Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

ausente) deixa de ser marcada. O sujeito sofre um deslocamento de sua identidade inicial ao identificar-se com um sistema de valores referentes a uma outra posição de sujeito, vista de maneira antagônica por ele.
A perda do aspecto acabado e fixo da identidade do protagonista é sugerida na passagem em que ele se aproxima da cosmópole pós-moderna: “Neste momento um certo garoto amedrontado toma o lugar do homem; empurra-o, agarra o volante, curva-se para frente na escuridão, e desce a montanha serpenteante rumo às luzes selvagens de Los Angeles” (p.16). Dessa maneira, podemos dizer que o sujeito experimenta uma multiplicação de identidades: de “homem honesto”, ele passa a identificar-se com o pai “traidor”; em seguida, como vimos na passagem reproduzida acima, essa identidade é substituída pela de um jovem ousado e irresponsável, que assume o volante (o controle) do sujeito. A desestabilização da noção prévia de identidade estável que o protagonista vivencia é acompanhada de medo, afinal ele sente-se como um garoto “amedrontado”. Byers (1995) associa esse tipo de ansiedade do macho contemporâneo com um sentimento de “pomofobia”, isto é, uma resposta desconfortável do sujeito a ameaças impostas pela pós-modernidade como “mudanças na base material e econômica”, “o colapso geral das narrativas mestras”, bem como o declínio da família nuclear como “o local privilegiado da segurança e do ser do sujeito” (p.5-6),entre outras. No tocante ao conto de Shepard, as sensações de medo e de aversão do protagonista em relação às complexidades instaladas pela pós-modernidade aumentam na mesma proporção em que o sujeito vivencia múltiplos deslocamentos de sua identidade, culminando com o abandono da outra mulher.
Ao telefonar para ela, o protagonista identifica-se dizendo “sou eu” (p.17, grifo nosso), mas esse “eu” que fala tornou-se muito diferente do sujeito que prometera à esposa não abandoná-la. Neste momento, o sujeito “veste”, nos termos de Bauman (2004, p.30), as identidades de “garoto amedrontado” e “amante”.
A posição de sujeito referente ao “homem honesto” que “nunca [...] deixaria a esposa” ficou, de modo literal, para trás. O momento em que essa antiga identidade passa por um descentramento é marcado no conto pela passagem em que o protagonista termina o relacionamento com a esposa, isto é, rompe com a promessa, e deixa o telefone — a última conexão com a antiga “comunidade” — fora do gancho: “Ele tenta ficar observando o telefone pendendo através do espelho retrovisor, mas logo o perde de vista, como alguma pequena parte de si mesmo que foi deixada para trás” (p.15). Essa “pequena parte”, que fica pendente, sem um ponto firme de apoio, sugere a identidade “abandonada” pelo protagonista após complexos processos de fragmentação e o deslocamento do sujeito de sua rede de familiaridade.