Santidade é um dos nomes de lugares em que se formam aglomerações nos limites entre o que é aceito ou não para fazer parte da cidade. São aglomerações que fogem do controle da cidade, mas ao mesmo tempo estabelecem relações com ela. Outras nomeação dessa série são mocambo e quilombo, enquanto agrupamento de negros, e mais recentemente poderíamos incluir a nomeação favela.
No caso de santidade, que é um nome menos divulgado (ele não está presente no dicionário Aulete Digital 2015), trata-se de uma aglomeração de índios e negros, de que temos notícia por meio de relatos sobre o Brasil da Época Colonial. Vejamos esta sequência do Livro que dá Razão do Estado do Brasil, de 1612:
“Por êste caminho fica cheio o Estado de veios de piedade, debaixo dos quais desaparecem muitas rendas à Fazenda de Sua Majestade, que sem dúvida lhe podem dar os índios, e muitas fazendas que, com suas ajudas, sendo gerais, podem aumentar-se aos brancos, evitando-se, com o cumprimento da dita lei, que se dilatem mocambos entre os negros, ou juntas de fugidos a que chamam Santidades, e outros males que em toda esta costa vimos derivados da doutrina que eles (como incapazes), mal aprendem, ou mal lhes ensinam seus tutores, sem a presença dos capitães leigos” (MORENO, 1612, p. 110-111)
“Tem esta capitania algumas aldeias de índios da terra a cargo dos padres da Companhia, na forma que costumam; também um morador, que vive na Cachoeira, tem algum gentio, que de tempos passados juntaram seus antecessores e se conserva na posse da administração deles, e quando importa acode com duzentos frecheiros, e faz rosto a uma ladroeira, que está da banda daquele sítio quarenta léguas ao sertão, que chamam santidade, em que se recolhem índios e escravos fugidos; e hão crescido tanto que é negócio de consideração e de que se tem dado parte a Sua Majestade.” (MORENO, p. 154-155)
“estão os índios tão mimosos e tão pouco práticos no uso de nossa justiça e obediência, que logo se vão ao mato, onde fazem, como dito é, abomináveis vivendas e ritos, juntando-se com os negros de Guiné também fugidos” (MORENO, p. 113)
Diferentemente dos mocambos, que reúnem somente negros, as santidades reúnem “juntas de fugidos”, “índios e escravos fugidos”. Essas aglomeraçõe ou “vivendas”, vistas do ponto de vista do colonizador, do senhor de engenho, são consideradas como “males”, “desordens”, “ladroeira”, a evitar e a combater, tendo em vista o povoamento dos brancos, a escravidão de índios e negros e o aumento da riqueza para os reinos.
Segundo H. Viana, organizador e comentador, em 1955, desse texto do século XVII,, as santidades são “reuniões de início exclusivamente indígenas, depois com a participação de brancos e negros, em curioso sincretismo” (MORENO, 1612, p. 110). O sincretismo está marcado no relato pela menção aos “ritos” que ali se davam.
A palavra santidade, como vimos, participa dos dicursos de formação de algumas cidades brasileiras desde a Época Colonial. Índios e negros se uniam para fugir da escravidão, compartilhando vidas e rituais, nesse momento em que as primeiras cidades eram, conforme P. Santos. de “afirmação de posse e defesa da costa e cidades do litoral em geral” (SANTOS, 2008, p. 83).
Temos aí uma memória da cidade, com indícios de uma divisão dos espaços citadinos, em que alguns lugares, sujeitos e aglomerações são excluídos dessa organização, ao mesmo tempo em que resitem a ela.
Bibliografia
AULETE DIGITAL – O DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: http://www.aulete.com.br. Acesso em 17 de março de 2015.
MORENO, D. de C. Livro que dá Razão do Estado do Brasil – 1612. Edição crítica com introdução e notas de Helio Vianna. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955.
SANTOS, P. Formação das cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Iphan, 2008.