Cartografias afetivas: trajetos incertos, inventando cidades


resumo resumo

Kátia Maria Kasper
Gabriela de Sousa Tóffoli
Thalita Alves Sejanes



Fonte: as autoras.

 

Cenas urbanas

Este texto envolve pesquisas em torno da cidade1. Cidade vivida, inventada, sonhada. Cidades tantas. O ato de perambular por elas produz deslocamentos, perturbações nos modos costumeiros de pensar, agir e sentir. Tensionamentos nos processos de subjetivação. Cartografias que inventam cidades, criando percursos e escrevendo neles e com eles, nas ruas, rios subterrâneos, linhas que criam conexões em abertura. Colocar-se na cidade e, ao caminhar por ela, provocar estranhamentos, desvios do habitual, das familiaridades. Uma deriva que abre entendimentos de um tempo não cronológico, acolhendo cidades-sonho, dos traçados, do trajeto ir e vir, de lugar nenhum, cidade organismo vivo. Acolhendo as existências mínimas (LAPOUJADE, 2017). A caminhada, assim como a escrita, se revela errante, nômade, atravessa avenidas e sustenta a atenção quando lhe é convocada.

Um convite para pensar as cidades pelas marcas de quem por ela caminha, inventando percursos e cidades ao caminhar. Pensar o caminhar como ação ética, estética e política. Como deslocamento das utilidades e funcionalidades dos percursos e da vida, abrindo possibilidades outras. Transversalmente, produz-se cidades e subjetividades (NOGUEIRA, 2017). Experimentar a errância, o vagar, nômade, em processos de invenção de cidades e de si, com cartografias afetivas. Desse modo, o processo de caminhar e escrever, a cartografia como metodologia de pesquisa e alguns indícios de resultados provisórios dessas pesquisas - que confluem neste texto - se emaranham nas linhas e entrelinhas deste texto, abrindo mundos possíveis. Um caminhar que inventa pesquisas e pesquisadoras, no enquanto, no entre. Nos interessa criar pensamento com a cidade, um olhar não totalizante, nos traços, nos passos, escritas em comum e os modos que envolvem os processos de subjetivação das pesquisadoras.
           Buscando engendrar variações e fissuras nos modos de sentir, pensar, agir; nos modos de fazer pesquisa. Caminhar que convoca uma presença, a construção de um corpo atento e sensível, na imanência. Um corpo que em estado de deriva acolhe sons, paralelepípedos, heras, sensações, cores e gritos de uma cidade que está por vir, que solicita, um passo, uma atenção, uma escrita que se faça com a cidade e com a caminhada.

Frédéric Gros (2010) nos convida a pensar com os pés. Em certo momento de seu livro Caminhar, uma filosofia, entre os percursos do autor com diversos filósofos, ele se debruça em direção a Walter Benjamin e o flâneur das cidades (BENJAMIN, 1989). Perambular supõe três elementos: a cidade, a multidão, o capitalismo. O flâneur caminha inclusive entre uma multidão, nessas concentrações urbanas do século XIX, no momento em que as grandes cidades viraram paisagem. Esta pode ser percorrida como uma montanha, uma selva, com reviravoltas de perspectivas e surpresas. O flâneur tem um papel subversivo em vários sentidos. Subverte a mercadoria e seus valores, a cidade, a multidão. Subverte a solidão e a rapidez. Escava, no interior da solidão pesada, aquela do poeta e do observador (GROS, 2010). Imperceptível, talvez, deslocado da multidão, de modo singular. Com ritmo próprio, resiste à velocidade. O caminhante desacelera o corpo, continuando a deslocar-se, notando lampejos, faíscas, aproximações e encontros. Atento. Subverte sem contrapor-se, mas desviando. Não consome, nem é consumido. Garimpa (GROS, 2010, p. 179). Resiste ao utilitarismo. “Ele é um inútil perfeito e sua ociosidade o condena a permanecer à margem” (GROS, 2010, p.180). Ele “intercepta no ar encontros improváveis, encontros furtivos” (GROS, 2010, p. 181). Nesse sentido, convida-nos a seguir pelas ruas da cidade, garimpando, catando (KASPER; TÓFFOLI, 2018), mesmo que odores e impressões.

