Revista Rua


Espaços urbanos como arenas de (trans)formações identitárias na literatura contemporânea
Urban spaces as arenas of identity (trans)formations in contemporary literature

Ricardo Sobreira

de atos de interação entre o eu, ainda em posse de um núcleo uniforme (o “verdadeiro” eu), e a sociedade, que fornece significados e valores culturais aos quais o sujeito tenta se alinhar. A identidade, dessa forma, é a sutura do sujeito na estrutura sociocultural, que, até o alto modernismo, ainda pode ser definida como unificada e previsível (HALL, 1992, p.276). Essa noção de previsibilidade do local que o sujeito deve ocupar nos espaços civilizados emana, segundo Bauman (2004), da noção de que durante a maior parte da modernidade, a ideia das classes sociais, por exemplo, era muito mais forte e, dessa forma, a posição de sujeito era determinada por uma trajetória inequívoca. Nesse sentido, Bauman observa que “no âmbito dessa rede de familiaridade, do berço ao caixão, o lugar de cada pessoa era evidente demais para ser ponderado, muito menos negociado” (p.18). Devido a essa consciência de pertencimento a uma classe, o sujeito sentia-se confortável o bastante para perceber-se como parte de um corpo coletivo e para desenvolver o que o teórico chama de tripla confiança: em si mesmo, nos outros e na sociedade (BAUMAN, 2004, p.48-50).
(iii) No entanto, as atuais configurações do capitalismo tardio aliadas ao fenômeno da pós-modernidade,[3] com seus enormes avanços em termos de mobilidade urbana, tecnologia e comunicação, têm abalado as antigas formas de identidade e, por essa razão, fornecido uma arena propícia para o surgimento não de uma identidade centrada, unificada e coerente, mas de identidades fragmentárias, instáveis e em permanente construção (HALL, 1992). Como atesta Bauman, a “fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas” (2004, p.16).
Nesse mesmo sentido, Rincón (1995), com base em aspectos socioculturais do capitalismo tardio, propõe a seguinte distinção entre formulações clássicas de sujeito e o sujeito pós-moderno:


[3] O termo pós-modernidade é usado para marcar a transição entre o paradigma da modernidade e um novo paradigma (cf. SANTOS, 2000, p.34; VATTIMO, 2007, p.ix), conhecido também como era pós-moderna. Dessa forma, a pós-modernidade refere-se a um estágio social, histórico e econômico, que supostamente sucede a modernidade. Essa transição seria marcada pela emergência do capitalismo tardio — ou do “capitalismo desorganizado”, conforme defende Santos (2000, p.87) — e pela decorrente substituição da produção de mercadorias através do trabalho industrial por estilos de vida individualistas, sobretudo nas chamadas sociedades urbanas mais avançadas, baseadas no consumismo exacerbado de produtos e símbolos, em grande parte, oferecidos pela cultura e mídia de massa (SMITH, 2001, p.215; TRODD, 2001; AUSLANDER, 2004). Nessa passagem para a economia do capital multinacional — marcada pelas tecnologias midiáticas high tech e pelo extravasamento de fronteiras geopolíticas do capital e da cadeia produtiva — alguns críticos defendem que o sujeito humano sofre um processo de fragmentação do antigo ideal de uma identidade pessoal unificada e autossuficiente (JAMESON, 1986, p.67; HALL, 1992; SANTOS, 2000, p. 107).