Revista Rua


Memória, narrativa urbana e favela: efeitos de sentido em um videoclipe
Memory, urban narrative and favela: effects of meaning in a videoclip

Lucia M. A. Ferreira*, Andréa Rodrigues**

podemos afirmar que é a própria câmera que, ao fazer o percurso das vielas, vai fazendo existir o tecido urbano da favela, (re)criando esse espaço com a própria narrativa urbana.
As formas do discurso urbano são entrelaçadas de modo a (re)construir o corpo significativo da cidade, da favela: a música, a letra, o cenário da favela e da cidade, o desfile das mulheres pelas ruas estreitas, os olhares dos homens, a dança. São flagrantes de uma narratividade urbana que tem vários pontos de materialização.
Orlandi (2001, p. 31) observa que “quando o espaço é silenciado o espaço responde significativamente”. As respostas passam por processos de des-transformação e des-interpretação, produzidas nas diferentes formas do discurso urbano.
Se no passado a favela era discursivizada como espaço de violência, pobreza, marginalidade, hoje ela é “des-interpretada” e transformada em espaço ocupado, pacificado, com novos sentidos. Vale ressaltar no entanto que o discurso, como afirma Pêcheux (2002, p. 56), embora seja “o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação”, é também efeito de um deslocamento no seu espaço.
Esse processo de ressignificação aponta para o que Mariani define como o “futuro dos sentidos”, que se baseia no já dito e no dizível de acordo com as “possibilidades enunciativas dos períodos históricos” (MARIANI, 1998, p.28). As políticas públicas de pacificação das favelas do Rio de Janeiro desenvolvidas nos últimos anos articulam-se com as possibilidades enunciativas do momento atual, promovendo um discurso de integração entre morro e asfalto e buscando construir sentidos para o futuro da cidade que acolherá eventos mundiais em 2014 e 2016. O discurso da integração perpassa a fala da moradores, registrada em outros textos disponíveis no Portal – por exemplo, um vídeo que registra um passeio no teleférico do Complexo do Alemão, em que o apresentador, músico conhecido e morador do lugar, afirma: “É isso aí, gente. Complexo do Alemão, pode vim (sic), pode chegar que tá todo mundo convidado, tá todo mundo tranquilo.” A integração também é apontada na letra da música do clipe Favela Fashion Week, que recomenda que o ouvinte suba no morro para ver a beleza das mulheres: “sobe lá para você ver”. É o discurso da valorização do morro, de interpretações sobre a favela que criam um novo “teatro de ações”, no sentido de Certeau (2004), e assim autorizam novas práticas sociais e relações com o espaço e os objetos simbólicos que lá circulam.