A pandemia de Covid-19 impôs restrições que afetaram os usos da rua. As aglomerações coibidas, porém, não impediram, já em junho de 2020, atos como o Vidas Negras Importam, organizados após a morte de George Floyd, sufocado por um policial, agora condenado, em Minneapolis, nos Estados Unidos, nem as manifestações no Brasil contrárias ou favoráveis ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Os conflitos sociais se expressam também na rua. É a partir desse pressuposto que este estudo tem como objetivo analisar o conflito entre apropriação e dominação na repressão às chamadas Batalhas de Rap ou Batalhas da Alfândega, realizadas no Largo de mesmo nome, no Centro Histórico de Florianópolis (SC). A análise empírica engloba uma reportagem em vídeo da imprensa independente e uma reportagem em texto da imprensa tradicional.
A designação de imprensa/jornalismo tradicional, também chamada de convencional, faz referência aos grupos e empresas controladoras do setor no Brasil. Sobre o jornalismo independente, há inúmeras pesquisas que investigam o tema, sendo uma delas o trabalho de M. Silva (2017), que mapeia 30 iniciativas criadas entre 2013 e 2015 no Brasil, por ela denominadas novas experiências de jornalismo. Segundo a autora, as expressões geralmente aplicadas a esse tipo de iniciativa – jornalismo independente, jornalismo alternativo, mídia radical, mídia contra-hegemônica – não dão conta de toda a variedade de propostas que compõem tais iniciativas. Este artigo toma o papel da imprensa tradicional/hegemônica como o de manutenção da ordem social e, em contrapartida, o da imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica como o de crítica a esta ordem para a construção de outro modo de organização social. O pressuposto é que as Batalhas, ao corporificar a ideia de insurreição do uso, questionam os limites ao uso autorizado da rua e a lógica da cidade como mercadoria, uma cidade à venda.
O espaço urbano comum, afirma Santos Junior, é atravessado por contradições, disputas e conflitos materiais e simbólicos (2014, p. 148). Do ponto de vista do urbanismo, segundo o autor, esses espaços podem ser considerados como aqueles dentro de uma cidade para uso público, posse coletiva e pertencentes à autoridade pública ou à sociedade como um todo, como os espaços de circulação (rua), de lazer e recreação (parques), de contemplação (cachoeiras) ou de preservação (reservas ecológicas). Porém, há espaços urbanos comuns ou públicos que têm restrições de acesso e circulação, como prédios públicos, instituições de saúde e educacionais e centros culturais. Assim, por mais livres que sejam os espaços públicos, observa Santos Junior, é necessário perguntar, em cada contexto, quem os apropria (2014, p. 147).
O autor busca em Lefebvre a distinção entre apropriação e dominação, ou espaços apropriados e espaços dominados. O espaço dominado pode ser exemplificado por espaços naturais transformados por uma técnica ou uma prática, como as autoestradas, a arquitetura militar, os trabalhos de diques e de irrigação: “O espaço dominado é geralmente fechado, esterilizado, vazio. Seu conceito só adquire sentido ao ser contrastado com o conceito oposto e inseparável de apropriação”1 (LEFEBVRE, 2013, p. 213). As forças armadas, a guerra, o Estado e o poder político, diz Lefebvre, têm importante papel no aumento da dominação. Já o espaço apropriado é aquele modificado para servir às necessidades e às possibilidades de um ou vários grupos:
Um espaço apropriado assemelha-se a uma obra de arte, que não é o mesmo que dizer que seja um simulacro. Frequentemente, trata-se de uma construção, de um monumento ou de uma edificação, mas nem sempre é assim: um sítio, uma praça ou uma rua podem ser perfeitamente considerados como espaços “apropriados”. Tais espaços abundam certamente, mas nem sempre é fácil estimar em que sentido, como e por e para quem foram “apropriados”.2 (LEFEBVRE, 2013, p. 213-4) [grifo no original]
Segundo Lefebvre, a oposição “dominado-apropriado” não se limita a um contraste discursivo. Ela implica um conflito que se desenvolve até a vitória de um dos termos em luta: a dominação subjugando a apropriação, mas não o suficiente para que a última desapareça: “Ao contrário: a prática e o pensamento teórico proclamam sua importância e reclamam sua restituição” 3 (LEFEBVRE, 2013, p. 214). Para Lefebvre, o campo desta disputa é o cotidiano, espaço-tempo onde, diante das coerções do espaço concebido, o espaço dos tecnocratas, pode se dar a “rebelião do vivido” (LEFEBVRE, 1999, p. 164). A apropriação não pode ser confundida com a propriedade:
Falarei também da “apropriação”. Com este termo não nos referimos à propriedade; é mais, trata-se de algo totalmente distinto; trata-se do processo segundo o qual um indivíduo ou grupo se apropria, transforma em seu bem, algo exterior, de modo que se pode falar de tempo ou espaço urbano apropriados pelo grupo que modelou a cidade; o espaço urbano de Veneza, de Florença, é um espaço apropriado às pessoas que criaram Veneza ou Florença.4 (LEFEBVRE, 1978, p. 186)
Lefebvre explica que quanto mais funcionalizado está um espaço, ou seja, dominado pelos que o manipulam e o querem monofuncional, menos ele se presta à apropriação. E é nesse embate entre apropriação e dominação, afirma Sobarzo, que se evidenciam os conflitos e as contradições do espaço urbano (2006, p. 108). Nessa perspectiva, Sobarzo ressalta que apropriação do espaço público, construção do lugar, identidade e reconhecimento são momentos de criação e movimento para vislumbrar uma alternativa aos processos de dominação na cidade, para “(...) deixar de lado a espera e criar a esperança, avançando na procura de novos caminhos para a mudança” (SOBARZO, 2006, p. 108).
