Revista Rua


Uma enunciação sem comunicação: As tatuagens escriturais
An utterance without communication: the scriptural tattoos

Marie-Anne Paveau

É preciso correlativamente sublinhar a forte dimensão memorial da tatuagem, o que se aproxima de um lugar de memória epidérmica que conserva a lembrança dos seres amados, dos acontecimentos da vida (puberdade, maternidade, casamento etc.), as batalhas livres (para alguns soldados, um corpo-estandarte se orna com o nome das vitórias), os sofrimentos sofridos (a tatuagem dos campos de concentração e prisão, à vocação “prática” para o tatuador, foi dotada pela história de uma função memorial, algumas vezes militante, para o tatuado), mas também de detalhes práticos como o grupo sangüíneo (hábito do SS e ainda de alguns exércitos contemporâneos). Deste ponto de vista, a democratização recente da tatuagem em nossas sociedades é sem dúvida um indicador que não deve ser negligenciado da construção das identidades e da gestão das memórias pessoais e coletivas.

2.3.2 A FUNÇÃO “BIO” DA CORPOGRAFESE (2): BIOSUBJETIVIDADE
Com a idéia de uma “biosubjetividade” (o conceito é de B. Andrieu), podemos explicar que as tatuagens não repousam sobre a comunicação mas sobre a construção corporal, isto é, a modificação do sujeito por um “design biosubjetivo da matéria”:
 
Être un corps naturel est désormais insuffisant pour être humain. L’identité singulière du corps reçu par la nature fournuit dans sa matière des possibilités de normativité nouvelle. Devenir soi-même exige d’être ne traduit qu’un controle de l’apparence corporelle, tandis que la matière d’être résoudrait l’opposition entre objet-sujet en matérialisant la forme choisie par le sujet pour se definir. Le corps humain n’est pas seulement biologique car il produit dans la culture des normes adaptées au vécu de son vivant. (Andrieu 2004a: 342)
[“Ser um corpo natural é atualmente insuficiente para o ser humano. A identidade singular do corpo recebeu da natureza alimento na sua matéria para possibilidades de uma normatividade nova. Tornar-se si mesmo exige mais que uma simples transformação do corpo natural. A maneira de ser não traduz um controle da aparência corporal, enquanto a matéria do ser resolveria a oposição entre objeto-sujeito materializando a forma da coisa pelo sujeito para se definir. O corpo humano não é somente biológico, pois ele produz na cultura normas adaptadas ao vivido de seu vivente.” (ANDRIEU, 2004a: 342) ]
 
A tatuagem como “matéria do ser” permitiria, portanto, um tornar-se sujeito pelo corpo, ao menos uma nova escrituralidade que inauguraria um outro uso da linguagem: uma corpografia que produz o sentido do sujeito, e não do enunciado, e onde a interação se faz