Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

comentar que este “ouve o barulho do homem gordo caindo na piscina lá fora”,[5] e em lugar do extravasamento dessa emoção, há apenas silêncio e indiferença: “Então nada. Uma sirene distante” (p.18, grifo nosso).
Em parte, isso se deve ao fato de que as figuras masculinas em Shepard tendem a interpretar até as mais básicas expressões de sentimentos como vulnerabilidade e, dessa forma, seguem o “modelo tradicional de masculinidade emocionalmente reprimida” (McDONOUGH, 2002, p.157), que os toma incapazes de demonstrar emoções de modos produtivos.
Contudo, parece mais acertado ler essa perda da afetividade em geral como mais um efeito da fragmentação do sujeito. Com o colapso da identidade calcada no sujeito centrado, conforme observa Jameson (2006), a materialização dos afetos e emoções é dificultada em razão de que o “próprio problema da expressão está intimamente ligado a uma concepção do sujeito como receptor monádico, cujos sentimentos são expressos através de uma projeção no exterior” (p.42). O relativo apagamento das distinções claras entre o fora — representados pelo próprio corpo, pela sociedade, pelo Outro — e o dentro (a crença na existência de um centro nocional, um ego ou um “eu” consciente e intacto) compromete a externalização desses sentimentos. Isso não equivale a dizer que todo afeto foi apagado da cultura pós-moderna, mas que a materialização dessas emoções, de acordo com Jameson, tende a perder profundidade, passando a figurar apenas como simulacros de imagens superficiais e desistoricizadas (2006, p.38-43). No caso de “Coalinga 1/2 Way”, esse dado se reverte não apenas nos traços da metrópole pós-moderna já elencados, mas também na própria construção da narrativa, que é permeada por uma prosa descomplicada, que lembra a impassibilidade minimalista, repleta de sentenças paratáticas sem ligações interoracionais rigorosas.
O conto não oferece resoluções para o impasse vivenciado pelo protagonista, nem tampouco poderíamos esperar algum tipo de “fechamento” de um texto que, como buscamos salientar, toca em pontos sensíveis da identidade humana. James (2002) observa que em Great Dream of Heaven “não há grandes resoluções, apenas pequenos acontecimentos dotados de condensação poética” (p.30). Contudo, a julgar pelo histórico de personagens semelhantes criados por Shepard, é de se supor que o protagonista de “Coalinga 1/2 Way”, como uma infinidade de outros patriarcas desajustados que tumultuam suas obras, provavelmente acabaria seus dias buscando isolamento no deserto mais próximo.


[5]Cabe notar que o autor já havia associado decepções por conta de crises entre casais à imagem da queda do corpo humano na água: “No apartamento vizinho, um casal discute / Ele fica dizendo: ‘Não, Lorraina, não faça isso!’ / Ela fica dizendo: ‘Por quê?’ / Nadadores caem na piscina lá fora” (SHEPARD, 1982, p. 108).