Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

como um circuito completo de produção linguageira dotado de todos os parâmetros habituais de enunciação, mesmo se eles não são “clássicos”: a tatuagem escrita faz, com efeito, do corpo um suporte de discurso no qual tudo leva a crer que ele possua, como todo discurso, um produtor, um receptor, uma forma e uma interpretação. Mas a natureza do suporte e dos conteúdos tatuados confunde consideravelmente o circuito habitual da produção discursiva, o que torna a enunciação tatuada extremamente específica, por duas razões.
            Primeiramente, ela redistribui os papéis da enunciação linguageira, dado que ela opera um rompimento enunciativo do par locutor-inter-locutor e dos parâmetros espacial e temporal mesmo em uma versão renovada da teoria enunciativa (como a abordagem em termos de co-enunciação), no qual ela é móvel e eventualmente clandestina (tatuagens escondidas) e no qual ela mobiliza um contexto mais amplo que aquele da simples interação.
            Em seguida, e correlativamente ao que precede, a enunciação tatuada interroga a teoria da enunciação, dois de seus fundamentos: primeiro o sujeito da enunciação que, bem longe de ser a instância benvenistiana individual e compreendida na teoria standard, se constitui mais de seu anonimato, de sua divisão e de difrações de suas inscrições; e em seguida o receptor ou enunciatário, que supõe “receber” o enunciado e construir o sentido por essa mesma recepção.
            Inicialmente, eu proporei uma tipologia das corpografeses, da palavra ao texto, constituindo uma primeira descrição do escrito tatuado a partir de um corpus heterogêneo e internacional (séculos XIX e XX; tatuagens européias e americanas[3]). Antes, porém, faço algumas observações em relação a esse corpus: o estado atual dessa proto-pesquisa sobre os escritos corporais, é ,ainda, exploratório e foi constituído por sondagens: eu examinei, na literatura publicada sobre as tatuagens, entre o fim do século XIX, período em que o interesse pelo fenômeno apareceu, em particular, a partir das reflexões de Lacassagne e Lombroso sobre as marcas dos criminosos e, fim do século XX, no qual a prática da tatuagem se democratizou; o máximo de publicações ilustradas integrando tatuagens


[3] H. Tenenhaus observa que as tatuagens “escriturais” representam aproximadamente um terço das tatuagens examinadas em sua investigação sobre adolescentes (TENENHAUS, 1993: 166). Os escritos são, com efeito, mais numerosos nas tatuagens que não aparecem na primeira abordagem, muitas, dentre elas, são verbo-icônicas.