Diversos são os modos de garimpar. Entre eles, temos a pesquisa de Batista e Belmino (2020) afirmando uma nova flânerie ao olhar para a cidade de Fortaleza e seus habitantes viajando em um ônibus circular. Muitas são as posteridades da flânerie baudelairiana, nos lembra Gros. Uma delas, a errância surrealista, trazendo as dimensões da noite e do acaso. A derivação situacionista, teorizada por Guy Debord, com a “exploração sensitiva das diferenças”, “deixar-se transformar pelo ambiente” (GROS, 2010, p. 182). Inspiradas também nos situacionistas, caminhamos, um pouco à deriva. Perder-se perambulando pela cidade torna-se um valor, pois se deixa de exercer controle e domínio, deixando-se levar pelo próprio espaço. Visa-se perder o controle e experimentar outros estados de corpo e pensamento (MOREIRA, p. 30). Careri (2013) nos lembra que os situacionistas propunham olhar para o tempo e o espaço da cidade de forma não utilitária e praticar a cidade desse modo envolvia a preparação de uma revolução fundada no desejo.

Escrita que inicia e segue, pois caminha com quem escreve. Espera, respira, recupera o fôlego, quer sondar por trás das grades da casa da esquina. Escrita que acelera como se no ir e vir das pernas quisesse logo pôr a ver algo que chega sem aviso. Escrita dos detalhes que assim como se apresentam, vão embora na próxima mirada, que é chamada para outra a todo momento.

Uma escrita fragmentária, composta de pequenas cenas, conversa com os passos desequilibrados que atravessam as cidades. Com os corpos que se abrem ao desconhecido, numa cartografia intensiva (ROLNIK, 2007). Corpos que afetam e são afetados pelas forças do entorno. A cartografia busca também criar língua para dar passagem aos afetos.
              Escrever nas linhas do que brota, fura, empaca, erra, desencontra. Prolifera.
           Caminhar desenhando. Trajetos na cidade, traçando encontros inesperados. Tantas redes na cidade: com o aracniano, criar circunstâncias. Fernand Deligny (2015) nos provoca e inspira: “Se uma rede era assim tramada, tratava-se de capturar o quê? Tratava-se de usar as ocasiões e, além disso, o acaso - isto é, as ocasiões que ainda não existiam, mas que em ocasiões se transformariam pelo uso que faríamos da ‘coisa’ encontrada” (DELIGNY, 2015, p. 20). A cidade pelas suas tessituras. Caminhar, tramando. Urdiduras. Caminhar sem antever o que se encontrará.

Delineia-se uma metodologia.

Como as teias da cidade ressoam com o fazer da aranha? Caminhar atento, corpos de longas e finíssimas linhas, encontra e desencontra aqui e acolá. “No entanto, o que o aracniano nos ensina é que não se trata, para a aranha, de querer, por meio da tessitura de sua teia, ter moscas; é tramar que importa” (DELIGNY, 2015, p. 65).

No lugar do fazer reiterativo do mesmo, do que já se sabe, o agir. Agir sem fim, em ações não intencionais, sem finalidade e que não cessam (MIGUEL, 2015, p. 59). Linhas de errância.

Escrever e desenhar com a cidade.

Desenhos traçados pelas autoras, compondo com a escrita. Desenhos da caminhada buscando um efeito de estranhamento. Paisagens inventadas caminhando. Desenhos que se inventam nos caminhos. Dissonâncias traçam um movimento, fazem-se traço. Metodologia criadora de circunstâncias e procedimentos. Visando experimentar, pois pensar é sempre experimentar. No lugar da interpretação, a experimentação (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Ações de traçar que aprendemos com o aracniano. Agir. Com linhas que se tramam pelas ruas. Infinitas. Intermináveis.

 

Que o traçado das linhas do aracniano da rede seja tão permanente quanto as linhas da mão, isso é mais ou menos o que quero dizer, exceto pelo fato de que a rede das linhas da mão se vê sem dificuldade, ao passo que o aracniano está - incessantemente - por descobrir (DELIGNY, 2015, p. 68).

 

Vagar traçando um trajeto. Presença. Atenção. Ação: Parar. Reparar. Agir. Deligny afirma que ou a rede é um agir ou não é rede (DELIGNY, 2015, p. 87). Rede que forma e se desforma, deforma, precária. Seu único suporte é “a brecha, a falha. Se se tratar de uma janela, a rede se torna cortina” (DELIGNY, 2015, p. 30).

