Revista Rua


Da parede ao corpo social: a carne que não satisfaz
From the Wall to the Social Body: the Meat Doesn't Satisfy

Gesualda dos Santos Rasia

circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa (FOUCAULT, 1970: 9).
 
 
Um dos campos onde o cerceamento à palavra é bastante presente encontra-se no entorno que envolve a sexualidade humana, principalmente se reduzida à questão da carne, desprovida dos eflúvios amorosos que disfarçam o que nos aproxima do animalesco. Nesse contexto, não é rara a substituição das designações “fazer amor” e “transar”, por exemplo, por “comer”. O cerceamento da palavra é diametralmente oposto à imagem exportada de país tropical, terra das mulatas sensuais e do turismo sexual. Cerceamento que não se estabelece sem vazão, obviamente. Pensemos, por exemplo, na expressão “Isso é f....”, em que os pontinhos, na escrita, e a pronúncia do nome da letra (efe), em substituição à palavra que representa (foda), contrapõem-se à pronúncia acabada – Isso é foda! Linguajar próprio da geração contemporânea de jovens, a expressão completa é considerada não apropriada em espaços como o da sala de aula, por exemplo. Vale dizer, no entanto, que tem se tornado recorrente, ultimamente, em programas televisivos de canais por assinatura[10].
Orlandi (2004: 112) tece dura e justa crítica aos discursos escolares que acusam os jovens de falta de leitura e conseqüente ameaça à sua capacidade de linguagem. Ao contrário, defende ela, lêem, sim, porém, “os materiais são diferentes daqueles que o imaginário escolar destinou há alguns séculos para o público da escola.” E mais, escrevem, também. “A pichação, o grafite, é a escrita. E os jovens se ‘comunicam’ enormemente. Basta olhar para as paredes e muros das cidades. Para as camisetas. Para os festivais. Para as novas festas jovens e etc.”
Essa escrita, de conteúdo e registro lexical transgressor, é, desse modo, no mínimo, impactante, porque afronta, entre outros aspectos, o discurso escolar, e cujo lugar de “aceitabilidade”, lugar possível, é o da parede urbana.
O jogo de luta em que essa expressão se insere demarca a fronteira entre o discurso escolar e o da transgressão. Expressão própria de grupos adolescentes, conforme já observado, é designação sujeita ao interdito, nos termos de Foucault, e que, inversamente, estampa-se no campo de visibilidade de todo olho, no espaço urbano de resistência ao não permitido socialmente.


[10] MTV na rua; 15 minutos; Descarga MTV são programas da MTV Brasil em que é recorrente a presença da expressão “É foda”.