Revista Rua


Resenha

ROCHA, Michel Zózimo. Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes. Porto Alegre: Edição do Autor, 2011. 170 p. Distribuição gratuita.[2]


Ana Godoy[1]

Ao receber o convite para fazer uma resenha para este número da Revista Rua recebi, também, a incumbência de escolher uma publicação que encontrasse alguma ressonância com os vários textos reunidos e com o filme (Narradores de Javé) que os mobiliza. Pareceu-me importante, ainda, que a escolha do livro a ser resenhado recaísse sobre uma publicação que dificilmente receberia uma resenha, não por sua pouca importância, mas por sua pouca visibilidade. Considerando a importância da Revista Rua no âmbito acadêmico e o vasto leque de pesquisas às quais se volta o Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Labeurb), ao qual pertence a Revista, me ocorreu que o livro que gostaria de resenhar seria de arte, voltado não só para a problematização da produção artística no presente, mas que tivesse como ponto de partida a própria ideia de publicação e sua importância em relação às práticas de escrita.

O convite coincidiu com o lançamento, em São Paulo, do livro Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes, escrito pelo jovem artista e doutorando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Michel Zózimo. O lançamento, organizado pela Casa Tomada[3], reuniu em torno do autor, do artista Fabio Morais[4] e da artista e professora da UFRGS Maria Ivone dos Santos, que participam do livro, um grupo de jovens artistas e não artistas interessados em conversar sobre as experiências nele reunidas. Experiências que vão desde propostas artísticas a projetos curatoriais que interrogam o espaço expositivo a partir de obras múltiplas, cuja ativação se dá pela leitura e pelo manuseio, isto é, obras e projetos que põem em cheque não somente o espaço expositivo, mas as noções de publicação, edição e circulação.

Convite aceito, livro encontrado. Restava somente dar conta da enormidade do desafio, que pouco tem a ver com sua extensão no papel: as resenhas devem ser breves, sob pena de reescreverem um livro cuja singularidade é ter sido escrito por outro ou outros.

Ater-se à singularidade de uma escrita, parece-me responder pelo caráter desafiador de uma resenha, pois exige estar atento ao campo que ela esboça; ao modo como o percorre enfrentando os diferentes obstáculos; os desvios que cria; as passagens que abre; o que abandona pelo caminho; as alianças que trava; as direções que privilegia. Nada disso, no entanto, parece de saída dizer respeito ao resenhador tal qual nos habituamos a encará-lo.

Vejamos então quais possíveis são desgraçadamente endereçados a ele: poderá ser o leitor comum que traceja linhas de uma leitura comum, opinativa, vale dizer a leitura da maioria, instigando o leitor a praticar uma leitura igualmente opinativa (aqui, vamos gostar ou não sem, contudo, ver abalados nenhum de nossos critérios); ou então poderá ser o expert cuja leitura/escrita delimita o campo de pertencimento daquilo que lê avaliando, a partir daí, aquele ou aqueles que escrevem (infinitude da escolarização). O resenhador poderá, ainda, ser o comentador, aquele que acrescenta ao lido a explicação que se supõe não estar presente no escrito; e, finalmente, poderá ser tão somente aquele que oferece uma relação circunstanciada dos temas e argumentos abordados, poupando o leitor das contingências da leitura, bem como destituindo o escritor ou escritores das contingências da escritura. Aqui ou ali, neste ou em outro momento, somos todos um pouco resenhadores disso ou daquilo...!

Mas, dentre todos estes possíveis, nenhum diz respeito à singularidade da escrita, cuja expressão seria o encontro, igualmente singular, que porventura se experimenta. É este tipo de resenha que me interessa fazer: aquela em que declino da tarefa opinativa, daquela do expert, da do comentador e, por último, daquela do relator para relançar uma pergunta e com ela abordar o livro que escolhi: um livro, para que se serve?