Para pensar as contradições na produção e apropriação do espaço, Lefebvre formula três conceitos: espaços isotópicos, espaços heterotópicos e espaços utópicos. Os espaços isotópicos são homólogos à lógica do capital, mercantilizados, tendo valor de troca. Os espaços heterotópicos são os espaços da diferença, apropriados por agentes para serem espaços de reprodução da vida, representando o valor de uso. Já os espaços utópicos são definidos pela utopia, pelo não-lugar, por lugares em outros lugares, por espaços que ainda não existem completamente (LEFEBVRE, 1999, p. 117-18).
Santos Júnior afirma que é possível identificar a heterotopia nas inúmeras práticas dos movimentos sociais, nas manifestações culturais e na ação coletiva para desacomodar a cidade, que promovem novas formas de apropriação dos espaços comuns urbanos:
Espaços na cidade ganham novos significados através destas práticas: praças, ruas, edifícios coletivamente ocupados, museus, teatros, parques, rios, praias, galpões abandonados, trens, ônibus, degraus, pontes e escolas, entre outros. Nenhum espaço público escapa das novas possibilidades criadas para que todas possam ser reapropriadas de forma criativa por meio da ação coletiva. (SANTOS JÚNIOR, 2014, p. 154)
Ao abordar a ideia de insurreição do uso na obra de Lefebvre, Seabra afirma:
No processo de desenvolvimento da forma da mercadoria, tanto elementos de ordem material existentes no mundo, como terra, ar, água, entram no processo de valorização, quanto o próprio homem, sendo de início visto como generalidade, como força de trabalho, e, gradativamente, pelas suas particularidades, pelos seus atributos, já então sociais, históricos. O ser humano que vem da história nunca se separará por completo da natureza, mesmo passando pela antinatureza, pela abstração.
Assim, tem-se que a energia vital, o homem como espontaneidade, mesmo tendendo a recuar, não pode desaparecer, que ele não desaparece à proporção que cresce a artificialidade do mundo. Essa energia se reelabora de um ponto de vista humano, e com isso pode-se dizer apenas que a parte cega da história diminuiu, porque as relações de propriedade foram invadindo domínios amplos da existência, alcançando costumes e alterando-os. No entanto é no vivido, como o nível da prática imediatamente dada, que a natureza aparece e transparece, como corpo, como uso. É nesse nível que o prazer, o sonho, o desejo se debatem, e que os sentidos da existência propriamente humana, não se deixando aniquilar, podem se insurgir. Possibilidade que se funda nas particularidades. (SEABRA, 1996, p. 74-5)
É nessa perspectiva que se analisa a rua, a qual, afirma Lefebvre, é o lugar (topia) do encontro, que possibilita outros encontros nos lugares determinados onde as pessoas se vêem. Sem a rua, não há vida urbana. É nela que a cidade se apropria dos lugares, e dentro da ordem estabelece a desordem, engendrando outra ordem, porque, pergunta Lefebvre, a rua também não é o lugar da palavra, da troca pelas palavras, signos e coisas, onde a palavra pode se tornar “selvagem” e “(...) inscrever-se nos muros, escapando das prescrições e instituições?” (LEFEBVRE, 1999, p. 28). Para o autor, a rua representa, em nossa sociedade, a vida cotidiana, o microcosmo da modernidade (LEFEBVRE, 1978, p. 94). Mas a organização neocapitalista hoje deixa igualmente à mostra outras confrontações na rua:
(...) a rua torna-se o lugar privilegiado de uma repressão, possibilitada pelo caráter “real” das relações que aí se constituem, ou seja, ao mesmo tempo débil e alienado-alienante. A passagem na rua, espaço de comunicação, é a uma só vez obrigatória e reprimida. Em caso de ameaça, a primeira imposição do poder é a interdição à permanência e à reunião na rua. Se a rua pôde ter esse sentido, o encontro, ela o perdeu, e não pôde senão perdê-lo, convertendo-se numa redução indispensável à passagem solitária, cindindo-se em lugar de passagem de pedestres (encurralados) e de automóveis (privilegiados). A rua converteu-se em rede organizada pelo/para o consumo. A velocidade da circulação de pedestres, ainda tolerada, e aí determinada e demarcada pela possibilidade de perceber as vitrinas, de comprar os objetos expostos. O tempo torna-se o “tempo-mercadoria” (tempo de compra e venda, tempo comprado e vendido). A rua regula o tempo além do tempo de trabalho; ela o submete ao mesmo sistema, o do rendimento e do lucro. Ela não é mais que a transição obrigatória entre o trabalho forçado, os lazeres programados e a habitação como lugar de consumo. (LEFEBVRE, 1999, p. 28-9, com grifos no original)
O autor afirma que a apropriação/reapropriação do espaço na rua é caricata, quando o poder a autoriza para eventos, como festas e bailes: “Quanto à verdadeira apropriação, a da ‘manifestação’ efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o silêncio e o esquecimento” (LEFEBVRE, 1999, p. 29). Os excessos, o não regularizado que as instâncias de poder combatem, são aquilo que escapa ao que os sistemas dominantes permitem.
