Revista Rua


Memória, narrativa urbana e favela: efeitos de sentido em um videoclipe
Memory, urban narrative and favela: effects of meaning in a videoclip

Lucia M. A. Ferreira*, Andréa Rodrigues**

 
 Resistência e memória                           
A narrativa urbana que analisamos, como já dissemos, ao reconfigurar ideológica e politicamente o espaço da favela e as práticas sociais a ele relacionadas, traz, em sua materialidade, tanto as marcas das expectativas do sujeito diante do devirquanto as marcas de sua resistência às ameaças que sofre em seus processos de memória.
A “des-interpretação” produzida nas discursividades que redesenham o espaço e a cultura é, como observa Mariani (2009, p.45-46), resultado de práticas de sujeitos e entre sujeitos, “não dissociadas dos modos sócio-históricos de produção, reprodução, resistência e transformação dos sentidos. Práticas expostas também à errância e à não totalidade dos processos de significação”.
Neste ponto retomamos a observação feita no início do texto, a partir de Orlandi (2004, p.12), sobre a “abertura do simbólico”, constitutiva dos sistemas significativos que operam neste vídeo e que têm a incompletude e a contradição como marcas da relação da materialidade significante com a história e a memória. “Dá uma olhada na descida do morro”, diz a música para um destinatário que está no asfalto. Mais adiante, no que parece ser uma inserção de comentários paralelos à letra da música, o sujeito corporificado na figura do cantor, convidando o interlocutor/espectador a olhar mais atentamente as meninas, anuncia “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, um gesto que marca, na linguagem, a resistência do sujeito às ameaças aos seus processos de memória. Evidencia-se, portanto, na opacidade da linguagem, a contradição do discurso de integração sugerido por uma primeira expectativa em relação ao vídeo, e por sua relação com outros enunciados que compõem o Portal Voz das Comunidades. Lembramos, a respeito dessa relação interdiscursiva, que, em um primeiro momento, pensávamos que as locações do vídeo teriam sido feitas nas comunidades cariocas que integram o Portal Voz das Comunidades. Para nossa surpresa, as locações foram feitas em Vila Prudente, favela de São Paulo. Nomeando favelas paulistas e cariocas – “No Carrão, no Capão, Guacuri, Paquistão e na Vila Prudente (...) Cantagalo, Mangueira, Rocinha, Alemão e Cidade de Deus” –, a letra da música sublinha de forma destacada este efeito de sentido sobre o urbano que não individualiza a favela. Muito pelo contrário, o que é realçado são os traços culturais comuns a todas as favelas e seus moradores e que os distinguem dos moradores do asfalto.