Sem pretender nenhum ineditismo ao formular esta questão e sabendo que outros antes de mim a formularam, talvez até com maior grandeza ou beleza, ao remetê-la ao leitor, o faço desde a ressonância que ela encontra nos nove breves capítulos de Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes, ressonância que encontra também nos diversos textos reunidos neste número da Rua, lembrando-nos, através de suas sutis, e por vezes combativas incursões que, se um livro nos serve, não é por ser útil, mas por colocar em funcionamento – na medida em que ele mesmo funciona – alguma coisa com a qual podemos fazer ou inventar alguma outra coisa. É desta perspectiva que o livro de Michel Zózimo interessa, tanto quanto interessam os textos que compõem este numero e o jogo contrapontual que criam com os Narradores de Javé (personagens e filme), cuja riqueza de matizes e de texturas cabe ao leitor experimentar.

Vamos, assim, percorrendo o livro de Michel ocupado em se perguntar com quais fluxos a arte se implica (circulação), quais materiais o fazer artístico seleciona e de que maneira os desdobra (edição). Com estas perguntas, Michel nos convida a atravessar uma série de publicações indo de Marcel Duchamp, Malevitch, Oswald de Andrade e o grupo da Revista Klaxon às experiências do Fluxus, passando por Cildo Meireles, Rusha até alcançar Hélio Fervenza, Daniela Castro e Fabio Morais, dentre tantos e tantos outros que, vindos antes ou depois, ressoam em Bruscky e na urgência expressa em um de seus telegramartes: “Arte do meu tempo. Tenho pressa”.

Essa urgência não é outra senão aquela urgência de vida, de um a mais de vida, que nos força a inventar as saídas, as passagens sem as quais nada se passa. Bruscky estava em Recife, era 1975, e os telegramartes atravessavam os muros da censura para alcançar seus pares. A frase de Bruscky segue, hoje, em 2011, impressa no livro de Michel, endereçando-se a quem e aos quantos que escrevem e leem e que, de tanto fazê-lo tenham, talvez, reduzido a escrita a mero recurso formal que representa determinado conteúdo bem concebido. A urgência persiste, mas são outros, agora, os muros que ela procura atravessar.

As publicações de artista referidas por Michel ao longo das 176 páginas, cuidadosamente impressas em offset trazendo o logo do Museu Portátil[5], não se restringem ao formato livro, estendendo-se a tudo quanto implique editar, publicar, disseminar e circular: jornais, revistas, múltiplos, cédulas, cartazes, mapas, selos, cartas, postais, adesivos que, ao ultrapassarem os circuitos institucionais, configuram-se como “estratégias expansivas”, cuja movência desfaz os espaços de antemão considerados artístico-expositivos. É assim que, ao retomar a afirmação de que os acontecimentos da arte não se limitam aos espaços habituais destinados a arte, Michel, na companhia de um vasto grupo de artistas e de práticas, nos lembra de que na arte e na vida “as coisas nunca se passam lá onde se acredita, nem pelos caminhos que se acredita.”[6]

Abordando as experimentações emblemáticas do início do século XX, associando-as à reflexão sobre a palavra como atitude poética e seus modos de dissipação e disseminação e, finalmente, à relação entre arte, circulação, publicação e mercado de bens e serviços – explicitados no Projeto Cédula 1970/1976 de Cildo Meireles –, Michel Zózimo percorre o campo problemático do valor travando alianças com outros artistas/pesquisadores para perguntar: quanto vale um livro, uma publicação? O que neles vale? Se aí nos deparamos com os amplos desígnios do mercado será ao articular a questão da portabilidade de um trabalho de arte à singularidade do espaço expositivo, que Michel redimensionará estas questões dando relevância à problematização do uso exclusivo das publicações (revistas, livros, jornais etc.) para a crítica, o comentário, a reprodução e a promoção, como a nos dizer que não basta perguntar quanto vale um livro ou uma publicação, é preciso perguntar, ainda, para que servem.

Desta maneira, os espaços moventes – concebidos deste as experimentações artísticas ensejadas ao longo do século XX e no início do XXI – implicam uma movência que os atravessa, e que confere ao problema sua dimensão ao mesmo tempo artística e política ao por em jogo as delimitações institucionais, para alcançar-nos em nossas práticas de escrita e leitura, interpelando-nos desde as alianças que travamos, desde o modo como nos conduzimos e as existências que erigimos.