Essa insurreição do uso tem se visibilizado com frequência na cobertura jornalística em função da repressão do Estado contra atividades na rua, que caracterizam ocupações para manifestação cultural. Estudo de Gonçalves (2017) mostra que expressões culturais de jovens de territórios periféricos, nos últimos anos, precisaram se reconstruir através da busca de estratégias de visibilidade e de negociações pelo recrudescimento dos mecanismos de marginalização e repressão:
O que o ritmo e poesia, no Brasil, vem sublinhando é que há estruturas de poder cada vez mais amparadas legalmente, assentidas por um segmento da sociedade que investe em exclusão, truculência, fascismos e que se expandem por canais mais identificados com a vida cotidiana. Viver, para pretos, pobres, favelados, é uma batalha constante. Porém esse retrocesso no pensamento social, nas políticas públicas e na cultura exige, diariamente, disposição e barulho de grupos que não admitem serem silenciados e que fazem da arte um bom lugar para a luta! (GONÇALVES, 2017, p. 67)
Em Florianópolis, uma das manifestações mais reprimidas ao apropriar-se da rua são as chamadas Batalhas de Rap ou Batalhas da Alfândega, realizadas no Largo de mesmo nome, ao lado do Mercado Público, no Centro Histórico da capital, desde 2008. As Batalhas são duelos de rima e acontecem em vários pontos da cidade. No Largo da Alfândega, ocorriam, antes da pandemia de Covid-19, nas noites de quinta-feira, e ali eram mais frequentes os episódios de repressão por parte da Polícia Militar e da Guarda Municipal.
Em pesquisa sobre a Batalha de Alfândega, Fernandes (2019) afirma que os frequentadores passaram por inúmeras abordagens policiais, em especial em 2014, quando a manifestação chegou a ser proibida e depois retomada, e em 2017, ano de novos enfrentamentos entre a Guarda Municipal e os participantes, evidenciando, por um lado, afirma o autor, tensões relacionadas ao racismo estrutural e, por outro, o fato de as batalhas serem capazes de tensionar e ressignificar os usos do espaço público da cidade.
Cabe assinalar que Florianópolis se insere, a partir dos anos 1980, no contexto da globalização da economia e das políticas neoliberais que definem novos papéis para as cidades e atribuições a eles compatíveis por parte dos governos locais (SUGAI, 2015, p. 25). A autora mostra como, no período de 1970 a 2000, o Estado, em suas três esferas, fez os mais significativos investimentos públicos nas áreas residenciais de mais alta renda da capital catarinense, não apenas dotando-as de equipamentos como hospitais, universidades e edifícios públicos como também formando uma rede de vias que as conectou, englobando o acesso à Ilha de Santa Catarina (porção insular de Florianópolis), os bairros centrais e os balneários ao Norte e Leste da Ilha. As grandes obras públicas naquele período foram associadas ao desenvolvimento de uma estratégia de marketing ancorada no potencial turístico e na qualidade de vida, com a cidade buscando ser referência de modernização tecnológica. Nesse sentido, consolidaram-se dois slogans, “Ilha da Magia” e “Floripa”. Em 1991, com a criação do mercado comum entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, a capital catarinense passou a ser divulgada pelo governo local como “A Capital Turística do Mercosul” (SUGAI, 2015, p. 27).
A configuração territorial da Ilha e sua diversidade de paisagens são utilizadas para compor o discurso da vocação para o turismo. Mas tal vocação, alerta Ouriques, não passa de um determinismo, porque o componente natural, em si mesmo, não significa vocação, dissociado do social (OURIQUES, 1998, p. 11). Em livro publicado no final dos anos 1990, Ouriques assinala três jargões então correntes em praticamente todos os segmentos sociais florianopolitanos em relação ao turismo: a associação ao “ecologicamente correto”, a “qualidade de vida do povo” e a ideia de “indústria sem chaminés” (OURIQUES, 1998, p. 79). O marketing turístico atribui às belezas naturais da Ilha de Santa Catarina a fundamentação principal para a expansão das atividades ligadas ao lazer e ao turismo, como se fossem “vocações naturais” (OURIQUES, 1998, p. 73). Os três jargões, “qualidade de vida”, “indústria” e “vocação”, reaparecem continuamente na cobertura jornalística, nas continuidades e descontinuidades de um processo social que, em Florianópolis, é marcado pela intensa disputa pelas melhores localizações no espaço. O setor empresarial, articulado em associações e enraizado na administração pública, utiliza-se do discurso da preservação ambiental e da paisagem para, conforme a conveniência, afastar as populações empobrecidas e suas práticas culturais para áreas menos valorizadas.
