Revista Rua


A enunciação da cidade: práticas discursivas sobre a São Paulo do início do século XX
The city enunciation: discourse practices about São Paulo at the beginning of XX century

André Luiz Joanilho, Mariângela Peccioli Galli Joanilho

A CIDADE LIMPA
 
Dessa cidade provisória que foi São Paulo, algumas marcas ficaram indeléveis durante vários anos. Uma delas é o sentido de modernidade que a metrópole industrial assumia pelo seu vertiginoso crescimento. A necessidade de reler o passado sob esta ótica fez com que o mito do industrialismo e operosidade dos paulistanos passassem a fazer parte do “espírito” paulistano (FERRAZ DE LIMA e/ou, 1993: 165).
Entretanto, esse “espírito” industrioso, moderno, que muitas vezes serviu de contraposição ao carioca (folgazão, malandro, malemolente), indica uma frustração com relação à posição geográfica e política da capital paulista e que, na realidade, coadunava com as formulações acerca do indivíduo promovidas pela elite letrada da cidade.
No debate que se seguiu após o governo do Estado homenagear os doutores Adolfo Lutz, Emilio Ribas e Pereira Barreto, pelas experiências feitas sobre a transmissão da febre amarela, no Hospital do Isolamento, em 12 de outubro de 1903, além da discussão sobre o vetor da doença, questionada longamente pelos doutores Arthur Mendonça e, principalmente, Nuno Andrade, este ex-diretor do Serviço de Saúde Pública, o Dr. Pereira Barreto aproveitou para se opor ao digno médico carioca, o Dr. Nuno. Enfrentando o vetusto higienista do Rio de Janeiro, Pereira Barreto lança mão da ironia para um debate que se arrasta até o fim do ano de 1903 nas páginas d’O Estado de São Paulo, discutindo filosofia e ciência, ficando em segundo plano a discussão sobre a forma de transmissão da febre amarela. Mas o que nos interessa dessa verdadeira esgrima retórica, é como Pereira Barreto apresenta o paulista ao médico carioca em face do tipo de debate:
 
o bestunto paulista [...] chama a este especimen de subtil dissecção casuistica, operada pelo colega: um quebra-pescoço. É inutil pedir-lhe um esforço de interpretação; elle vira as costas e manda resolutamente para o diabo todos os compendios e mestre de philosophia, que se divertem em pôr-lhe os miolos a arder.
E, o que é mais grave, em prejuizo do prestigio da toga, elle vae á casa do primeiro vizinho, um ferreiro, e delle aprende que uma ferradura, confeccionada sobre a bigorna, emquanto o ferro está quente, será eternamente ferro, porque veiu do ferro, e que este producto artistico do ferro é o melhor sapato para quem de direito. Se o ferreiro lhe dissesse, pelo contrario: esta ferradura de ferro, que eu fiz de ferro,