              Talvez, o melhor seja falar em atração pelo vago.

 

Vago é uma palavra que parece ter origens díspares, o que confere vastidão e diversidade ao eco que ela produz.

Vaga é a onda na superfície da água, vago é o espaço vazio, o que o espírito tem dificuldade em apreender, enquanto vagar é andar ao acaso (DELIGNY, 2015, p. 19).

 

Fonte: as autoras.

 

Cartografias afetivas

Cata pedrinhas descendo a rua pela manhã. A caminho de construir pontes, sapos, casas e espadas o menino inventa borboletas. Enquanto as bicicletas circulam entre pernas e dentes, um homem cai.

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Velocidade desenhando uma cidade imensa. Num tempo, aos dezessete, no metrô. Miram as janelas que refletem o vagão, olham profundamente. Uma luz branca, lâminas de vidro pretas. Metade breu, metade espelho. Debaixo da terra.

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Da casa no telhado do armazém duas pombas alçam voo e planam sobre a vizinhança.

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Uma moça na banca de jornal, segurava um copo de café ou cerveja às onze horas da manhã e dizia: - Vou tomar esse gole e vou lá em casa acordar o povo.

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A escritora que em sua literatura copia tudo do que ouve por aí, ouve a provocação que o lugar de criar, que o lugar de aprender é na rua, vagando pela cidade a escutar.

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 As cerejeiras. Minúsculas flores, degradê.

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A primavera coral balança ao vento, abrigo de uma rolinha arisca.

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Um joão de barro faz sua casa na ponta do poste. Lá em cima.

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O telhado de zinco todo retalhos, qual tapete remendado, perfurado pela chaminé, protege. Do frio. Da chuva. Do vento. Da morte? Do orvalho que cai, brilhando. Sereno.

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O ônibus que passa deixa coleções de rachaduras na casa e nos novos moradores distraídos.

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A paisagem parece estar levemente empoeirada, enquanto uma jovem caminha mastigando pão quente, crocante. Carrega um grande saco de pão na mochila. Afasta-se cada vez mais do centro, passando a ser acompanhada por um bando de vira-latas que, aos poucos, vão ganhando, eufóricos, restos de pão. Outros chegam. Mon Oncle? E então já estão nas fronteiras da cidade, tomados por terrenos baldios e matos crescendo vigorosamente (LIMA; KASPER; TÓFFOLI, 2018, p. 609).

 

Fonte: as autoras.

 

 

amassa o alho, cebola em lâmina, azeitona

choro e azeite

Intacta retina

refoga

tampouco turva-se a lágrima nordestina

Putanesca em Teresina

apenas a matéria vida era tão fina.

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Um odor estranho toma conta da cidade. Entre alfazema, jasmim e um tanto de melancolia. Mesmo com o sol ardente invadindo o dia. Mesmo com a leve brisa que às vezes circula. Mesmo com a pressa dos automóveis, em plena pandemia. Mesmo assim o odor persiste.

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O gato cinza de rabo cortado dança sobre o muro. Saltita engenhosamente, cambaleando com o rolo de arame farpado.

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Muros de uma mesma rua acolhem diferentes trepadeiras. Tem as que gostam de sol. Na sombra, lentidão.

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Ouvia a história do caboclo d'água desde menino cor de rapadura. Dorme sonhando na casa à beira do rio.

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No canto da tela, Folia de Reis.

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Em meio a tantas cidades, esta produz o torto, o cambaleante, o polido e o defeituoso, a tosse e a corcunda. Entre o velho encurvado no degrau da escada, o garoto chupando picolé, o gari espetando a papelada, o vendedor de ouro, o adivinho, a escritora de cartas e os absurdos do espetáculo homem, o olho da cidade paira sobre ela mesma, flutuando entre os turbilhões dos comércios e o mar de cabeças. (LIMA; KASPER; TÓFFOLI, 2018, p. 609)

 

Fonte: as autoras.

 

Linha imaginária que alguém risca ao correr. Muitas linhas. Motos, carros, bicicletas e a cidade gira.

