A locução “população em situação de rua” surge como um termo da política pública nacional que incide sobre sujeitos situados no espaço público, especialmente aqueles considerados de “extrema pobreza” e como “população móvel”. Tal população não é contada no censo regular do IBGE, visto que esta considera a população de moradia fixa. Uma contagem especial foi elaborada e utilizada para a "Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua" (GOVERNO FEDERAL, 2008), concebida por um “Grupo de Trabalho interministerial" que envolve diversos ministérios (o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o das Cidades, o da Educação, o da Cultura, o da Saúde, o da Educação, o da Cultura, o da Saúde, o do Trabalho e Emprego, o da Justiça), a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Defensoria Pública da União. Quanto à sociedade civil, participaram o Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), a Pastoral do Povo da Rua e o Colegiado dos Gestores municipais da Assistência Social (CONGEMAS). Com apoio em alguns especialistas, são apontados fatores que propiciam a “reprodução do fenômeno população em situação de rua”, dentre os quais a "desigualdade social”, o “sistema capitalista de trabalho assalariado”, a “pobreza extrema”, a “ruptura de relações familiares e afetivas”, a “ruptura total ou parcial com o mercado de trabalho”, a “não participação social efetiva”, “fatores estruturais (ausência de moradia, inexistência de trabalho e renda, mudanças econômicas e institucionais de forte impacto social etc.) e fatores biográficos (alcoolismo, drogadição, rompimentos dos vínculos familiares, doenças mentais, perda de todos os bens, etc. além de desastres de massa e/ou naturais (enchentes, incêndios, terremoto, etc.)”. Após essa abordagem científica, o texto da Política Nacional apresenta uma “caracterização da população em situação de rua”:
A população em situação de rua é composta, em grande parte, por trabalhadores: 70, 9% exercem alguma atividade remunerada. Destas atividades destacam-se: catador de materiais recicláveis (27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1 %). Pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência apenas 15,7 % das pessoas. Estes dados são importantes para desfazer o preconceito muito difundido que a população em situação de rua é composta por "mendigos" e "pedintes". Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem minoria. (GOVERNO FEDERAL, 2008, p. 8).
grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de moradia convencional regular. São pessoas compelidas a habitar logradouros públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para pernoitar. (Idem)
A primeira definição apresenta uma distinção entre trabalhadores, de um lado, e mendigos e pedintes, de outro, contrariando a visão de que estes últimos seriam predominantes. Nessas circunstâncias, a presença dessa população no espaço público é considerada provisória ("em situação de rua"), sendo que a “rua” aparece como um lugar a ser deixado (em direção à família e à moradia regular), de maneira que o morador de rua seria aí um contra-senso, daí também o uso da palavra sem-teto. Considere-se também a nomeação trecheiro, que indica grupos que percorrem trechos no espaço urbano (em ruas, sinaleiros, praças públicas, viadutos) onde realizam atividades cotidianas (reuniões, alimentação, pequenos serviços, malabares, pernoite, etc.), as quais se tornam marcas de sua identidade urbana.
Conforme vemos em M. L. Silva, "No Brasil, no período entre 1995 e 2005, as mudanças no mundo do trabalho contribuíram para a formação de uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, aprofundaram as desigualdades sociais e a pobreza, deslocando as relações com o trabalho para o centro das determinações do fenômeno." (SILVA, 2009, p. 271). Com a desindustrialização e a “refuncionalização do trabalho” apontada pelo autor, surgem atividades formais ou informais, dentre as quais: vendedores ambulantes, catadores de materiais recicláveis, panfleteiros, artistas de rua, flanelinhas, limpador de parabrisas, engraxates, vigias de carro. O discurso administrativo configura, assim, um imaginário de sujeito produtivo: o espaço público como lugar de trabalho, e não de pedir esmolas ou estar ocioso. A Política Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua produz, assim, uma ampliação do sentido de trabalho (formal e informal) e ao mesmo tempo uma exclusão daquele que é “improdutivo” e “ocioso”, e, por generalização, do sujeito que caminha, encontra, convive ou pratica a caridade e a sociabilidade sem relação de trabalho, e daí o efeito segregador do par inclusão\exclusão no espaço público.
Referências bibliográficas
GOVERNO FEDERAL. Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua. Brasília: Governo Federal, maio de 2008. Disponível em: http://www.mds.gov.br/backup/arquivos/versao_da_pnpr_para_consulta_publica.pdf. Acesso em 24/11/2014.
ORLANDI, E. Apresentação. In: E. P. Orlandi (Org.). Discurso e Políticas Públicas Urbanas: a fabricação do consenso. Campinas: Editora RG, 2010, p. 5-9.
SILVA, M. L. L. Trabalho e População em Situação de Rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009, p. 271.