Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

sujeito centrado ou monádico, comparável em tese ao antigo sujeito do Iluminismo (cf. HALL, 1992, p.276). Durante esse flashback, o narrador nos dá conta de que há menos de um mês antes de deixá-la, o protagonista teve uma “conversa imaginária” com a esposa na qual ele lhe dissera que nunca a deixaria e que jamais repetiria os erros de seu pai. Como sabemos, “a identidade é relacional”, isto é, ela é demarcada pela diferença (WOODWARD, 2005, p.9). Nesse sentido, portanto, o sujeito projetado pelo conto estabelece sua identidade a partir da marcação da diferença radical em relação ao outro (no caso, seu pai ausente) com o qual não se identifica. A figura do pai “traidor” é então percebida como uma alteridade perturbadora em relação aos discursos e valores que estruturam a rede de familiariadade responsáveis pela estabilização da identidade do protagonista.
Na ocasião dessa “conversa imaginária”, ele sentia-se “cheio de convicção” e, ao contrário do pai, tinha “a impressão de si mesmo como um homem honesto” (p.16).Embora os atos posteriores revelem que de alguma forma ele já nutria, ao menos em nível inconsciente, um impulso de trocar a família por um futuro questionável, parece claro que naquele momento o sujeito ainda dispõe de referenciais consistentes de identificação. Além da família, um desses referentes diz respeito à sua comunhão com a natureza de sua localidade, representada pelo “vento quente do vale”, que lhe fornece uma “fonte de força” (p.16). A possibilidade dessa perfeita identificação entre homem e mundo natural remete a um estágio pré-moderno, que será eclipsado nas fases posteriores do deslocamento do protagonista, quando este se confrontará finalmente com o pós-moderno. O uso de palavra com valor absoluto (never) para negar qualquer intenção de ruptura com os vínculos sociais dos quais faz parte demandam um grau de certeza e de continuidade que só pode emanar de um sujeito constante (que não prevê mudanças) e consciente (“cheio de convicção”) da centralidade desses elementos para a formação de sua própria identidade.
Além disso, o fato de o sujeito ignorar as evidências do mundo exterior (os abandonos prévios cometidos por seu pai; a possível sensação de domesticidade sentida ao lado da esposa) e concentrar-se em construtos mentais (“conversa imaginária”, promessas) gerados apenas em sua mente com o intuito de convencer a si mesmo, mostram um sujeito que se julga de certa forma autossuficiente e que não depende de outra realidade a não ser a projetada por sua dimensão psíquica. A convicção do protagonista, no entanto, não é imune às instabilidades e, conforme nota James (2002), nas histórias de Shepard, “famílias [...] desmoronam, os homens [...] veem tudo o que