|
Conceitos
Lingüísticos
Colonização - Lingüísitca
Os
efeitos ideológicos de um processo colonizador materializam-se em
consonância com um processo de colonização lingüística, que supõe a
imposição de idéias lingüísticas vigentes na metrópole e um ideário
colonizador enlaçando língua e nação em um projeto único.
A colonização lingüística é da ordem de um acontecimento, produz
modificações em sistemas lingüísticos que vinham se constituindo em
separado e, ainda, provoca reorganizações no funcionamento lingüístico das
línguas bem como rupturas em processos semânticos estabilizados.
Colonização lingüística resulta de um processo histórico de encontro entre
pelo menos dois imaginários lingüísticos constituivos de povos culturamente
distintos − línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos
desiguais −, em condições de produção tais que uma dessas
línguas − chamada de língua
colonizadora − visa impor-se sobre a(s) outra(s),
colonizada(s).
Os efeitos decorrentes desse processo de colonização lingüística, porém,
não são sempre os mesmos nem não são previsíveis; basta que se observem
comparativamente as trajetórias das diferentes línguas indígenas, das
línguas africanas e de línguas colonizadoras como o português, o inglês, o francês e o
espanhol nas Américas.
Se, de um lado, há um encontro da
língua de colonização com outras (européias, indígenas ou africanas), de
outro, há um lento ‘desencontro’ dessa língua colonizadora com ela mesma. Assim, a colonização lingüística também
pode ser apreendida como um acontecimento lingüístico bastante específico:
um (des)encontro lingüístico no qual os sentidos construídos são
singularizados em situações enunciativas singulares, situações histórica e
paulatinamente engendradas que vão dando lugar ao surgimento de uma língua
e de um sujeito singulares.
Em termos sintéticos, a colonização lingüística do Brasil pode ser apresentada
conforme os pontos enumerados abaixo:
1) Os colonizadores e administradores falam e escrevem sobre as línguas
desde os primeiros momentos do contato. Esse conjunto de dizeres sobre
as outras línguas vai instituindo um lugar para elas. É um lugar organizado
a partir de um domínio de saber lingüístico, alimentado por um imaginário
já pré-constituído, ao mesmo tempo em que passa a fomentar o saber sobre as
línguas e a circulação de outros sentidos não previstos. Talvez aqui se encontre um dos aspectos
de maior exclusão presente na colonização lingüística, pois frente à
construção desses dizeres não há um “direito lingüístico de resposta”: os
índios não podem nem contestar a interpretação portuguesa, uma vez que não
sabem o que está sendo dito sobre eles, nem têm como deixar na memória sua
interpretação sobre esse desconhecido português, já que sua língua não tem
escrita.
2) Faz parte da colonização lingüística um estudo das línguas desconhecidas
como forma de dar sustentação às idéias lingüísticas vigentes. No caso
português, a colonização lingüística no século XVI sustenta ideologicamente
o próprio ato da expansão marítima e religiosa. É, por exemplo, de Fernão
de Oliveira um dos enunciados que fundam e fundem as políticas
expansionistas e lingüístico-religiosas:
“...melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma.” (Oliveira,1975).
Ou ainda, como afirma João de Barros seguindo essa direção: “... per esta
nossa arte aprenderem a nossa linguagem com que possam ser doutrinados em
os preceitos da nossa fé, que nella vam escritos.” (Barros,1971). Esses
enunciados, retomados parafrasticamente ao longo do processo colonizador
pela legislação colonial, reaparecem no século XVIII no Diretório dos
Índios promulgado por Pombal como forma de reafirmação dos sentidos já
estabelecidos e também como forma de oficializar em definitivo a língua
como uma das instituições nacionais portuguesas na colônia: “Sempre foi
máxima inalteravelmente praticada em todas as nações (...) introduzir logo nos povos conquistados
seu próprio idioma...”
3) Tão importante quanto a imposição da língua de colonização é o
aprendizado das línguas desconhecidas. Na colonização brasileira, esse
aprendizado ou se realizou oralmente ou em função da gramatização, como
decorrência das formas como ia se dando o contato: inicialmente, os
línguas, e depois os colonos e os bandeirantes, por exemplo, aprendiam
oralmente; já com os religiosos, tanto ocorre uma oralização quanto ocorre
um ensino-aprendizado a partir das gramáticas e vocabulários que vão sendo
escritos.
3.1) Para os colonos, o aprendizado da(s) língua(s) desconhecida(s) faz
parte de um processo de conhecimento e de dominação da terra, como foi, por
exemplo, a situação dos bandeirantes.
3.2) Para os religiosos, aprender a língua é uma forma de apreender a cosmologia
indígena, e, assim, melhor traçar os caminhos mais adequados para uma
conversão dos sentidos indígenas em católicos. A gramatização permite a
construção de uma escrita, possibilitando a tradução e a conversão
lingüístico-cultural de orações e outros rituais sagrados, como o batismo e
as confissões. Esse processo permite, inclusive, o ensino da língua geral
na metrópole, levando à produção de um efeito não previsto: uma outra
língua passa a integrar materialmente o espaço da língua de colonização. Aprende-se uma língua imaginária,
aprisionada nas redes de um modelo gramatical latino, e, ao mesmo tempo,
apreende-se um imaginário sobre as línguas e sobre a colônia.
4) Nesse processo de aprendizado, há um estabelecimento de denominações
para a flora, fauna e geografia da terra desconhecida, ou seja, organiza-se
uma taxionomia semântica a partir da representação lingüística feita para
os termos indígenas, misturados a termos provenientes do colonizador. As denominações, pensadas aqui em termos
da construção discursiva dos referentes, vão tornando transparente a
opacidade constitutiva do que é desconhecido, ou seja, engendram sítios de
significância codificados em termos do domínio de pensamento do
colonizador. (V. Orlandi,2002,p 29) Nessa ótica, são elas que ficam nas
gramáticas portuguesas como vestígio possível da presença do que havia sido
excluído. Assim, sob o rótulo
“provincialismos” ou “termos da língua geral do Brasil”, a língua
colonizada tem seu lugar demarcado como uma diferença tolerável e já
absorvida.
5) Paralelamente, apesar da forte presença sobretudo da língua geral,
organiza-se a imposição da língua de colonização de forma a atingir,
visando à difusão do português
como língua e cultura da metrópole, um monolingüismo idealizado.
Cidades, portos e fortes são locais de administração e legitimação dessa
ambiência lingüístico-cultural predominantemente portuguesa. Nos portos e
nos fortes, é na modalidade escrita da língua portuguesa que se faz o
registro de entrada e saída de mercadorias, por mais que haja a pressão de
diferentes línguas em circulação.
Nas cidades, o latim e o português são ensinados em sua forma
escrita e ocupam outros espaços institucionalizados da metrópole: escolas,
tribunais e igrejas. Ensina-se o
português fixado pela gramática, que assegurou a Portugal sua unidade e
identidade como nação, de forma a garantir na colônia a reprodução desse
imaginário. Embora nos termos dessa descrição gramatical voltada para o
ensino e a escrita, haja a fixação da imagem do português como língua una e
homogênea, garantindo uma estabilidade lingüística necessária ao seu ensino
longe da metrópole, sua historização na colônia não fica imune ao contato
com as demais histórias e culturas.
6) Finalmente, a colonização lingüística supõe o estabelecimento de políticas
lingüísticas explícitas como caminho para manter e impor a comunicação com
base na língua de colonização.
Delimitando os espaços e as funções de cada língua, a política
lingüística dá visibilidade à já pressuposta hierarquização lingüística e,
como decorrência dessa organização hierárquica entre as línguas e os
sujeitos que as empregam, seleciona quem tem direito à voz e quem deve ser
silenciado. A formulação e execução
de uma dada política lingüística, no entanto, não impede totalmente a
circulação e o amalgamento das línguas e dos sentidos.
Apesar da força engendrada pela colonização lingüística, não há ritual sem
falhas, e a comunicação supõe, também, a não comunicação, como nos lembra
Michel Pêcheux. (Pêcheux,1988).