O documentário A Causa é Legítima - A Batalha da Alfândega é o Direito à Cidade, de Ricardo Pessetti (2016), aborda, através de entrevistas, as experiências de resistência na ocupação dos espaços públicos por esses grupos culturais e a repressão policial no cotidiano. Trechos das entrevistas, abaixo, apresentam elementos relevantes – grifados – sobre o espaço, as relações de poder e a linguagem nesses processos de resistência pelas ocupações:
1 - MC Vini (trecho de entrevista):
E chega a ser divino mesmo o encontro dos pivetes entrando em êxtase, a emoção surreal inimaginável e aquilo para mim chega a ser Deus, tá ligado? (A CAUSA..., 2016, 1:07)
2 - MC Vini (trecho de entrevista):
O rap no Brasil enraizou muito essa cultura politizada, da periferia, de mudança, e isso aí assusta, né, porra, isso assusta. Imagina um bando de preto inteligente, sabendo o que tá falando, com a capacidade de mudança em mãos, nossa, nego treme né? O pessoal, a burguesia vai tremer. (A CAUSA..., 2016, 1:36)
3 - MC Anna Puga (trecho de entrevista):
Um pouco de tudo tá na rua, tá ligado? É nosso trabalho, são as pessoas de diferentes classes que passam umas pelas outras a qualquer momento, entendeu? E a rua é o espaço de todos, entendeu? Do burguês, do pobre, do estudante de classe média, do estudante de escola pública. Então é um espaço nosso onde todas as classes se encontram, não importa a hora do dia. (A CAUSA..., 2016, 2:39)
4 - MC Vini (trecho de entrevista):
A partir do momento em que nós chega na rua e que essa informação pode ser alcançada por qualquer pessoa que tiver passando na rua naquele momento, aí nós ficamos mais perigoso ainda, tá ligado. Eu só tava falando de rap, agora nós tá três vezes mais perigoso porque qualquer pivete que tá ali passando com a mãe pode parar, ouvir, abraçar uma informação para a caminhada e mudar o dia-a-dia ao redor dele a partir daquele momento, tá ligado, que é o que eles não querem. Então na rua somos mais acessíveis a levar essa mensagem que o rap nos ensinou no decorrer de todos esses anos. (A CAUSA..., 2016, 3:03)
5 - MC Arthur DK (trecho de entrevista):
Cara, a rua liga. A rua é uma via de ligação, tá ligado. É só a gente pensar numa placa de circuito, certo. A placa de circuito, pô, se tu pegar uma placa mesmo tem aquelas vias, aquelas linhas de comunicação e tal. A rua é isso, cara. A gente é pingo de solda na rua. (A CAUSA..., 2016, 3:38)
6 - MC KA Alves (trecho de rap):
E essa é só pra quem vive a rua pura, ocupando o espaço pra propagar a cultura. Propagar a mensagem, aqui não é viagem. Aqui não tem malandragem. A gente faz de verdade. Faz de verdade ocupando o espaço que é nosso. Não vem dizer que aqui que eu não posso. Não vem querer me prender porque não vai dá. Pra mim eu vou me defender, eu vou proclamar, proclamar a mensagem verdadeira, a mensagem de Jah que disse que essa terra é nossa, então vamo ocupa. Vamo ocupa porque quem disse que um pedaço de terra vale grana na real é quem foi que disse que não pode pisar na grama. (A CAUSA..., 2016, 4:03)
7 - MC Vini (trecho de entrevista):
É uma coisa bem geográfica, né. Porque primeiramente tá no Centro, tá ligado? Lá é o lugar onde coloca Biguaçu, São José e Palhoça. Onde vem nego do Zinga, do Norte, onde vem nego do Rio Tavares, Campeche. Lá é o lugar mais acessível de Santa Catarina para se fazer uma Batalha de Rap, Largo da Alfândega. (A CAUSA..., 2016, 17:13)
8 - MC Vini (trecho de entrevista):
A Batalha mudou a minha vida, o rap, o rap me ajudou muito, me incentivou muito, mas o rap, ele consegue mudar uma pessoa só, tá ligado? Nego fala muito isso. O rap, de tanto você ouvir, ouvir, ouvir, você vai conseguir assimilar certas coisas, vai começar a distinguir certas coisas, mas a Batalha não. A Batalha, por ser um movimento cultural, entende, ela já consegue te libertar, ela consegue te dar voz. Isso aí é mais importante ainda, tá ligado, do que simplesmente salvar a sua vida. Ela consegue salvar outras vidas ao mesmo tempo, entende. Ao mesmo tempo que você tá se libertando, você já tá libertando outros manos ali que você nem conhece, tá ligado? (A CAUSA..., 2016, 29:13)
Os trechos 3, 4 e 7 enfatizam a ideia da rua apropriada por ser um espaço de todos, então espaço nosso (de quem vai nas Batalhas). Mas não é uma rua/espaço qualquer. A mensagem do rap precisa ser transmitida onde há gente para escutá-la além dos que elaboram as rimas. Então, geograficamente, o espaço estratégico é o do Largo da Alfândega, no coração da cidade, na frente do maior terminal de transporte coletivo da Ilha, onde se encontram passageiros vindos de toda a Área Conurbada de Florianópolis, que inclui São José, Biguaçu e Palhoça. Ali as relações de poder se visibilizam, como demonstram os trechos 2, 6 e 8, porque o espaço público – um que vale grana – deixa de ser um espaço de passagem e passa a ser um espaço de permanência para uma manifestação cultural associada a jovens negros de periferia, propiciando a libertação (desalienação) no coletivo. As Batalhas no Largo da Alfândega instauram assim um espaço heterotópico, um espaço da diferença, apropriado como valor de uso, expressando assim aquela distinção de Lefebvre entre o usager e o “usager” e que Seabra (1996, p. 78) distingue como o usuário e o usador5. O trecho 1 é expressivo neste sentido, revelando, na fala do entrevistado, a emoção surreal, a experiência do êxtase e do divino no encontro dos jovens para as Batalhas.
