Ao analisar uma série de dicionários de língua portuguesa, notamos que a palavra arruaça está presente no dicionário Aulete (1881), mas não em outros dicionário que o antecederam. Além disso, tal palavra se insere em uma série lexical de derivados de rua que se constituiu desde o dicionário de R. Bluteau (1712-28): ruão (o cidadão, habitante da cidade), arruar (apartar em ruas), arruado (separado em ruas) e arruador (“valentão”). Em quê arruaça se difere dos anteriores dessa série?
Ruão e arruador nomeiam sujeitos urbanos; arruar e arruado nomeiam práticas urbanas: o verbo no infinitivo (arruar) pode ser remetido a uma prática: dividir as ruas, enquanto o verbo no particípio (arruado) indica essa prática já realizada em um passado. Mas arruaça nomeia uma 'acontecimento', algo que ocorre na rua, e não um sujeito ou uma prática. Trata-se de um acontecimento que interrompe a organização da cidade, uma espécie de desordem urbana. É interessante notar que a palavra arruador (valentão) se apresenta também em Aulete e não nos dicionários anteriores da série. Arruador é bem o “sujeito” da arruaça. Desse modo, sujeito e acontecimento da desordem irrompem ao mesmo tempo no espaço urbano desenhado pelo dicionário.
A palavra arruaça nos interessou, enfim, por indicar um novo sentido na série que se formava desde o dicionário de R. Bluteau (1712-28), o do acontecimento urbano conflituoso: a rua passa a ser significada como lugar perigoso pela possibilidade de acontecimentos vistos como desordeiros.
O fato de arruaça significar um acontecimento de desordem pode igualmente ser analisado considerando-se os silêncios (ORLANDI, 1992) que uma palavra produz. Observamos nos verbetes dos derivados de rua que outros acontecimentos que poderiam ser ditos no dicionário não o são são. É o caso dos encontros, dos rituais, das reivindicações, das manifestações políticas, das festas. E esses acontecimentos não são possíveis de serem contemplados em arruaça a não ser sob a forma da desordem.
Essa nos parece uma marca pertinente para se compreender como o discurso sobre a cidade é constituído no dicionário: o modo como os acontecimentos do espaço público são ditos pelas palavras não somente faz diferença, mas também silencia o real da cidade.
Bibliografia
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa: Colégio das Artes da Companhia de Jesus. 1712-1728.
CALDAS AULETE, Francisco Julio. Diccionario Contemporaneo da Língua Portuguesa. Lisboa: Parceria Antônio Maria Pereira, 1881.
FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: A Noite, 1939-44.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.