Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

seus elementos naturais constituem contribuintes cognitivos para a produção verbal dos humanos (PAVEAU, 2006, 2007b). De fato, a enunciação aparece como um fenômeno não mais binário, mas distribuído, no sentido cognitivo do termo: o enunciado circula no ambiente através dos agentes psíquicos que contribuem para a produção do sentido[12].
            O corpus de tatuagens é, na minha opinião, uma boa ilustração empírica dos limites da concepção binária e antropocêntrica da enunciação e permite propor uma abordagem renovada do contexto em termo de ambiente e de distribuição.

2.2. A ENUNCIAÇÃO TATUADA: CONFIGURAÇÕES ENUNCIATIVAS HETERODOXAS     

Eu não contestarei que, como toda a produção verbal, a tatuagem possa ser lida, quaisquer que sejam o modo de leitura e de leitor. Como o ressalta S.-A. Lamer: “Le tatouage et le perçage se situent dans l’ordre du signe, ce qui les place dans une perspective plus large du sens et des valeurs. La visibilité de ce signe l’inscrit d’emblée dans le domaine relationel” [A tatuagem e a perfuração se situam na ordem do signo, o que os coloca em uma perspectiva mais ampla do sentido e dos valores. A visibilidade desse signo o inscreve diretamente no domínio de relacional] (1995: 152). Está bem no sistema relacional, sobre um modo particular o que descreve bem F. Baillette (2003: 62):
 
Toute inscription corporelle a effectivement pour finalité d’être un jour consultée ou questionée. La marque produit du sens, elle interpelle, désigne, énonce et dénonce. Aussi, qu’elle soit publique ou secrète, mise en évidence ou discrète, la trace déposée doit pouvoir être vue ou simplement entraperçue (voire fantasmée).
[Toda inscrição corporal tem, efetivamente, por finalidade ser um dia consultada ou questionada. A marca produz sentido, ela interpela, designa, enuncia e denuncia. Mesmo que ela seja pública ou secreta, colocada em evidência ou discreta, o traço depositado deve poder ser visto ou simplesmente percebido (ou mesmo imaginado).]


[12] Eu faço referência aqui aos estudos da cognição distribuída, uma das subcorrentes da cognição social americana, alternativa para a cognição internalista tradicional, na qual um dos promotores é E. Hutchins. Em um trabalho célebre sobre a elaboração da informação a bordo de um avião, ele mostra que a informação não é trocada entre os dois indivíduos e os comandos, mas distribuída entre os agentes psíquicos humanos (piloto e co-piloto) e não humanos (instrumentos de medida, anotações, listas etc.); ver HUTCHINS, 1994.