A dimensão da linguagem nos trechos 4, 5 e 6 evoca como a mensagem do rap figura no mais significativo texto social, a rua, como linguagem de crítica ao poder pela insurreição do uso, o desejo de apropriação, a rebelião do vivido. Diz o que não pode nem deve dizer. Interfere no cotidiano introduzindo aquilo que caracteriza, segundo Lefebvre, o conjunto de resíduos: a palavra incerta, a situação equívoca, a ambiguidade (LEFEBVRE, 1967, p. 377):
O pensamento só compreende o quotidiano quando há mal-estar e recusa, desejo e vontade política de modificá-lo. Para conhecê-lo e compreendê-lo, é preciso restituir em um todo essa realidade a um tempo fragmentária e monótona. É preciso querer, obscura ou claramente, reconstruir uma totalidade. O conhecimento em ato desdobra-se em imagens, as de uma vida metamorfoseada. Ao mesmo tempo, esse conhecimento deve passar por uma práxis de transformação. O ato que inaugura o conhecimento e a práxis é poiético: criador, ao mesmo tempo, de conceitos e de imagens, de conhecimento e de sonho... (LEFEBVRE, 1967, p. 173) [Com grifo no original]
Na fala do MC Vini, qualquer jovem que passe no Largo da Alfândega pode abraçar uma informação para a caminhada e com ela mudar o dia-a-dia ao redor dele a partir daquele momento. Lefebvre toma a vida cotidiana como resíduo, como o não-filosófico, podendo ser potencialmente mudada pela palavra. O autor afirma que cada atividade que se autonomiza tende a constituir-se em sistema, em “mundo”, o qual acaba por expulsar, indicar, o resíduo. O resíduo é o que escapa, o que resiste, e de onde pode partir uma resistência efetiva e prática (LEFEBVRE, 1967, p. 68 e 373). O rap, na sua também condição de resíduo, organiza e totaliza a revolta contra os impedimentos de uso da terra, dos lugares melhores localizados, da música de protesto como presença e palavra criadora em uma rua que deveria ser pura, ocupada por quem usa o espaço para propagar a cultura, espaço do usador e não do mero usuário. No Largo da Alfândega, essa conjunção rap + rua (espaço público) expressa a possibilidade de rompimento da alienação urbana vivida, na classificação de Sánchez-Casas (1987), como segregação, dominação e isolamento6. A possibilidade de, ao caminhar, alguém abraçar casualmente uma informação, de os cantores de rap serem como pingos de solda na rua, de a rua para a cultura ser uma rua pura expressam uma prática social (espacial) que movimenta a realidade urbana e a linguagem. A seguir se verá como duas reportagens, uma da imprensa tradicional, do Grupo NSC, e outra da imprensa independente de Florianópolis, o Coletivo Maruim, abordam o tema nos dois diferentes períodos de repressão, em 2014 e em 20177.
Análise das reportagens do Coletivo Maruim e do Caderno Nós, do Grupo NSC
A reportagem intitulada “MC’s expulsos da Alfândega pela PM se organizam para voltar ao local de origem”, postada no canal do YouTube do coletivo independente Maruim em 29 de dezembro de 2014, tem 10 minutos e 25 segundos. A apresentação do vídeo enfatiza o quanto a repressão obriga os participantes a mudaram continuamente de local para manter as batalhas, mostrando o quanto a retomada do coração da cidade implica a busca da visibilização do movimento:
Ao longo dos últimos cinco anos, o centro de Florianópolis tem sido tomado por rimas improvisadas nas noites de quinta-feira. Os encontros chegaram a reunir centenas de espectadores no Largo da Alfândega, centro da cidade. Desde o meio do ano, a batalha teve de sair de seu berço para se esconder na penumbra sob a ponte Hercílio Luz, ao lado dos clubes de remo. Foi a alternativa encontrada após a expulsão pela Polícia Militar.
Mas os MC’s não pretendem rimar em baixo da ponte para sempre. Desde o fim do ano passado, eles vêm se articulando para retomar o espaço no centro. Em dezembro, rimaram na praça XV. Neste começo de ano, retornam para o Largo da Alfândega, “em uma retomada ofensiva”.