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Menino taca pedras em pomba. Voou. Procura outra.

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Saem as duas, uma na outra, ligadas por uma cordinha de alças largas. Ela dita o ritmo inicial, vontade de sair. Eu deixo. Respiro. Uma transa entre velocidades encontra um ajeitar mútuo, mais devagar. Trotando quase. O pastor alemão da casa da esquina cumprimenta, ela responde. Descemos a rua rumo ao cruzamento de paralelepípedos. Ali ela toma a decisão e viramos à esquerda. Um motoqueiro aguarda na sombra alguma entrega apitar no celular. Ela olha. Um pouco à frente abre-se um túnel vegetal na calçada, limoeiros, árvores de uma certa idade, canteiros amontoados de espadas de são jorge e jiboias que trepam na árvore maior. Ela para, olha. Eu paro, quero. Ela evita, atravessa a rua em diagonal, traçando um curvo trajeto entre a moto e o meio-fio. Os amontoados de plástico preto exalam o irresistível, enquanto algumas moscas disputam uma minúscula abertura. Ela cheira. Eu paro. Ela acelera. Eu paro. Ela gosta de subir correndo as rampas de acessibilidade das lojas de calçados. Rampas de parkour. Ela brinca. Eu sorrio. Um ônibus ligeirinho passa e desloca uma considerável massa de ar. Ela sente. Eu paro. Ela olha. Eu olho. Esperamos. Ela decide voltar. Seguimos. Os jasmins dos poetas estão floridos. Ela cheira. Eu cheiro.

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Odor de fritura atravessa a calçada enquanto caminhões de lixo circulam. “Ursinhos atrás das grades. Chiados.” (KASPER; LIMA, 2018, p. 171)

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À frente da janela, no canto da tela sussurram Odara.

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Na esquina, um terreno baldio. Inanimados os que nunca foram uma coisa só.

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Em alguns bairros da cidade, é curioso observar o movimento oscilante entre proliferação e retração de bandeiras verde-amarelas na frente de residências e casas comerciais.

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Manhã ensolarada de domingo, tropeçando nos paralelepípedos do Largo da Ordem, uma criança corre para assistir os músicos em frente à memorável capela.

No Largo da Ordem uma multidão sobe e desce as ruas por entre barraquinhas da feira de artes e artesanato. Na esquina alguém grita: Você não me viu, Fernando!

Um vai e vem ininterrupto, calor com cheiro de fritura e incenso.

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Ruas paralelas, perpendiculares, obtusas, como um grande sistema circulatório. Fluindo pelas veias e artérias da cidade, massas humanas vêm e vão. Gente que anda rápido, mesmo enquanto aguarda. Malabaristas nos sinaleiros. Gente que caminha pelas ruas. Gente que pára e bate os pés impacientes diante das vitrines, nos bancos, nos mercados, nos açougues. Gente que segura senha. Gente na fila da lotérica (LIMA; KASPER; TÓFFOLI, 2018, p. 608).

 

 

Fonte: as autoras.

 

Um vagão despeja cascalho nos trilhos do trem que circula a ciclovia. Sobe no ar uma poeira cinza clara. Mal se pode perceber os funcionários que juntam as pedras próximas dos trilhos. Eles usam uniforme com capacete. Não falam.

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O trem corta a cidade. Estrondos. Apitos. Tudo se interrompe para que o trem passe. Abrir alas. Dar a vez. E ele segue, tuc-tuc tuc-tuc, rugem as rodas, trem de carga deixando para trás toda gente perplexa.

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“Gritinhos de crianças. Gira-gira. Cabelos arrastam no chão. Vertigem. Vizinhança
solidária. Vizinhos de olho” (KASPER; LIMA, 2018, p. 171).

De repente chove.

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A primavera coral balança ao vento, abrigo de uma rolinha arisca.

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Um joão de barro faz sua casa na ponta do poste. Lá em cima.

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A cidade é sinestésica, feita de bricolagens. Dentro, o cheiro de café com pão fresco de padaria. O barulho de jornal folheado por mãos anônimas. Manhã ensolarada e fria de inverno. Fora, a circulação rápida e enérgica, o perpetuo desviar das gentes. E o incêndio que consome a casa de madeira do vigia em prantos.

