Na literatura, especialmente nas crônicas (em Sérgio Porto, Luis Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes e muitos outros), encontramos vários sentidos do urbano no dia-a-dia. Pensemos, por exemplo, na noção de “transporte”: nas crônicas nos deparamos com sujeitos que realizam percursos, a pé ou com algum meio de transporte, entre a casa e o trabalho, a casa e o lazer ou transitando pelo espaço público. A cidade aí não funciona tão bem como prevêm os discursos de organização: há condições precárias, há atrasos, há incompreensão na leitura dos itinerários, há acidentes, empurrões, indiferença etc. E há também situações inusitadas, costumes singulares, personagens típicos, gentileza e indiferença, conflito e convívio entre diferentes.
Na crônica “Estrada de Ferro-Leblon”, de Paulo Porto, escrita em 1954, notamos por contraste com a atualidade como a “quantidade” era significada no transporte: “Este é o meu itinerário de muitos anos. Já o fiz de ônibus, nos bons tempos em que só valia viajar sentado. Depois veio a ordem para os oito em pé, e lá viemos nós – os do ônibus – a compartilhar com um número maior de almas irmãs os solavancos sortidos que a prefeitura proporcionou aos moradores desta cidade, através de seus bem cuidados buracos. Mas, lá um dia, um sábio qualquer, das chamadas classes dirigentes, fez cair a portaria dos oito em pé. O oito caiu, ficou deitado, e como um oito deitado é o símbolo do infinito, nasceu a suposição de que, nos ônibus, há sempre lugar para mais um.”. Da obrigação de viajar sentado aos ônibus lotados de hoje, e mais ainda aos “surfistas ferroviários”, vemos os sentidos do excesso tomar lugar no transporte público.
Na atualidade, os meios de trransporte se proliferaram, mas os transtornos aumentaram em uma cidade que privilegia o automóvel e o transporte individual. Em uma crônica denominada o “sem-carro”, um desses neologismos provisórios do cotidiano, a escritora e jornalista Vanessa Bárbara (2014) descreve percursos realizados por esses sujeitos que “precisam tomar duas conduções, seguidas de um trem (com baldeação), uma van clandestina, uma carona na rabeira de um caminhão, e um trecho de paralelepípido vencido a pé, totalizando um percurso que leva, em média, uma hora e quarenta minutos”. O vocabulário a partir dessa posição de quem utiliza transporte urbano é extenso: itinerário, linha, fila, coletivo, autofóbico, ladeira, sacolejo, corredor de ônibus, terminal, etc.
As crônicas urbanas nos pemitem observar a relação dos sujeitos com a cidade, com os meios de transporte, com a alteridade no espaço público, saindo dos percursos pré-estabelecidos e dos sentidos estabilizados da organização urbana.
Bibliografia
BÁRBARA, Vanessa. O sem-carro. In: O Louco de Palestra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
PORTO, Sérgio. O Homem ao Lado – crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.