Quando perguntado sobre o porquê da insistência com o local, um dos idealizadores da batalha, MC Cubano, responde fácil. “Lá é o nosso berço. E é um fluxo intenso de pessoas. É o centro, né”. A batalha desta quinta começa às 19h e a organização afirma que quanto maior a presença e a divulgação, maiores as chances de uma retomada definitiva. (MC’S..., 2014)
A abertura da reportagem é polifônica, com as vozes dos entrevistados se apresentando mescladas a tomadas da cidade em movimento acelerado. O MC Cubano, primeiro entrevistado, conta a origem do movimento em Florianópolis com o corpo balançando ao ritmo da própria narrativa. Outro entrevistado, Guzuk, menciona o perfil dos participantes e revela a compreensão do quanto custa lutar para não ser colocado à margem do sistema e do espaço geográfico em sua concretude:
É um movimento que as pessoas que tão envolvidas têm personalidade forte, própria, tem ideias que vão contra o sistema que tá posto, sendo assim, automaticamente esse sistema reage na forma de repressão, seja ela ideológica, seja ela em generalizar de forma negativa as pessoas que tão vindo pro movimento, e na forma mais forte que é a repressão policial, né, cara, política também, né. Então dentro desse contexto a batalha era realizada aqui na Praça da Alfândega e por reclamações aí vindas de uma elite aí da sociedade, expulsou. E a gente, como forma de resistência, veio para cá, aqui, embaixo da ponte, do lado dos clubes de remo, totalmente à margem, né. (MC’S... 2014, 3:30)
A fala da entrevistada Rose, frequentadora da Batalha, reforça o quanto a visibilidade é importante, contraposta à situação de não se esconderem, e sim terem sido escondidos, diferença que as vozes verbais ativa e passiva trazem para a concretude da expulsão provocada pela institucionalidade:
Tava uma coisa tão bonita ali na Alfândega que você via pessoas, tudo misturado, pessoas que tavam saindo do serviço, paravam por curiosidade para ver, viam aquilo e ficavam, tá. Tinha um público tão bonito, continua sendo bonito, mas, sabe, tinha muito mais gente, tinha muito mais visibilidade. Olha aqui, nós tamo escondido. (MC’S... 2014, 9:02)
No jornalismo tradicional, a reportagem “Grito de resistência”, publicada no Caderno Nós, do grupo NSC, na edição de final de semana de 2/3 setembro de 2017, com seis páginas, contextualiza notícias publicadas na semana anterior, quando a Guarda Municipal impediu a realização do encontro no Largo da Alfândega, alegando falta de autorização, em ação que contou com o apoio de oito viaturas. Sob a manchete do caderno, lê-se a linha de apoio: “Ritmo e poesia nas batalhas de rima refletem a realidade das periferias de Florianópolis e dão o recado em um discurso de luta contra o preconceito”.
Para a reportagem, foram ouvidos sete rappers que explicam o significado da expressão cultural:
Mensagens como esta são rotina nas batalhas de rima. Frente à frente, os MCs são portadores da voz da comunidade, são aqueles que colocam o pensamento e o sentimento em ação por meio da poesia marginal. Quem vai às batalhas vai, principalmente, para escutar uma mensagem, transmitir informação ou abraçar uma ideia para a caminhada.
— O rap vem muito disso. Da liberdade de expressão, daquela voz que está dentro da gente louca pra gritar, mas que muitas vezes é reprimida — atesta Pedro Augusto Garcéz, o Dropê, de 23 anos.
É por isso que o espaço da batalha de rima é a rua. O encontro não é apenas para cantar rap, é para juntar pessoas de diferentes realidades em um mesmo movimento sócio-cultural, dar voz, libertar amarras e, é claro, garantir a diversão gratuita para quem pouco tem ou pouco pode. (THOMÉ, 2/3 set. 2017, p. 3)
Em sua teoria sobre a linguagem, Lefebvre afirma que, querendo ou não, quem está na rua figura no texto social. O autor afirma que, a partir da vida cotidiana, mudam a língua e as linguagens, nascem palavras novas, gírias, muitas vezes marginais em relação à linguagem oficial (LEFEBVRE, 1978, p. 94). Estudar a linguagem na vida cotidiana, afirma o autor, implica tomar também o que ela não diz, o que evita dizer, o que não pode nem deve dizer. E quando “(...) as necessidades e desejos não encontram palavras para dar consciência de si e intentar sua realização comunicando-se, perecem progressivamente. Ou se revoltam” (LEFEBVRE, 1978, p. 94).
A reportagem captura a linguagem das batalhas pela expressão de seus artistas, no caminho hoje tão pouco percorrido no jornalismo catarinense e apontado ainda em 1955 na clássica obra de Antonio Olinto sobre a relação entre jornalismo e literatura. O autor afirmava que o jornal era então o primeiro a tomar conhecimento da linguagem nova nascida na vida cotidiana, por estar em contato direto com o homem comum que a inventava:
É a que um povo cria, na vida diária, no encontro com acontecimentos e pessoas, na necessidade de inventar palavras novas para exprimir uma nova relação. Às vêzes, é uma palavra antiga, morta, mumificada, que volta ao uso, com sentido modificado. Outras, é um prolongamento de significado, uma expansão de sentidos que incorpora um determinado conjunto de sons ao seu mundo de expressões. O manuseio coletivo da linguagem exige a invenção de têrmos mais vigorosos, capazes de maior atualidade e maior atuação no entendimento diário. É a gíria que chega, irrequieta ou imprópria de início, para acabar fazendo parte da linguagem viva de todos os dias. (OLINTO, 1955, p. 68)
Para o autor, o jornalista, o repórter e o escritor, no contato com a vida cotidiana, compreendem o valor da linguagem que nasce a cada instante: “Provoca a transmutação das palavras vivas do povo em elementos dramáticos, trágicos, líricos, capazes de se incorporarem a um poema, a um conto, a um romance” (OLINTO, 1955, p. 69).
Os rappers entrevistados afirmam que o rap das batalhas da Alfândega precisa ter os jargões locais, e o repórter traz ao texto um trecho bastante expressivo:
Quem sabe o segredo do hip-hop
Sabe o ouro que nossos ancestrais deixaram pra nós e
Quem rima hoje tá aqui
Pra não aplaudir adversário
Rimando, versando, desmascarando cenários (...)
