Resenha
Souza, Pedro de. Michel Foucault: o trajeto da voz na ordem do discurso. Campinas: RG Editores, 2009. 118 p.
Resenhado por:
Marcos Aurélio Barbai
Fabiana Claudia Viana Borges
Michel Foucault: o trajeto da voz na ordem do discurso é o mais recente livro publicado por Pedro de Souza, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, marcando sua importante e fecunda trajetória intelectual. Este trabalho, original e singular, um texto de investigação, pesquisa e de uma reflexão criteriosa, cuidadosa e crítica, oferece ao universo dos leitores ao qual se dirige, um lugar para pensar na voz “como realidade acústica independente de qualquer sistematicidade lingüística e semântica”, materializada no fazer autoral, na voz e na escrita de Michel Foucault. É partindo da premissa de que “ouvir Foucault não é como ler seus livros” (p. 41) que o autor não só pôde encontrar a voz na construção do sujeito e da linguagem como também ler Foucault, no corpo da escrita, atravessado pela voz.
O livro de Souza, publicado pela editora RG, no ano de 2009, está dividido em sete partes. Além do preâmbulo e do post-dictum, têm-se quatro capítulos, nomeados como se segue: o capítulo um “Quem Agora?”; o capítulo dois “O que Agora?”; o capítulo três “Como Agora?”; o capítulo quatro “Onde Agora?”; e as considerações finais, o “Ponto de Chegada”, intituladas “Quando Agora”.
A divisão do livro, cuidadosamente pensada, permite ao leitor adentrar no universo do trabalho, no movimento da análise, seja ela a dos fragmentos da textualização oral ou da escrita de Michel Foucault. O que dá nome às partes do livro, como indica o autor, é uma alusão direta às primeiras linhas do romance O Inominável[1], de Samuel Beckett. Souza vê um tom becktiano no ritmo da escrita foucauldiana. Muito mais do que uma simples referência a Beckett, na divisão desse livro, há aí, certamente, circunscrevendo o corpo da obra aqui resenhada, um eco, uma voz anônima, proveniente de algum lugar na linguagem, guiando a escuta do autor, daquilo que ressoa, na ordem do discurso, da voz de Foucault em Beckett.
No Preâmbulo, em que temos a apresentação do livro, é possível observar os procedimentos e objetivos da pesquisa e a direção teórica e analítica da leitura do arquivo que configura o material de trabalho: o estudo da performance oral e escrita de Foucault, em alguns de seus cursos e entrevistas e na conferência escrita L’ordre du discours[2]. O foco de análise, como expressa o autor, é a voz de Michel Foucault nos vestígios que se pode escutar de sua escrita e nos registros de gravação de sua voz. Assim, o material de trabalho, sobretudo o sonoro, é constituído da pesquisa fonográfica que o autor realizou nos fundos Michel Foucault, na biblioteca do Instituto da Memória das Edições Contemporâneas (IMEC), na França.
Vale ressaltar ainda, nessa apresentação, o lugar em que a voz, objeto de reflexão e de análise, é abordada enquanto teoria e método, no entrecruzamento de enunciação e discurso como fatos de linguagem. Essa operação produz um lugar de consideração da voz que é singular na obra de Souza: buscar o trajeto da voz, não reduzida à forma sonora, mas considerando freqüências, intensidades, pitch. A voz incide, assim, no trabalho desse autor, como um instante que soa, linha de pura virtualidade, que “transporta e asperge, no ar que a ancora, fragmentos a desenhar múltiplas e disjuntas linhas de enunciação” (p. 14). Quando o foco da análise é o material escrito, o autor busca a contextura enunciativa da voz, que incide no corpo da palavra, a matéria sonora da qual ela é destituída. O autor convida, portanto, o leitor a ver a voz não do indivíduo Michel Foucault, mas a voz como um acontecimento enunciativo se singularizando no limiar da discursividade, espaço esse que não se restringe à fonetização.
