Revista Rua


Cidade narrada, tempo vivido: estudos de etnografias da duração
City told, Time lived: Studies in Ethnography of the Duration

Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert

de seus habitantes permite aceder. As estruturas que tornam inteligíveis o campo semântico das ações desses habitantes no tempo, e que são constantemente evocadas, por exemplo, no espaço das narrativas aqui apresentadas, dão conta, por sua vez, do processo de transfiguração incessante das formas de vida social dos grupos urbanos. Por outro lado, as memórias dispõem sobre as trajetórias de vida ritmadas nas constantes transformações e mudanças destrutivas e/ou criativas. A confeitaria do Rocco que “eu adorava” (Dona Emma) já não existe mais, é apenas ruínas. E mesmo que ainda existisse, o centro é hoje evitado pelo casal, a não ser que a consulta do médico obrigue a ir ao centro: “nesse caso vamos e voltamos de táxi”.
Eis, assim, o nosso desafio: como apreender essa cultura do tempo? Teremos que enfrentar a compreensão da dimensão de intriga decorrente da ação aos personagens que dimensionam a vida de Porto Alegre. Intrigas que, operadas pelas narrativas na forma de uma tríplice mimese (prefiguração, configuração e refiguração), reúnem, num tempo compartilhado controverso, vidas pessoais, histórias coletivas, lógicas sociais, relações estruturais e organizacionais etc., e cuja tessitura tem por meta fazer concordar tudo aquilo que é, em si mesmo, discordante.
Trata-se de agenciar, na formação da intriga, o reconhecimento do narrador da fragilidade da continuidade de sua recordação, pela vulnerabilidade do ser no tempo que se esvai, onde a narrativa não fecha uma vida vivida na Porto Alegre de ontem, mas a situa na descontinuidade do tempo que é ritmo. O jogo “lembrar e esquecer” é sim um projeto restaurativo, mas ingênuo, diz Benjamin, pois só retoma do passado uma não-identidade de si, pois essa está aberta sobre o futuro, sobre o inacabado, porque, afinal de contas, o drama continua (citamos Gagnebin, 1999: 13-6).
Sob este ângulo, nada do mundo objetivado ou subjetivado é aqui materializado como uma realidade de vida do passado, de ontem, em contraste com uma condição presente, de hoje. A interpretação de si-mesmos dos nossos narradores tanto quanto as do etnógrafo, compartilhando experiências do viver urbano, são agenciadas por sua pertença ao mundo dos simbólicos; uma cultura urbana que se transforma a partir dos jogos da memória de seus habitantes, e pela forma como elas potencializem uma dramática do viver cotidiano na cidade.