Repito palavras pra ficar mais claro
Ligue todos os meus sons e verás um diário
Do baque diário
De querer vencer nesse sistema que me quer como presidiário
E eu que como tão pouco
Soube de informações me embrulham o estômago só de lembrar
Preço alto, paga alto pra despertar (Valsinha, Karma) (THOMÉ, 2/3 set. 2017, p. 5)
O autor, rapper Karma, avalia o significado da expressão cultural que marcava as noites de quinta no centro de Florianópolis:
— Querendo ou não, a gente vive uma guerra civil. Quem está dentro das comunidades sabe disso. A gente vive isso. Quer arrumar um trampo? É mais pretinho, mais escurinho. Aqui é cidade de burguês, não se tem acesso a trampo de qualidade. A criminalidade está batendo na nossa porta, mas a cultura traz uma reforma de consciência para poder se viver a partir de outros princípios — analisa Karma.
Aí que reside a importância das batalhas de rima para a cidade: a cultura oral de falar sobre vivências de forma aberta, sem passar por edição. Quem está nas batalhas fala do que está vivendo, da realidade de sua quebrada e, é claro, do preconceito cotidiano que sofrem os moradores de regiões periféricas e/ou marginalizadas. (THOMÉ, 2/3 set. 2017, p. 5)
A declaração ilumina o embate concreto entre os que concebem espaços isotópicos, mercantilizados, a “cidade de burguês” sedenta dos lucros do turismo, e os que buscam a constituição de espaços heterotópicos, da diferença, para denunciar a “realidade da quebrada” através da força insurgente da fala sem edição. No coração de Florianópolis, o Largo da Alfândega, estava aberto, palpitante, o conflito entre apropriação e dominação, e não por menos as forças policiais continuamente buscavam reprimir ali a presença dos rappers e de suas vozes, conflito agora à espera do desenrolar da pandemia de Covid-19, que impediu o uso massivo dos espaços públicos, e das repercussões locais do atual período autoritário vivido sob o governo de Jair Bolsonaro.
Cabe destacar que o silenciamento de vozes no conflito entre apropriação e dominação pode se manifestar sob outras formas de coerção. O jornal Notícias do Dia, do grupo ND+, publicou uma notícia em 29 de abril de 2014 – mesmo ano da primeira repressão policial sobre as batalhas – que tratava da condenação, por crime ambiental, de quatro integrantes do Grupo ETC8. O motivo foi o conjunto de cerca de 40 interferências feitas pelo grupo em muros, viadutos e marquises da capital catarinense, ao longo de 2013, com a mensagem “Cidade à Venda” (Figura 1).
Figura 1
Foto e legenda da notícia no ND em 29 de abril de 2014.
A foto mostra a intervenção, sob um viaduto da capital catarinense, da intervenção do Grupo ETC com a inscrição “Cidade à Venda”
Crédito: Eduardo Valente
O motivo da intervenção foi apresentado por um dos integrantes do grupo entrevistado pelo jornalista: “Esta intervenção denuncia a política de espetacularização imobiliária e o processo de leiloamento da cidade, que tem como catálogo o plano diretor aprovado pela atual gestão do município [à época o prefeito era Cesar Souza Jr.]” (DIOGO, 29 abr. 2014). Para justificar o processo por crime ambiental contra o grupo, a Prefeitura afirmou ao jornal que a interferência “Cidade à Venda” não era considerada artística por “(...) conter cunho político e manifestação clara contra a gestão municipal. As pichações (...) procuraram denegrir claramente a imagem do prefeito e da administração” (DIOGO, 29 abr. 2014). Destaca-se a explicação da Prefeitura:
Segundo a SMDU (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano), a Prefeitura da Capital apoia e permite diversas interferências artísticas. “Temos várias espalhadas pela cidade, viadutos foram alvos de grafite genuíno. Acredito que a cidade é um artefato cultural e que a arte é indispensável na vida urbana. Na essência, essas interferências nos ajudam a buscar uma nova sintonia, porém temos que cuidar com os excessos. Avaliar cores, tamanhos e mensagens, não engessando a norma, mas que ao mesmo tempo essa regularização proteja a sociedade e forneça tal produção de arte”, disse o secretário Dalmo Vieira Filho. (DIOGO, 29 abr. 2014)
A manifestação do representante do Executivo mostra a tensão entre o que se concebe para a cidade e o que, de fato, nela se vive, oposição que Lefebvre conceitua como o conflito entre o concebido e o vivido no espaço urbano. A cidade insere-se na lógica do valor de troca, concebida para estar à venda. Mas explicitar esse fato no vivido, no cotidiano da cidade, como fez o ETC, é “denegrir” a imagem do prefeito e da administração, que não são nem nomeados na intervenção. Em sua página no Facebook, o ETC assim se apresenta:
O ETC usa de ações diretas - em choque com as normas vigentes - para interferir no fluxo cotidiano. O grupo inquieta-se por provocar gradativos ruídos na frequência contínua que visa domesticar o despolitizar a relação entre corpo e cidade, na busca de questionar e contaminar a sociedade do espetáculo. O trânsito configura a sua manifestação enquanto coletivo: energético, catártico e efêmero.
Neste sentido, é significativa, em relação às intervenções urbanas do Grupo ETC, a afirmação do Secretário Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura à época, para quem é preciso “cuidar com os excessos”. Os excessos, o não-regularizado, é aquilo que escapa ao que os sistemas dominantes permitem. A cidade está à venda, mas há excesso em fazer uso da linguagem para, em pleno espaço público, denunciar que ela está à venda. A frase com que o ETC se apresenta no Facebook é ilustrativa desse processo: "Se tudo o que você vê é uma frase num muro, você vê pouco”.
