Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

— incluindo o visual — com essa mulher a não ser por telefone. Ela fica surpresa com a decisão do protagonista e recusa-se a ir até o hotel encontrá-lo, pois está a ponto de embarcar para Indiana, no extremo oposto do país, onde seu marido acaba de receber uma proposta de trabalho e está a sua espera. Desnorteado, o protagonista replica a indagação feita horas antes por sua esposa: “Para onde eu devo ir?” (p.18, grifo nosso).
Embora pontuada por um curso de eventos banais envolvendo personagens e situações superficiais, essa pequena narrativa, em um nível mais simbólico, constitui um comentário sobre o desfacelamento de uma visão tradicional e unitária do oeste americano por meio de um processo de degradação física e emocional da personagem que culmina na metrópole californiana. O protagonista anônimo do conto é um ser ficcional recorrente em trabalhos anteriores do autor como True West e Paris, Texas. Trata-se de um pai (old man)que não se identifica com a vida nem tampouco com os valores associados à vida em comunidade e, em especial, à família como vínculo social; e, sem aviso, decide romper com esses laços, tornando-se “patologicamente independente” (HALL, 2002, p.247).No caso do protagonista de “Coalinga 1/2 Way”, o motivo alegado por ele para a ruptura é a união com uma outra mulher. Mas, em face da surpresa da outra pessoa e a aparente falta de relação entre os dois, percebemos que a partida tem menos que ver com a busca de uma nova relação do que com um desejo inconsciente de desfazer-se de compromissos e isolar-se. O texto deixa claro que o narrador já agiu dessa maneira antes e embora relute em seguir sua “sina”, parece compelido a fazê-lo devido ao mesmo imperativo que levou seu próprio pai a também abandonar a família. O confinamento de gado próximo à cidade de Coalinga sugere aprisionamento e ausência de escolha e prefigura o impasse vivido pela personagem. Embora não desejasse cometer os erros do pai, sente-se fadado, devido a uma linhagem “hereditária” inelutável, a replicar os comportamentos do patriarca; afinal, não há volta, pois ele está agora “profundamente dentro do músculo de uma ação” alheia ao seu controle. A conversa com a esposa deixa claro os traumas causados por esse padrão masculino de fugas e de abandonos recorrentes no ânimo de ambos:
 
— Você sabe o que isso [o abandono] significa para mim, não sabe? Quero dizer, minha história e tudo... meu pai...
— É, eu sei. [responde o protagonista].
— O seu pai também.
— É.
— Você não pensou nisso?
— Pensei. (p.14)