Revista Rua


Maquinaria da privacidade
Machinery of privacy

Marta Mourão Kanashiro, Fernanda Glória Bruno, Rafael de Almeida Evangelista e Rodrigo José Firmino

1. Introdução
Palavras, noções e conceitos não são fixos ou estáveis ao longo dos séculos e em diferentes contextos sócio-espaciais. Por mais banal que possa parecer tal afirmação, sua importância aprofunda-se em tempos de diluição intensa e cotidiana de tantas ideias que estruturaram grande parte dos modos de fazer, de ver e de saber da modernidade. A atual desestabilização de determinados conceitos nos obriga a um questionamento sobre o que está em transformação, sendo desconstruído, disputado, construído ou atualizado. Não se trata, portanto, de uma questão de terminologia, de estudar termos e seu uso, pensar sobre etimologias, e nem do que é reservado ao reino dos glossários. Mas sim, de problematizar as transformações desses conceitos em seu nível operativo e produtivo, assim como também de enfrentar a questão nietzschiana “Que estamos ajudando a fazer de nós mesmos?” reexaminada, dentre outros, por Orlandi (2002).
Dentre os muitos conceitos que mereceriam este tratamento na atualidade, o presente artigo trata de privacidade e dos embates que atravessam essa noção. Bruno (2010) ressalta que ainda que essa seja uma ideia que tenha se consolidado jurídica, social e subjetivamente na modernidade, já em seu nascimento era objeto de tensões, deslocamentos e disputas políticas e sociais. Vários autores se voltaram para esse tema (dentre muitos outros, Elias, 1994; Sennet, 1999; Duby e Ariès, 2000; Del Priore, 2011) abordando a construção do privado, da intimidade e da privacidade, suas variações históricas e as tensões políticas e sociais com as quais se vinculavam.
A dimensão do segredo, do escondido, do íntimo, da privacidade ou do privado, tal como se conheceu na modernidade, vem sendo desconstruída, reformulada ou atualizada em diferentes níveis: dos programas televisivos para exposição da intimidade ao que circula nas redes sociais, chegando até qualquer tipo de ação (e seu consequente rastro) na internet e no uso de tecnologias de comunicação (Bruno et al, 2012). Nesse contexto, em que é cada vez mais difícil pensar possibilidades de comunicação desvinculadas da possibilidade de monitoramento, não estamos diante dos limites (e valores) entre a casa e a rua (DAMATTA, 1984), entre público e privado (SENETT, 1999; Elias, 1994), aqueles da porta fechada ou da alcova, e nem estamos presenciando a fenda na parede ou o buraco da fechadura como transgressão ou transposição de uma demarcação estabelecida.