Assim sendo, à revelia da colonização lingüística oficialmente
imposta, pequenos lugares de esgarçamento nessa ideologia de dominação pela
língua da metrópole vão sendo constituídos, permitindo, dessa forma, o
surgimento de outros sítios de significação. O estudo desse processo permitiu delinear
os seguintes lugares de resistência à colonização lingüística:
1) Ao longo da colonização, os índios vão construindo um lugar frente ao
português, no qual eles redirecionam os processos de significação
engendrados na língua de colonização.
Assim, a partir de suas próprias línguas, a resistência se faz com
base na simulação dos gestos que legitimam a língua portuguesa aos olhos e
ouvidos do próprio colonizador.
Reproduzem, por exemplo, a imagem da leitura de textos escritos,
mesmo sem saber ler; fingem que aprendem a língua ou aprendem para discutir
com comerciantes ou para refutar a legislação que se estabelece a seu
respeito; aprendem a língua portuguesa e mentem valendo-se dessa mesma
língua.
2) O aprendizado sistemático da língua geral, feito indistintamente por
moradores da colônia, produz comunidades discursivas opacas ao entendimento
da língua da metrópole.
3) Além disso, a gramatização do tupinambá pelos jesuítas, o “eleva” a um
patamar de língua européia, pois seu funcionamento gramatizado permite a construção
de uma escrita que venha dar forma jurídica às novas relações sociais e
políticas presentes na colônia.
4) Para as denominações, vão sendo engendradas memórias, ou seja, vai sendo
construída uma discursivização outra, ao mesmo tempo em que vai sendo
produzido um esquecimento das relações entre palavras e coisas tal como se
dava em Portugal;
5) Para além do ensino regular do português gramaticalizado ou da
gramatização do tupi, os espaços de oralidade organizados em torno da
língua geral e do próprio português se misturaram e se entranharam no modo
como a língua portuguesa ficou na colônia.
Dito de outro modo, a formação histórica da colônia é marcadamente
oralizada e, inversamente, nessa oralização estão materializadas as
histórias dos sentidos das duas línguas e a memória do modo como ambas se
modificaram em função da própria colonização lingüística.
6) A política lingüística planejada e executada não dá garantias para uma
estabilização dos sentidos postos em circulação e que vão se constituindo em
função do contato e à revelia das instituições gerenciadoras do que se pode
e se deve dizer.
Da colonização à
institucionalização lingüística
Para a língua portuguesa se tornar língua de colonização, foi necessário
que ela fosse instituída, tivesse um caráter institucional, conforme foi
dito. Ela foi fundada como
instituição, legitimando Portugal como nação. Em termos históricos, aos portugueses é
natural, óbvio, ter a língua portuguesa como língua nacional: português tanto designa o povo quanto a nação.
Na colônia, no entanto, não se reproduziu exatamente a naturalização do que havia na metrópole,
embora a colonização lingüística estivesse voltada exatamente para tal
reprodução. Operou-se uma disjunção histórica na própria palavra português
e, paralelamente, constituiu-se uma nação com outro lugar enunciativo e
com um outro nome: brasileiro.
A língua portuguesa, instituição da nação portuguesa, foi
institucionalizada na colônia, ou seja, foi necessário um ato
político-jurídico − o já mencionado Diretório dos índios
− para institucionalizar,
oficializar de modo impositivo que era essa, e apenas essa, a língua que
devia ser falada, ensinada e escrita, exatamente nos moldes da gramática
portuguesa vigente na Corte.
Institucionaliza-se, assim, A língua portuguesa com SUA memória de filiação
ao latim. O Diretório busca colocar em silêncio a língua geral e
seus falantes, caracterizando a referida língua como uma “invenção
diabólica”. Não se fala em um
português-brasileiro. Ele
ou não existe aos olhos da metrópole, ou, se existe, precisa ser corrigido,
melhorado, reformatado de acordo com os moldes gramaticais
portugueses. Aos olhos da metrópole
precisa ser a continuidade da imaginária homogeneidade que confere o
caráter nacional a Portugal. Mas os processos históricos, como se sabe, são
continuidade e mudança, sempre.
(B.M.)
|inicial | busca | créditos
| links | contato |
|