Notas finais
Ao examinar as experiências de práticas heterotópicas em andamento nas cidades, Santos Júnior conclui que nelas há lições que podem gerar uma nova utopia do direito à cidade, capaz de desenvolver ações coletivas de rebeldia criativa e novos processos de reapropriação pelo ser humano, seu espaço e sua temporalidade, na perspectiva da transição urbana para uma cidade mais justa e democrática (SANTOS JUNIOR, 2014, p. 157).
Nesse sentido, se o espaço urbano é atravessado por contradições, disputas e conflitos materiais e simbólicos, a luta por novos modos de urbanização passa tanto pela organização concreta quanto pela disputa da linguagem. É pela e através da linguagem, afirma Lefebvre, que a ideologia entra nas consciências e as modela (1969, p. 95).
As Batalhas, ao corporificar a ideia de insurreição do uso, questionam os limites ao uso autorizado da rua e a lógica da cidade como mercadoria, uma cidade à venda. As falas capturadas na linguagem jornalística revelam que a apropriação emerge da prática, buscando constituir outro espaço vivido, estabelecendo uma ruptura no cotidiano, um momento de elevação acima da cotidianidade visibilizado no espaço público.
Assim, denunciar pela rima do rap ou por interferência artísticas sob muros, viadutos e marquises o óbvio, que a cidade está à venda, instaura um signo que desmascara a neutralidade sob a qual o poder público se abriga para, com o mercado, gerir o espaço urbano como mercadoria.
Referências
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Data de Recebimento: 18/04/2022
Data de Aprovação: 25/10/2022
1 El espacio dominado es generalmente cerrado, esterilizado, vacío. Su concepto sólo adquiere sentido uma vez es contrastado con el concepto opuesto e inseparable de apropiación.
2 Un espacio apropiado parece una obra de arte, que no es lo mismo que decir que sea un simulacro. A menudo, se trata de una construcción, de un monumento o de una edificación, pero no siempre es así: un sitio, una plaza o una calle pueden ser perfectamente considerados como espacios "apropiados". Tales espacios abundan ciertamente, si bien no siempre es fácil estimar en qué sentido, cómo y por y para quién fueron "apropiados".
3 Todo lo contrario: la práctica y el pensamiento teórico proclaman su importancia y reclaman su restitución.
4 Hablaré también de la "apropiación". Con este término no nos referimos a propiedad; es más, se trata de algo totalmente distinto; se trata del proceso según el cual un individuo o grupo se apropia, transforma en su bien, algo exterior, de modo que puede hablarse de tiempo o espacio urbano apropiados por el grupo que há modelado la ciudad; el espacio urbano de Venecia, de Florencia, es un espacio apropiado a las personas que han creado Venecia o Florencia.
5 Assinala-se que, nas conclusões de seu livro A produção do espaço, Lefebvre afirma que as línguas, todas em geral e cada uma em particular, expressam pobremente o tempo social e a prática social e, para a realidade urbana, escasseiam as palavras, e assim é preciso desconstruir e reconstruir as línguas e as linguagens pela e na prática social (espacial) (2013, p. 443). Uma de suas referências é às palavras usager e “usager” (no francês), para as quais propõe conteúdos diferenciados. A tradução de A produção do espaço em inglês utiliza, com e sem aspas, “users”. A tradução em espanhol utiliza usuários, nem sempre apontando, com aspas, a distinção em Lefebvre. O livro não tem tradução em português. Seabra (1996, p. 78) assume por usager o usuário e por “usager” o usador. A história, diz a autora, já registra a metamorfose do usuário em usador, aquele que usa sem mediação: “De modo que para o usuário estão os modos de consumo, com o que se forja a identidade do consumidor, enquanto para o usador estão relações de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados à realização de energias vitais: o espaço do corpo, os alimentos, o sono...” (SEABRA, 1996, p. 78).
6 Para Sánchez-Casas (1987, págs. 23-26) a alienação se vive como: segregação (em relação ao conjunto social); dominação (exploração econômica, opressão política e/ou coisificação cultural em relação ao meio institucional); agenitud (desorientação geográfica e estranhamento em relação ao meio físico). Na Introdução à edição espanhola do livro de Lefebvre A produção do espaço, Gutiérrez cita o esquema proposto por Sánchez-Casas e utiliza a palavra extrañamiento em lugar de agenitud.
7 Maior grupo de comunicação de Santa Catarina, o Grupo NSC é formado pela emissora de televisão NSC TV, afiliada da Rede Globo; pelo portal de notícias NSC Total, em plataformas digitais; pelos jornais Diário Catarinense, A Notícia, Jornal de Santa Catarina e Hora de Santa Catarina; e pelas emissoras de rádio CBN Floripa, Atlântida, Itapema e CBN Joinville. Já o Coletivo Maruim surgiu em 2014 e em 2016 consolidou uma associação para possibilitar o sustento financeiro de suas produções, porém tendo atividades reduzidas a partir da pandemia de Covid-19.
8 O Grupo ND é um conglomerado de mídia sediado em Florianópolis (SC), criado em 2019 a partir da cisão das empresas catarinenses do Grupo RIC, criado em 1987, e é formado pelo jornal Notícias do Dia, de onde vem sua sigla, sete emissoras de TV, uma revista e um portal de notícias, totalizando dez veículos de comunicação.