Os sentidos de utopia transitam entre a negação de um lugar e o desejo de um lugar ideal, imaginário, fantástico, impossível, futuro, entre outros. A utopia trabalha a discrepância entre real e imaginário, produzindo efeitos diversos: de refúgio, de felicidade, memória, bem estar, futuridade, transformação. Em relação à cidade, a República de Platão (por volta de 380 a.C.) é comumente apontada como uma das primeiras utopias: a da “cidade-estado”, com base em uma “sociedade ideal” (formada por reis-filósofos, guardiões e cidadãos) e a busca da “justiça” e do “bom governo”.
Na Idade Média, em seguida ao saque de Roma pelos visigodos, Santo Agostinho (354-430) escreve “A Cidade de Deus” (410 a 426 d.C.), distinguindo Cidade Celeste (“Civitas Dei”) da Cidade Terrestre (“Civitas Diaboli”), em uma disputa entre cristianismo e paganismo que aponta para o “reino dos céus” como vida após a morte.
No Renascimento, após o encontro com o Novo Mundo e os vários relatos daí resultantes, uma série de utopias têm lugar. Dentre elas, destaca-se inicialmente a de Thomas More (1478-1535), denominada Utopia, publicada originalmente em 1516, em latim. Nessa obra, More descreve a “Ilha da Utopia”, que se estende por 320 quilômetros e compreende 54 cidades, sendo a principal delas Amaurota, uma cidade em que todos falam a mesma língua e respeitam as mesmas leis, não há propriedade privada e são efetuadas trocas ente cidade e campo, tendo em vista o bem-comum.
Muitas outras utopias se seguiram, acompanhando as transformações sócio-históricas. Tivemos os falanstérios de Charles Fournier (1772-1837), grandes edificações que abrigavam uma cooperativa de famílias com serviços coletivos organizados; a Cidade-Jardim (1898), de Ebenezer Howard (1850-1928), uma comunidade autônoma rodeada por um espaço verde entre a cidade e o campo; a que se apresenta no romance “A Utopia Moderna” (1905), do escritor britânico H. G. Wells (1866-1046), em que os moradores de uma cidade utópica perfeita a abandonam.
No século XX, as utopias tiveram períodos de ápice e de desilusão. A Cidade Radiosa (“Ville Radieuse”) de Le Corbusier (1887-1965), foi um projeto de 1924, não realizado, que teve seus princípios inseridos na Carta de Atenas (1933), como resultado de um encontro de arquitetos e urbanistas em 1933, na Grécia, que tratou da “cidade funcional”. Dentre os direcionamentos adotados pela Carta estão a divisão do espaço da cidade conforme suas “funções” (“habitação”, “trabalho”, “transporte” e “lazer”) e a separação das vias de pedestres das vias de automóveis. Uma das marcas da arquitetura de Le Corbusier é a Unité d’Habitation (Unidade de Habitação), um edifício construído sobre a base de pilotis no pavimento térreo, com fachada livre, horizontal, racional, modulado, pré-fabricado, construído com conreto armado. Tais princípios influenciaram fortemente os arquitetos Lúcio Costa (1902-1998) e Oscar Niemeyer (1907-2012) na construção de Brasília (1956-1960), cujo projeto foi o que levou mais adiante os preceitos da Carta de Atenas.
Mas o último quartel do século viveu um desencanto com as utopias e suas consequências urbanísticas, bem como com os efeitos da industrialização e da racionalidade técnica. Assim, as utopias re-encontram o real que do qual elas se apartam, fazendo emergir outros sentidos no movimento da história.
Bibliografia
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