Revista Rua


Da parede ao corpo social: a carne que não satisfaz
From the Wall to the Social Body: the Meat Doesn't Satisfy

Gesualda dos Santos Rasia

éramos pichadores alfabetizados. Nossas reivindicações se faziam com letras tradicionais de uma escrita (que se queria) bem legível: “Fora a Ditadura!” para quem fosse alfabetizado. E os que não eram também entendiam, pelo modo como as palavras apareciam nos muros (...) que se tratava de um gesto de contestação política. Hoje, a pichação é, já nos seus sinais indecifráveis para muitos, a própria manifestação da reivindicação e da contestação política e, mais claramente, que a pichação de 70, social. Não são a mesma formação discursiva. Não são o mesmo recorte da ideologia, ainda que sejam igualmente contestárias. E isso é a história e o político. (ORLANDI, 2004: 106-7)
 
No caso da presente análise, estamos diante do traço legível, num tempo em que as contestações políticas ganharam, de certo modo, e até certo ponto, foro de legitimidade. Trata-se, no nosso ponto de vista, de uma forma de tomada do social que é também de ordem política, em sentido não estrito. Nessa tomada, são abaladas certas evidências, produzidas pelas relações de mercado que produzem/distribuem, sob regras semelhantes, por um lado, alimentos e, por outro, os bens da cultura. Dentre eles, a escrita.
Ao inscrever-se no lugar da interdição, o enunciado “Carne é crime!” produz sentidos de modo diverso daqueles da escrita autorizada. Sua condição de existência são as margens, onde se produzem microcentros a partir dos quais se estabelecem pontos de convergência para diferentes direções. Este espaço inscreve-se de modo não-convencional na economia escriturística[4] contemporânea. Primeiramente, porque o suporte não é o artefato livro, ou mesmo o jornal, sujeito a regras de produção e de distribuição; segundo, porque a autoria é uma voz sem-nome e, por último, mas igualmente relevante, porque dilui a histórica fronteira entre as formas canônicas do oral e as do escrito.
A ausência de assinatura produz uma lacuna que apaga a origem imaginária presente em escrituras autorizadas pela ordem capitalista. O sujeito que aí escreve


[4] De Certeau (1994) desenvolve a ideia de economia escriturística com base no modo como o ocidente moderno passou a produzir e distribuir os bens da cultura letrada, principalmente com base na oposição oral/escrito. A escrita é o fundamento da sociedade capitalista, na qual é reconhecida como trabalho, e na qual “só se compreende aquilo que se escreve”.