Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

1. Concepções de identidade
Questões relacionadas à identidade têm sido motivo de intensa reflexão em diferentes campos do conhecimento, sobretudo, no período histórico atual, no qual observamos ocorrerem profundas transformações históricas, fenômenos sociais complexos, a progressiva internacionalização das grandes metrópoles, a sofisticação tecnológica e uma nova configuração do capitalismo no ocidente, chamado por Ernest Mandel de “capitalismo tardio” (cf. JAMESON, 2006, p.22-23). Essas intensas transformações representam um momento crucial dentro de um longo processo de perda de poder e influência de instituições responsáveis pela mediação dos valores sociais (cf. LYOTARD, 1993, p.40).
(i) Há mais ou menos três séculos, acreditava-se que instituições, como família nuclear, Estado e Igreja, garantiam a unidade e a coerência das sociedades (BAUMAN, 2004, p.23). Os sujeitos formados nesse contexto emergiam como seres unificados, cujo cerne era, por um lado, a razão, e por outro, a fé na existência de uma alma imortal, responsável por uma posição de sujeito — isto é, uma identidade — contínua e centrada. O exemplo abaixo, retirado de Shakespeare, ilustra a noção de profunda coerência interna do eu (self)de Romeu, expresso na fala de Julieta:
 
JULIETA: Oh, não jures pela lua, a inconstante lua
Que sofre alterações mensais em seu globo circular,
Para que teu amor não se mostre do mesmo modo variável.
 
ROMEU: Pelo que jurarei então?
 
JULIETA: Não jures em absoluto;
Ou, se quiseres, jura pelo teu gracioso eu [self],
Que é o deus da minha idolatria,
E em ti eu crerei (2006, p.174, grifo nosso).[2]
 
Por meio do diálogo inscrito na tragédia elisabetana, observamos que a personagem opõe claramente a mutabilidade da lua à extrema fixidez intrínseca atribuída ao sujeito ficcional (Romeu), que, ao ser também associado à figura de deus, sugere autossuficiência, centralidade e onipotência.
Stuart Hall (1992) define esse tipo de indivíduo como o “sujeito do Iluminismo”, pois ele é dotado de capacidades de raciocínio, consciência e ação (p.276). Embora a peça de Shakespeare anteceda a emergência do chamado Século das Luzes, identificamos na passagem uma possível figuração do tipo de sujeito plenamente


[2] Salvo quando indicado na bibliografia, todas as traduções livres utilizadas no presente trabalho são de responsabilidade do autor da pesquisa.