Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

seus olhos com uma sucessão de simulacros,[4] cujo referente no real se perdeu ou nunca existiu: imagens brilhantes de artistas, que fingem orgasmos ou esquivam-se de explosões geradas por efeitos de computação gráfica, impressas sobre a superfície sem profundidade dos outdoors; a fachada de neon da boate exibe uma cor processada artificialmente, sem correspondente na natureza; o logotipo em forma de palmeira do hotel Tropicana remete a uma imagem estereotipada de clima tropical, que é simulada por meio de uma estrutura de neon vermelha. A cidade emerge, portanto, saturada de imagens sugerindo sentidos de ilusão, artificialidade e alucinação. E “na grandeza do devaneio, o eu se perde depressa!” — a frase do pequeno poema em prosa de Baudelaire (2007, p.38), emprestada de contexto diverso, pode servir, aqui, de síntese da situação da personagem de “Coalinga 1/2 Way”, bem como de prenúncio de seu destino.
A megalópole constitui um espaço social pós-moderno do qual, de acordo com Jameson, a natureza e suas antigas relações com a vida agrária não só desapareceram do campo de visão, mas foram eclipsadas da própria memória (2006, p.365). Por essa razão, a Los Angeles de “Coalinga 1/2 Way” converte-se em um espaço emocional notadamente desconfortável para o protagonista, que em meio a esse ambiente, assume as características de um sujeito deslocado. Esse deslocamento de um sistema consistente de representação cultural — seu território natural, sua comunidade e sua família nuclear — rumo a um campo de forças marcado por imagens inautênticas e discursos competitivos, levam-no a experimentar perdas subjetivas.
Esses prejuízos incluem a substituição do papel central no vínculo estável com a família pelo anonimato e isolamento de um quarto de hotel, que também projeta um ambiente impessoal e alienado; além da ruptura de sua conexão com a natureza — representada pelo vento quente do vale que soprava em sua região, garantindo-lhe “uma fonte de força”, e potencializava, de modo simbólico, sua ligação com a comunidade e com a identidade de “homem honesto” (p.16). Essa posição de sujeito entra em crise quando, no nível da ficção, a oposição entre sua identidade “central” (“homem honesto”, marido e pai de família) e a radical alteridade de seu pai (“traidor”, pai


[4] Termo utilizado aqui no sentido conferido por Baudrillard (1993), segundo o qual a sociedade pós-moderna realizou uma completa substituição das noções de realidade e sentido por símbolos e signos. Desse modo, restaria apenas a experiência do real como simulações. Os símbolos e signos aos quais o teórico alude referem-se aos produzidos pela cultura e pela mídia, que levariam as pessoas a confiarem mais nos simulacros do que na realidade, na qual essas mesmas simulações se baseariam. Ainda segundo o autor, o simulacro precede o original e a distinção entre realidade e representação é eclipsada uma vez que não há um saber legitimado capaz de “separar o verdadeiro do falso, o real de sua ressurreição artificial” (BAUDRILLARD, 1993, p.194-199).