Revista Rua


Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias da duração
City told, Time lived: Studies in Ethnography of the Duration

Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert

tempo narrativo, o trabalho da memória em que os habitantes ordenam sentidos de práticas coletivas. Certo, alguns fazem suas as palavras de uma estrutura de poder discursivo, moral e legalista. Neste mimetismo das representações dominantes, pouco podemos negociar por um jogo de memórias que não se limite a reprodução de racionalidades sobre a cidade legalizada. Mas, em face do habitante que aceita compartilhar suas interpretações, o tempo vivido na cidade se torna mote de narrativas que operam as formas do pensamento ordenar as descontinuidades dos ritmos cotidianos. Assim, ao narrarmos nós, as formas do viver urbano em Porto Alegre, reconhecemos os citadinos como uma comunidade interpretativa no âmbito de um campo semântico, no qual também o pesquisador em suas interpretações, é configurador de um pensamento sobre as formas dos tempos vividos nas cidades.
O porto-alegrense nesta narrativa interpretativa pode ultrapassar os símbolos que o culturalizam em emblemas identitários. Como sugere Marcel Proust tantas vezes retomado por Walter Benjamin, na ação do habitante narrar-se na interlocução as memórias da cidade, a “identidade-mesmidade” é destruída, o que significa “a renúncia à discursividade linear” e que acarreta “uma alteridade sempre renovada do objeto” (apud Gagnebin, 1999: 147-8). O citadino motivado a evocar suas memórias e imagens no fluxo do relato biográfico, se reinventa como sujeito que narra situações-eventos (Sahlins, 1985) de suas experiências vividas no contexto citadino como trama de construção de sentidos de um “si-mesmo”, narrativas estas que não estão desprovidas de toda dimensão normativa, valorativa, prescritiva e ética (Ricoeur, 1991). A narrativa, aliás, já pertence ao campo ético em virtude da pretensão, inseparável da narração, à correção ética (Ricoeur, 1997: 429).
Nas cidades moderno-contemporâneas são inúmeras e distintas as tradições narrativas segundo as quais a vida urbana é interpretada. Mas o antropólogo, em seu ofício de pesquisar na cidade, parte de uma perspectiva metodológica interpretativa específica para configurar um grupo de interesse de estudo. Esta perspectiva da prática etnográfica postula uma aproximação e convivência, onde o pesquisador compartilha, na experiência etnográfica, o fluxo cotidiano de pessoas pesquisadas. No consentimento da experiência compartilhada, o tempo de convivência torna-se mais denso tanto quanto densa se torna a demanda de observar situações vividas e de escutar suas falas.