No capítulo um, “Quem Agora?”, há toda uma elaboração de modo a articular a voz em Michel Foucault. A voz é abordada em uma dimensão política ética, que tem guiado a leitura que se faz da obra de Michel Foucault. Nessa direção, Souza considera a voz, não como lugar de uma presença individual, mas como “aquilo em que a voz se torna ao ressoar” (p. 19). A voz, tendo em vista que o sujeito se constitui enquanto faz uso dela, abre espaço para se escutar vozes ensurdecidas (ver a História da Loucura, em Foucault), do que não é articulável no sistema politicamente constituído da fala. A voz em Foucault irrompe assim como um lugar de desarticulação e subversão política. A voz, para ser analisada, em termos de enunciação, deve ser vista não em relação ao que articula a voz a uma ordem dos sentidos, mas como uma voz “que opera analiticamente sua colocação em abismo” (p. 34), incidindo na cadeia da fala, por conta da sua tessitura, a diferença em relação ao que se cristaliza e se arranja sintaticamente na superfície do enunciado.
As análises de algumas conferências de Foucault encontram-se no segundo capítulo, “O que Agora?”, que, preparadas para serem lidas (a condição de trabalho que lhe dava o Collège de France), têm em seu processo de constituição um hibridismo de escritura e oralidade. A isso se liga toda uma reflexão de modo a acolher e escutar, na obra de Foucault, o processo de construção de seu fazer autoral, no trajeto da voz, olhando para o ritmo, melodia, pausas, suspensão do sentido das palavras ditas e a se dizer. De fato, Souza busca o Michel Foucault autor constituindo-se no percurso que a voz realiza. Essa pesquisa é ancorada não só na vocalização, mas também na escritura do filósofo, o que permite ao autor observar o momento em que Foucault, em seus cursos, se permite “hesitar, se repetir, falar em círculos, bem como retornar, de diferente maneiras, idéias – para ele não muito claras” (p. 41-2), visto que Foucault se encontrava em um espaço “aberto entre ele, o sujeito falante e aqueles que o escutavam enquanto falava (p. 42)”.
Um trabalho como este empreendido por Souza faz com que a voz seja vista na prosódia que ela permite escutar, na sua regularidade rítmica, na inflexão enunciativa das curvas de enunciação, do ritmo que escapa da regularidade do fluxo da cadeia da fala. Assim, o ato de enunciar consiste naquilo que se colhe, em uma dada região discursiva, da singularidade da voz, do gesto do corpo da voz na enunciação. A obra escrita e falada de Foucault se constitui, dessa maneira, como um espaço em que a voz do filósofo, por conta da melodia e ritmo entoativo, abre um lugar para se escutar outras vozes. A voz entra aqui como um índice de subjetividade, lugar em que Foucault pode “invocar e evocar vocalizações espúrias no interior de sistemas controladores da fala” (p. 48).
É no terceiro capítulo, “Como Agora?”, que se estabelece um dispositivo analítico de modo a ler a voz nos escritos de Foucault. Há um investimento teórico buscando as condições de se escutar a voz mediante o tecido escritural que compõe um texto, restituindo, no fio da textualidade, o movimento pulsante que é o corpo da voz. Para isso, o autor tem como proposta um olhar voltado para a sintaxe “divorciada de qualquer logicidade” (p. 60). Esta pode vir a mostrar a voz movida por linhas de força desenhando curvas tonais. O autor elenca enquanto hipótese que a “cada inflexão no ritmo da escrita deve corresponder um movimento que, relativamente ao discurso que impulsiona a voz, põe em questão o estatuto do sujeito que enuncia” (p. 60-1).
