Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

personagens encenam o cotidiano citadino, animando os lugares e desenhando a fisiognomia[2] dos espaços urbanos.
 
Gostosa / Quentinha / Tapioca / O pregão abre o dia / Hoje tem baile funk / Tem samba no Flamengo / O reverendo / No palanque lendo / O Apocalipse / O homem da Gávea criou asas / Vadia / Gaivota / Sobrevoa a tardinha / E a neblina da ganja / O povaréu sonâmbulo / Ambulando / Que nem muamba / Nas ondas do mar / Cidade maravilhosa / És minha / O poente na espinha / Das tuas montanhas / Quase arromba a retina / De quem vê / De noite / Meninas / Peitinhos de pitomba / Vendendo por Copacabana / As suas bugigangas / Suas bugigangas (Carioca - 1998)
 
            Inspirado no cenário do Rio de Janeiro, já sabidamente “antropomorfizado” em figuras como a do malandro, conforme recorda Negrão de Mello (2003, p.15), