A palavra “sem-carro” é um neologismo formado tal como outras “palavaras-protesto” que têm surgido nas últimas décadas, e que formam um vocabulário político urbano. Como, afirma Vicente de B. Pereira (2014), uma das tendências atuais nas políticas públicas no Brasil é a de privilegiar o transporte modal rodoviário, e isso traz como uma de suas conseqências a valorização do transporte individual. Com isso, aqueles que não têm carro e utilizam o transporte público ou privado, no percurso entre casa e trabalho, ou entre casa e lazer, as condições estão longe de ver satisfeitas suas necessidades de condução.
Ao se nomear o sujeito urbano como sem-carro, e não como “pedestre” ou “transeunte”, termos utilizados nos discursos administrativos, produz-se um sentido de “falta”, evocado pelo morfema “sem”. E ao se ligar essa falta a um objeto de transporte, um veículo, surge uma diferença na formação social entre os que têm carro e os que não têm, e desse modo não é o discurso administrativo que é sustentado, mas sim o discurso político, de reivindicação, de protesto. Isso se acentua ainda mais na medida em que a palavra sem-carro se insere em uma série ao lado de “sem-terra” e “sem-teto”, dentre outras, que apresentam um mesmo processo de formação morfológica e participam igualmente da consituição de uma memória política. Assim, ao lado das noções de agricultura e habitação, a noção de transporte ganha uma palavra-protesto de funcionamento semelhante.
Mas a palavra sem-carro não se disseminou amplamente, como as duas outras da série. Nós nos deparamos com ela na crônica denominada “sem-carro”, presente no livro Loucos de Palestra, de Vanessa Bárbara (2014). Nessa crônica, a autora narra os acontecimentos relacionados a esses sujeitos que “precisam tomar duas conduções, seguidas de um trem (com baldeação), uma van clandestina, uma carona na rabeira de um caminhão, e um trecho de paralelepípido vencido a pé, totalizando um percurso que leva, em média, uma hora e quarenta minutos”. Em cinco páginas, encontramos palavras como “novos-pobres”, “autofóbicos”, “motorizados”, hora do “lufa-lufa”, “ex-pedestre”, “bilhete-único”, “equilibrista do coletivo”.
Esse vocabulário cotidiano dos transportes, em sua singularidade e provisoriedade, é um índice das discursividades que envolvem a relação entre os sujeitos urbanos e as instâncias de organização da cidade, discursividades essas marcadas pelas falhas, os equívicos, seja na forma humorística ou irônica das crônicas, seja na forma política dos protestos reivindicatórios e políticos.
Bibliografia
BÁRBARA, Vanessa. O sem-carro. In: O Louco de Palestra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
PEREIRA, Vicente de Britto. Transportes: História, crises e caminhos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.