Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

acreditam ser verdade virar de cabeça para baixo em um instante” (p.30). Isso mostra que, mesmo nesse lócus em que Shepard inicialmente “encena” uma versão do ser humano equiparável ao homem do Iluminismo, já há a incidência desagregadora da modernidade e, sobretudo, da pós-modernidade a solapar essa relação produtiva entre homem e natureza.
(ii) Em um segundo momento, que coincide com a parada em Coalinga no início da narrativa, o texto fornece uma visão alternativa do protagonista, que acaba de iniciar o processo de deslocamento de seu antigo núcleo de estabilidade para ir em busca de um novo centro de identificação. Embora essa nova relação acabe se mostrando disfuncional, o homem parece crer que ocupando uma outra posição de sujeito equiparável à do sujeito sociológico (cf. HALL, 1992, p.276), a interação com um círculo diferente de relações vá fornecer sentidos e valores que o ajudem a superar sua crise de identidade momentânea e a redescobrir o seu “verdadeiro” eu. O protagonista acredita que a nova relação com essa outra mulher vá completá-lo de alguma maneira e elege uma parte dela (a voz) como o elemento que tornará completa sua vida: “Ele já pegou o telefone em todos os estados emocionais possíveis, aguardando a voz do outro lado. A voz sem a qual — ele se convenceu — não pode mais viver. A voz pela qual ele desistiu de tudo” (SHEPARD, 2002, p.17). A esposa até mesmo o repreende por tentar resolver “essa coisa [...] dentro de você” (p.14, grifo nosso) com uma troca de mulheres. A mera busca por um outro sujeito significativo não é suficiente para estabilizar sua identidade.
Há alguns elementos que nos levam a ler o espaço ficcional de Coalinga como uma representação da modernidade. O primeiro deles está no fato de que as imagens de morte e devastação — “ossos de rato, latas de cerveja amassada e camisinhas desbotadas”; “absolutamente nada se move, tudo claro até o horizonte cinza esfumaçado” (p.11) — mobilizadas pelo narrador para descrever as adjacências do espaço urbano de Coalinga evocam o desconforto em relação à modernidade plasmado nos seguintes versos de The Waste Land (1922), de T. S. Eliot: “o rio não suporta garrafas vazias, restos de comida, / lenços de seda, caixas de papelão, pontas de cigarro / E outros testemunhos das noites de verão [...] / Um rato rasteja macio entre as ervas daninhas / Arrastando seu viscoso ventre sobre a margem” (2004, p.151).
Parte da desolação que vemos em “Coalinga 1/2 Way” deve-se à obliteração da natureza como efeito da ação humana, que coloniza a paisagem original com confinamentos de gado, detritos urbanos da América consumista, rodovias e telefones