Revista Rua


E quando a pichação é da prefeitura? Pichar, proscrever, dessubjetivizar
And what about graffiti done by municipality administration? Spraying, proscribing, de-subjectivating

Bethania Mariani e Vanise Medeiros

territórios, que escrevem histórias de grupos socialmente discriminados ou que reivindicam um espaço de fala. Das letras inscritas nas pichações se compreende muito pouco, em função de sua indistinção gráfica. Porém, podemos nos perguntar: indistinção gráfica para quem? Tal indistinção gráfica, alerta Orlandi (idem), não é apartada da exclusão social e urbana de muitos dos pichadores e, nesse sentido, no gesto da pichação materializa-se um gesto de luta que torna visível o se significar ao mesmo tempo em que significa um modo singular de existência e de resistência. Resistência social e, por que não dizer, resistência frente aos processos que homogeneízam e indistinguem os sujeitos. Pichar – com símbolos e letras em sua maioria indiscerníveis – tem esse aspecto de produzir uma singularidade, ou melhor, uma forma de subjetivação de referências sobre o mundo e, também, de delimitação de territórios e pertencimento a lugares ou grupos.
No caso do Morro da Providência, a pichação é uma sigla do Estado. É uma pichação não passível de criminalização; ao contrário, tem a força da lei que indica casa a ser desocupada. Não se trata de gesto de resistência por parte daquele que picha. Nessas pichações inscreve-se a contradição do Estado: pune aquele que picha muros e monumentos por serem púbicos, ao mesmo tempo em que picha moradias privadas.  Se privilégio advém de lei (legis) do privado (privi) (ELIA, 2010), a pichação pelo Estado retira o privilégio do privado.
O conjunto de siglas “SMH” vem acompanhadas de uma numeração, estava inscrito nas casas de modo bastante legível e discernível, mas isso não era garantia de sua interpretabilidade a priori da parte dos moradores.  No entanto, uma vez que ganha em compreensão, a sigla SMH ao mesmo tempo em que delimita um grupo – as casas que devem ser demolidas em nome da revitalização do espaço urbano –, proscreve esse mesmo grupo ao marcar suas casas para excluí-los do espaço que habitam. Em outras palavras, a sigla-pichação se impõe como história que passará a ser contada em função da reforma urbana e, simultaneamente, determina o apagamento do que é singular, da memória histórica que os moradores representam.  
 
3.
O corpo urbano é marcado por inscrições desde sempre. São marcas que delimitam espaços e produzem sentidos sobretudo para os que são letrados naquele “código” em uma determinada época histórica. O que não impede, contudo, que seja lido e significado pelo outro que não pertence àquele “código”. O que estamos