A sintaxe é vista, por Souza, como um dispositivo lingüístico que determina o ritmo e dá forma vocal à enunciação. Para além do ponto de vista lógico da coordenação e da subordinação (a que a sintaxe é regida), as relações semânticas (que determinam o tom de cada seqüência frasal) são sintáticas sem ser de natureza gramatical. Entra aqui o ritmo do sentido, com a velocidade, balanceamento e síncope marcando os elementos que constituem o dispositivo rítmico da frase. É com base nesse dispositivo que o autor lê, de um modo muito interessante, o primeiro enunciado que compõe a aula inaugural de Foucault, no Collège de France (L’ordre du discours), apontando na estrutura sintática os indícios da tonalidade em que a voz do filósofo deve soar.
Em relação ao quarto capítulo, “Onde Agora?”, é possível encontrar todo um trabalho de leitura e também de análise de recortes da obra foucauldiana L’ordre du discours, em que a voz passa a ser pensada em relação à concepção de voz articulada pela psicanálise lacaniana. Ademais, é preciso reafirmar, de acordo com o autor, que não se trata da psicanalização de Michel Foucault através de seus ditos e escritos. A voz na perspectiva lacaniana, implica “no nome vinculado à voz” (p. 92). Nesse sentido, a voz não é apenas uma dimensão da ordem simbólica, manifestando a sistematicidade da linguagem, mas também lugar de uma presença subjetiva.
Ecoar a voz, no silêncio do oral, não é simplesmente o momento de constituição do sujeito em uma dada ordem discursiva, mas um processo “abismal [e] vigente na performance enunciativa, [...] no impulso de tomar e não tomar a palavra, [em que] incide o grito mítico que precede todo ato de fala na medida em que é lançado em meio a uma ordem, [...] que já o significa de antemão” (p. 82). De fato, está-se, aqui, frente ao dilema que expõe Lacan, ou seja, como sustentar o dito frente ao dizer que precede ao sujeito?
Nesse sentido, Foucault foi aquele, como destaca Souza, que sempre falou e escreveu para fazer ouvir discursos sem sujeitos. O trabalho foucauldiano se presta, assim, a ouvir vozes que permaneciam como restos na exterioridade do discurso. É por meio da voz de Foucault, em suas conferências e escritos, que outras vozes podem ser ouvidas e, como atesta o autor, “matizes vocais não perceptíveis pelos canais discursivos abertos para protocolar falas que se submetem ao controle das sociedades e discurso” (p. 101).
Com relação às considerações finais, designada no trabalho como “Ponto de Chegada”, o autor rememora, no trajeto de sua pesquisa, o encontro com a voz de Michel Foucault, apontando que a materialidade da voz, muitas vezes reduzida ao campo da fonação, é um “processo arruinado e afásico da articulação fonética” (p. 103), sendo este o lugar em que se pode encontrar a voz. Isso permite ao autor ver na obra de Foucault, pela marca da voz do filósofo, um lugar de “negação de articulação sistemática de linguagem e discurso que submete seu modo de ser ao ser da determinação, da imposição do Outro” (p. 104).
O livro é concluído com um “Post-dictum”, momento em que Souza, ao encerrar seu trabalho, sofre os efeitos de um percurso, de fato, aquele do trajeto que lhe levou a escutar a voz de Michel Foucault, em seu registro fonográfico e escrito. Este “Post-dictum” é o momento em que o leitor se depara com a imbricação sujeito/corpo, que ostenta a voz e a escrita de Michel Foucault, pois como ressalta o autor, “Foucault performatiza a luta entre falar no corpo e fora dele” (p. 109-10). É no corpo e não fora dele que a voz encontra o elemento que o sujeito se coincide consigo mesmo, em que a voz, o grito originário no nascimento de cada um, exerce o papel “de ator fundamental na construção do sujeito” (p. 112).
Ao entregar o livro ao universo de leitores, aqueles do campo das ciências humanas (sobretudo a lingüística, a filosofia), aos leitores de Foucault, aos leitores em geral, Souza produz justamente aquilo que a voz causa no processo de constituição do sujeito humano: um grito, um eco, que permite ao leitor, pela escrita do autor, trilhar na voz em Michel Foucault, a ordem peremptória do discurso.