Ao longo dos breves capítulos que compõem o livro, através de uma cuidadosa seleção de trabalhos, Michel nos permite entrever que a problematização da exclusividade do espaço da arte – como aquele circunscrito ao institucionalmente estabelecido – colocada pelas práticas artísticas ensejadas nos anos sessenta e setenta se dá desde um vigor que não se esgota e nem se encerra nas circunstâncias de sua elaboração. Configurando espaços artísticos – que não só não reconhecem a norma institucional, mas a confrontam como critério de legitimação das produções e das existências nelas implicadas, arruinando a distinção entre o expõe arte/é arte, tanto quanto aquela entre criação artística e os modos de agir e de habitar, a potência problematizadora das experimentações artísticas das primeiras décadas do século XX persiste, ativamente, em algumas das propostas artísticas produzidas no presente.

Aproximando o Merzabau de Kurt Schwinters à maleta ou às caixas de Marcel Duchamp, ao livro de André Malraux, ao Multiplo Sala Dobradiça [2010] coordenado por Alessandra Giovanella e Elias Maroso, ao Espaço de Bolso [2003] múltiplo dobrável impresso em off-set de Maria Lucia Cattani, dentre outros trabalhos cuja importância não é menor, Michel desdobra a pergunta “um livro: para que serve?” estendendo-a, deste modo, à toda sorte de publicações. Ao acompanhá-lo e aos trabalhos, propostas e artistas/pesquisadores com os quais conversa, damo-nos conta de que a formulação da pergunta é também sua apresentação material nas diversas produções e projetos curatoriais que, em maior ou menor grau, subvertem a ideia de trabalho acabado, de autoria, de exposição, de obra, de circulação, de valor, de legitimidade e pertencimento institucional.

As entrevistas que compõem a segunda parte do livro apresentam-nos não somente propostas artísticas e projetos curatoriais que tomam para si estas questões, como também o modo pelo qual algumas universidades as acolhem e disseminam; as ressonâncias que encontram nos museus; os percursos que inauguram ao passar a margem dos editais; as saídas que inventam; as muitas derivas que resultam destes encontros e ainda a amplitude dos embates que promovem que já não distinguem estas e aquelas fronteiras institucionais e nem se reduzem a este e aquele campo de saber.

Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes chega até nós de modo simples e direto, sem alarde, para nos apresentar algumas dentre as muitas experimentações com livros e publicações de artistas que, no presente, confrontam a lógica que subjaz os livros e as publicações para além do artista.

 O que fazemos quando escrevemos, editamos e publicamos um livro, uma revista? Que escrita eles supõem? A quem se endereçam? Que valor eles possuem? Em relação com quais problemas se colocam? Se estas perguntas encontram sua especificidade quando consideradas as publicações de artista, ultrapassam-na na medida em que elas mesmas passam a confrontar não somente o mercado da arte, mas, também, o mercado do conhecimento e a mercantilização das existências. O que Michel nos mostra, juntamente com os jovens artistas (jovens na vitalidade das questões apresentadas) que o acompanham nas “estratégias expansivas”, é que tais questões, na urgência de sua formulação, impulsionam práticas (coletivas e individuais) que interpelam o presente precisamente no ponto em que a arte e o conhecimento se produzem à revelia e contra a vida.

Para além dos aspectos que privilegiei ao apresentar Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes, gostaria, ainda, de ressaltar que este pequeno e instigante livro em sua concepção, reúne os elementos que Michel faz notar nos livros e publicações de artistas com os quais conversa, funcionando como um pequeno dispositivo crítico em que cada nome e trabalho citado fazem valer, sob um mesmo horizonte, os problemas que os mobilizam e às suas práticas independente da figura do autor. Trata-se de um livro cuja existência é, sobretudo, coletiva, seja porque não existiria sem aqueles que dele participam, seja porque os convocando conecta-se ao ilimitado universo das experimentações artísticas e não artísticas: aquelas que aí estão e aquelas ainda por vir.