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Dia sim, dia não a cobra de cetim escala o poste avermelhando traços, cicatrizes de concreto. Durante a noite ela desce, confundindo o rubro rastro.

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Motores e latidos emaranhados ao longe.

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Paralelepípedo escorregadio. Azulejos azuis, cobertores na calçada, no telhado. Invisível no escuro. Caça palavras. Quaresmeira: apenas cartões de débito. Lingerie rosa antigo no calçadão. Fontes. Chafariz. Canteiros. Sacolas plásticas. Muitas. Bustos de bronze. Chafarizes. Murmúrios, burburinhos. Passadas, cantos de pássaros. Motores e freios. Miados. Gritos. Risadas. Sirenes. Entre tiquetaques barométricos uma pena flutua entre telhas e beirais. Uma folha atravessa o caminho. Caindo. Contornando. E foge. Frio na pele. O ônibus freia bruscamente. Afia-se facas (KASPER; LIMA, 2018, p. 172).

 

***

Já não se pode afirmar que os reservatórios de água da cidade estão abaixo da média histórica para o período. Choveu nos últimos dias. Choveu dias e noites, ininterruptamente. Para onde foram os pássaros?

***

Cidade em obra. Contornos e alturas. Cinzas. Batem marretas, martelos. A esmerilhadeira rasga os ouvidos da metrópole. Betoneiras. Guindaste suspenso. E os andaimes pingentes, jogos de armar. Enormes véus transparentes envolvem paredes inteiras de edifícios. Com o vento, eles se movem, dançando entre as paredes e o ar. (LIMA; KASPER; TÓFFOLI, 2018, p. 608).

 

***

Sonhar vagalumes

Como numa caminhada, uma escrita com a cidade contém pausas, alterações de ritmo, tropeços, encruzilhadas, variações de trajeto. Caminhar, deriva que convoca um corpo disponível, uma atenção flutuante, abertas aos efeitos das afecções que nos atravessam ao sermos contagiadas pela cidade. Efeitos que produzem variações, aumentando nossa potência de agir. Rasgos, traços, desenhos e palavras que parecem sondar passos, abrindo perspectivas outras, com as peles de uma cidade, cocriando com ela. Eis aqui algumas questões que movem esse texto. Nos interessa acolher incertezas, solicitações das pombas, das sombras. Alguns ipês numa praça. Sentar num banco, ficar ou uma pausa, quem sabe até que o sol se esconda atrás do prédio espelhado à nossa frente.

Rua de cima do chão, em cima da nuvem. Em cima do chão, O céu, o rio, a rua. Canoas caminham nos igarapés da cidade água de cima do chão, outros deslocamentos. Rua, rio, beira mar. Caminho de pássaros. Da rua de cima do chão. Rua do Peixe. Sem chão. Rua das canoas. Sem chão. Debaixo da terra, a água da cidade líquida percorre trajetos escondidos. Entradas e bueiros. Trajetos escondidos. Caminhar, trajetos escondidos. De algum modo inventar as ruas que ainda não existem, deslocar no sentido de um mapa ainda por vir. Caminho dos morros, pernas e panturrilhas. Daqui de cima do chão, vagalumes, relâmpagos sobem e descem o morro, às cinco da manhã e às sete da noite. O vento também sobe o morro, depressa, assusta os cabelos arrumados da moça que carrega sacolas feitas de crochê. Pistas. Tantas as ruas quantas as de um sonho, de um pássaro. Nos paralelepípedos da cidade, fuligem, musgos e insetos. Um passo em falso e pronto, tropeços da percepção. Atenção distraída para qualquer coisa que não seja o passo. Possibilidades de um caminhar sonho, da deriva pássaro, do percurso vento, de uma cidade musgo, de um sobrevoar vagalume.

 

Fonte: as autoras.

Referências

BATISTA, Rosana Roseo; BELMIRO, Sílvia Helena. Por uma nova flânerie: um olhar para Fortaleza a partir de viagens nos transportes públicos urbanos. RUA[online], v. 26, n. 2. p. 411-428, 2020. Disponível em: https://www.labeurb.unicamp.br/rua/artigo/pdf/279-por-uma-nova-flanerie-um-olhar-para-fortaleza-a-partir-de-viagens-nos-transportes-publicos-urbanos. Acesso em: 20 set. 2021.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução brasileira José Martins Barbosa; Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas, 3)

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. Tradução brasileira de Frederico Bonaldo. São Paulo: Ed. Gustavo Gilli, 2013.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução brasileira Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.

DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução brasileira Lara de Malimpensa. São Paulo: n-1 edições, 2015.

DELIGNY, Fernand. Os vagabundos eficazes: operários, artistas, revolucionários: educadores. Tradução brasileira: Marlon Miguel. São Paulo: n-1 edições, 2018.

GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. Tradução brasileira Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992.

GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. Tradução brasileira Lília Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações, 2010.

KASPER, Kátia Maria. Perambulações entre cartografias e devires em cartografias de-formativas. In:VICENTINI, Paula Perin; CUNHA, Jorge Luiz da; CARDOSO, Lilian Auxiliadora Maciel. (Org.). Experiências formativas e práticas de iniciação à docência. Curitiba. CRV, 2016, v. 2, p. 295-314.

KASPER, Kátia Maria; LIMA, André Pietschi; TÓFFOLI, Gabriela de Sousa; SEJANES, Thalita Alves. Caminhar e escrever: linhas funâmbulas proliferando cidades. Linha Mestra, Campinas, v. 15, n. 45, p. 312-321, 2021. Disponível em: https://lm.alb.org.br/index.php/lm/article/view/1015. Acesso em: 04 out. 2022.

KASPER, Kátia Maria; TÓFFOLI, Gabriela de Sousa. Errâncias: cartografias em trajetos de-formativos. Leitura: Teoria & Prática, Campinas, v.36, n.72, p. 85-98, 2018. Disponível em: https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/view/666/444. Acesso em: 20 set. 2021.

KASPER, Kátia Maria; LIMA, André Pietsch. Travessias. Revista Observatório. Palmas, v. 4, p. 167-175, 2018. Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/4578. Acesso em: 14 nov. 2021.

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LIMA, André Pietsch; KASPER, Kátia Maria; TÓFFOLI, Gabriela de Sousa. Passeios. Linha Mestra, Campinas, v. 12, n. 36, p. 608-611, 2018. Disponível em: https://lm.alb.org.br/index.php/lm/article/view/174/183. Acesso em: 14 nov. 2021.

MIGUEL, Marlon. Guerrilha e resistência em Cévennes. A cartografia de Fernand Deligny e a busca por novas semióticas deleuzo-guattarianas. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. Rio de Janeiro, v.8, n. 1, p. 57-71, 2015.

MOREIRA, Vânia Medeiros. Cidade passo: conversações entre arte, design e etnografia. Orientadora: Lara Leite Barbosa de Senne. 2017. Dissertação (Mestrado em design e arquitetura) - Faculdade de Arquitetura, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

NOGUEIRA, Pedro Caetano Eboli. Do urbanismo tático à tática urbana: corpo e política na poética do coletivo Opavivará! Orientadora: Denise Berruezo Portinari. 2017. Dissertação (Mestrado em Design) - Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2017.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina: Ed. UFRGS, 2007.

SEJANES, Thalita Alves; KASPER, Kátia Maria. Educações Selváticas entre corpos e cidades. Linha Mestra, Campinas, v. 15, n. 44, p. 142-149, 2021. Disponível em: https://lm.alb.org.br/index.php/lm/article/view/572. Acesso em 04 out. 2022.

Data de Recebimento: 18/05/2022
Data de Aprovação: 24/09/2022


1  Esse artigo envolve a confluência de pesquisas de suas autoras envolvendo principalmente: a cidade, a escrita, os processos de subjetivação. Pesquisas de doutorado em andamento e pesquisa da orientadora. Algumas publicações decorrentes dessas pesquisas: Perambulações entre travessias e devires em cartografias de-formativas (KASPER, 2016); Passeios (KASPER; LIMA, 2018); Travessias (LIMA; KASPER; TÓFFOLI, 2018); Errâncias: cartografias em trajetos de-formativos (KASPER; TÓFFOLI, 2018); Caminhar e escrever: linhas funâmbulas proliferando cidades ( KASPER; LIMA; TÓFFOLI; SEJANES, 2021); Educações selváticas entre corpos e cidades (SEJANES; KASPER, 2021).






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