e de um tempo escolar, estruturados pela linguagem, pela cultura do escrito, que começava a se impor em detrimento da oralidade. A Escola passa a ocupar um espaço específico, distinto do espaço ocupado para a realização de outras práticas sociais como as familiares, as religiosas; e vai se estruturar em torno de um projeto pedagógico (e político), sustentado pela existência de saberes objetivados, que alteram os processos de transmissão do saber, da divisão do trabalho.
A forma escolar institucionaliza, pois, via uma instituição específica e autônoma, a transmissão de conhecimentos organizado em conteúdos, currículos, disciplinas, métodos, materiais, produzindo um saber-fazer próprio: uma escola graduada e organizada por classes de alunos com o mesmo nível de conhecimentos e competências, com avaliações regulares, visando à inclusão de toda população em uma sociedade dada, regida pelo jurídico e pela moral. Um professor ensinando as mesmas coisas, ao mesmo tempo, para a mesma classe.
Organiza-se também, o tempo como horário, a partir do qual se estabelece o dia-a-dia escolar e, consequentemente, o da família, o do trabalho, nas cidades: frequência, pontualidade, assiduidade. Um percurso do ensinar-aprender se configura assentado em um tempo da vida, distribuído em etapas, em classes, em séries, em anos de escolarização. Um tempo que transcorre entre a tradição a transmitir e o novo a emergir entre diferentes gerações: a do mestre que ensina e a da criança e jovem que aprendem.
Nesse processo, transforma-se a criança, o aprendiz, em aluno, ou seja, constitui-se uma posição de sujeito: a do sujeito urbano escolarizado; bem como a de sua contraparte necessária, a de sujeito professor, que ensina, através de um sistema de regras relativas a saberes e a comportamentos. A escolarização das crianças nos centros urbanos torna-se, pois, um empreendimento de ordem pública, que cria condições para que o sujeito saiba viver na cidade e se submeta, livremente, ao Estado. Não uma submissão a pessoas, mas a regras comuns para todos no cotidiano escolar, pautadas por uma razão universal (Vincent, Lahire e Thin, 1994).
Mas, como não há ritual sem falhas (Pêcheux, 1990), as diferentes formas, que essa configuração vai adquirindo ao longo da história, evidenciam que os sujeitos resistem a essa domesticação e controle do espaço e do tempo, em um trabalho contraditório entre repetir e transgredir as regras, entre o conhecido e o desconhecido, entre o mesmo e o diferente, entre a paráfrase e a polissemia, criando condições para simples reformas ou para transformações estruturais.
Essa forma escolar, móvel e dinâmica o suficiente para permanecer, constrói marcas espaciais e temporais na tessitura da memória individual e social.
A forma escolar de socialização é forte porque tende - até pela força subjetiva da memória a captar todos nós. De alguma maneira, mesmo os estudantes universitários, dispostos em salas de aula, costumam ocupar – quase invariavelmente – os mesmos lugares onde haviam se sentado no dia anterior, na semana anterior, no mês anterior, nos anos anteriores. Embora ninguém lhe houvesse prescrito um local específico obrigatório para sentar-se, o jovem universitário incorporou de tal maneira, a “forma escolar de socialização” (Vincent, 1994), que, não raro, podem-se se observar amizades feitas e mantidas (por vezes feitas e mantidas durante todo o período de vigência de cursos de graduação) entre dois indivíduos que, por mero acaso, sentaram-se juntos, pela primeira vez, no primeiro dia de aula; e mantiveram-se juntos, distantes dos que deles estavam sentados longe... (Boto, 2003, p. 385).
No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, é que se inicia a construção de uma configuração histórica particular em termos de processo de institucionalização da escola primária, considerando “um espaço físico-arquitetônico e as temporalidades múltiplas nela vivenciadas” (Faria Filho & Vidal, 2000, 21). (Ver Grupo escolar)
A forma escolar tem uma historicidade a compreender, a significar, quando se estuda a história da educação, os processos de escolarização de uma Nação. O conhecimento, o espaço e o tempo não são neutros e transparentes, indiferentes à conjuntura social e política, a uma exterioridade que produz as demandas para a educação. Podemos dizer, então, que ela é uma forma material que toma o discurso pedagógico, definido como “efeito de sentidos entre locutores” (Pêcheux, 1990a).
Referências bibliográficas
BOTO, C. A civilização escolar como projeto político e pedagógico da modernidade: cultura em classes, por escrito. In: Cad. Cedes, v. 23, n. 61. Campinas, dez, 2003, 378-397. Disponível em : http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 10.09. 2014.
FARIA FILHO, L. M & VIDAL, D. G. Os tempos e os espaços escolares no processo de institucionalização da escola primária no Brasil. In: Revista Brasileira de Educação, n. 14. Mai/Jun/Jul/Ago 2000, 19-34. Disponível em : http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n14/n14a03 . Acesso em novembro de 2014.
PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Trad. José Horta Nunes. In: Cadernos de Estudos Linguisticos, n. 19. Jul./dez. 1990, 7-24.
PÊCHEUX, m. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. & HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani et al. Campinas, SP : Editora da Unicamp, 1990a, 61-162.
VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sur l’histoire et la théorie de la forme scolaire. In; VINCENT, GUY (Org.) L’Éducation prisonnière de la forme scolaire? Scolarisation et socialisation dans les societies industrielles. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994, 11-48.