As questões que alinhavei ao longo destas poucas páginas perpassam o livro de Michel Zózimo, ressoam nas publicações de artistas e nos projetos que as viabilizam e, em sua movência, atravessam os espaços moventes por eles produzidos. Questões que percutem no telegramarte de Bruscky e, assim, mantêm sua abertura necessária na procura, inesgotável, de seus pares, artistas e não artistas estejam eles onde estiverem. Questões que talvez se avizinhem daquelas lançadas nos textos reunidos neste número de Rua, e cujo horizonte difuso poderia ser esboçado numa última pergunta que nós, eles, artistas e não artistas, todos criadores, endereçaríamos ao nosso tempo: de que maneira e em quais circunstâncias, os livros e as publicações configuram estratégias potentes o bastante para expandir a arte e a vida?

 

Referências bibliográficas

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

 


[1] Doutora em Ciências Políticas, pós-doutoranda na Faculdade de Educação Unicamp, Laboratório de Estudos Audiovisuais – OLHO. Endereço postal: Rua Tucuna, 1095/101, Pompéia, São Paulo. CEP: 05021-010. E-mail: ana.godoy@rocketmail.com

[2] Projeto contemplado pelo edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção Crítica em Artes Visuais/2010.

[3] Criada em outubro de 2009, a Casa Tomada é um espaço independente reservado para práticas, investigações e reflexões de caráter artístico. O projeto surgiu da vontade de construir um espaço que fosse um ponto de convergência entre as diversas áreas de atuação das artes, discutindo assim o hibridismo de linguagens nos processos artísticos contemporâneos. A equipe da Casa Tomada é formada por Tainá Azeredo, artista e pesquisadora, graduada em Artes do Corpo pela PUC-SP e mestranda de Artes Visuais na FASM; Thereza Farkas, graduada em Cinema pela FAAP e atriz formada pelo Teatro Escola Célia-Helena, ambas dirigem e fazem a curadoria da Casa; Iara Andrade (produção), Habacuque Lima (vídeos e programação visual), Lila Botter (arte das publicações) e Leandro Oliva (gestão de projetos sócio-culturais). A Casa Tomada, em seus poucos anos de vida, vem se consolidando como espaço de pesquisa cujas ações se desdobram em diferentes projetos articulados, distinguindo-se pela vitalidade e consistência de suas propostas e pelo interesse em apoiar e intensificar os trabalhos desenvolvidos por jovens artistas e pesquisadores. Site: http://casatomada.com.br/site/

[4] Fabio Morais criou com Daniela Castro o trabalho ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS – ASSIM MESMO, EM CAIXA ALTA E SEM NOTAS DE RODAPÉ [2010]. Trata-se de um ensaio elaborado para o II Concurso Mario Pedrosa de Ensaios sobre Arte e Culturas Contemporâneas. O projeto não recebeu premiação e foi editado na forma de um livro pelos próprios autores através da Par(ent)esis de Regina Melin. Parte do título do trabalho foi tomada do tema do concurso. Michel Zózimo aborda este trabalho, dentre outros, mostrando de que maneira Fabio e Daniela, ao se esquivarem da norma institucional, trabalham a ideia de suporte explicativo.

[5] O Museu Portátil foi criado entre 2007 e 2010 por Michel Zózimo. Trata-se de um cubo branco que reúne práticas artísticas e políticas implicadas, como coloca Michel, “com a territorialidade transitória e marginal da arte.” O Museu Portátil se distingue por ser, ao mesmo tempo, o trabalho e o espaço expositivo. A presença do logo nesta publicação, mais do que simples referência, assinala a interferência crítica que o livro, enquanto dispositivo, aciona. O trabalho se encontra disponível em: < http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/espaco_cultural/exposicoes/obrainventario/zozimo1.swf

[6] DELEUZE; PARNET, 1998, p. 12.

 


Número 17 - Junho 2011
ISSN 1413-2109/e-ISSN 2179-9911

Conheça a Revista Rua

Editada pelo Laboratório de Estudos Urbanos reúne artigos, produções artísticas e resenhas de obras que tratem de fenômenos próprios da cidade nos múltiplos espaços do político e do urbano. - Leia mais

Artes

Resenha