Com a cidade industrial, o som das máquinas se espalha pela cidade. À intermitência do badalar dos sinos, advém uma continuidade do ruído das máquinas, dos automóveis, das fábricas, que espantam ou incomodam, ao mesmo tempo em que sinalizam o “progresso” ou suas consequências nefastas. Enquanto uma materialidade significante, o ruído na cidade produz sentidos diversos, ligados à constituição dos sujeitos, seja o do incômodo, o do “progresso”, o do trânsito, o da vida urbana, ou até mesmo o de uma situação política desagradável.
Alguns desses sentidos podem ser encontrados no romance “O Silencieiro”, do argentino Antonio Benedetto (1922-1986), um dos artistas exilados durante s repressão militar. Nesse romance nota-se um desses sentidos do ruído e do silêncio. Nesse romance, um personagem sem nome, ao se deparar, no portão de sua casa, com um ruído, que vem de “um terreno desocupado que nunca vi”, busca compreender o que ele é. Seu tio diz que vem do motor de um ônibus, que “não pode durar. Um ônibus vem e vai embora.”. Mas o personagem é abalado pela continuidade do ruído e diz: “- ‘Vem e vai embora’, isso é uma frase. Vem e vai embora quando anda pela rua. Não percebe que este ônibus é diferente, que está enxertado na nossa casa? Não o houve, por acaso? Claro, não vai ter de suportá-lo, o senhor não mora aqui!...”. O ruído significa aí um real contínuo que afeta os sujeitos na cidade, na casa, na rua, no espaço urbano; o ruído das máquinas, da cidade industrializada, na conjuntura de forte industrialização. O ruído do trânsito aparece aí como marca de um contínuo sonoro que constitui o sujeito urbano. Este se debate em vão diante da permanência, do absurdo, da ambiguidade do ruído, manifestando seus questionamentos existenciais e procurando silenciá-lo. O neologismo “silencieiro”, como “fazedor de silêncio” indica aí a contínua busca do silêncio, em uma fuga do excesso de ruído. Para além do sentido físico da sonoridade, uma das evocações possíveis para esse silêncio, é a do enfrentamento da ditadura, da tentativa de escapar a um incômodo contínuo na conjuntura de uma cidade tomada pelos sentidos de perseguição.
Na atualidade, outras formas da relação entre ruído e silêncio se apresentam. O uso do walkman e depois do celular, do i-pod ou do i-phone pode ser visto como marca de um outro modo de subjetivação, de individuação/alienação do sujeito, diante do contínuo sonoro da cidade. Resguardado da alteridade dos ruídos, os transeuntes badalam pelas ruas, indiferentes às mais diversas fontes de interrupção sonora. A individualização do sujeito se dá pela blindagem, pela fragmentação, pela compartimentação do som.
Mas a sonoridade também congrega quando inserida em uma situação, no espaço público, como acontece com os rappers que se ajuntam nas ruas, nas praças, em volta de um aparelho de som, que deixa o ruído das máquinas como ambiente de fundo diante da música acompanhada de rimas, de simulações de sons da cidade, e da narratividade urbana.
Bibliografia
DI BENEDETTO, Antonio. O Silencieiro. São Paulo: Globo, 2006.