Revista Rua


Da parede ao corpo social: a carne que não satisfaz
From the Wall to the Social Body: the Meat Doesn't Satisfy

Gesualda dos Santos Rasia

O enunciado Fome é foda, pode, do mesmo modo, ser lido como uma forma de violência, possível até de justificar o circuito da carne entendido como crime (ou não). Em caso positivo, carne não se constituiria uma forma de crime, porque pode aplacar a fome. Por outro lado, isso só se torna possível se garantidas as condições de acesso e, nesse caso, o estar à margem do circuito comercial é ser vítima de uma forma de crime, de violência, portanto, extensionada como Carne está para crime assim como fome está para foda.
As possibilidades de relações de sentido derivadas dessas estruturas parafrásticas podem ser assim representadas:
 

Carne é crime      Violência é crime       violência justifica o crime

Fome é foda      Fome     também uma forma de violência

Carne está para crime assim como fome está para foda

 
A migração para o campo de sentidos recobertos pelo E2 consiste no rompimento da estrutura, embora mantido o arcabouço sintático, composto pela estrutura sujeito + predicado. A repetição/permanência instaura-se também no aspecto estilístico: em ambos, tem-se o efeito de aliteração, pela repetição, respectivamente, dos fonemas /c/ e /f/: Carne é crime e Fome é foda. O mesmo na forma pode não equivaler, porém, à reiteração do sentido.
A deslinearização dos enunciados, postos sob as várias possibilidades de jogo da língua e com a língua, confirma que se trata muito mais de uma questão de sentidos produzidos pela história do que pela materialidade lingüística propriamente dita. Estamos diante de uma pluralidade de pontos, a qual, segundo Courtine (1981), é determinada por diferentes condições de produção. E, neste caso específico, condições de produção que tornaram possível a emergência dos dois enunciados no espaço urbano, não inocente nem casualmente ladeados. E nesse espaço expõem-se, chamam à interpretação.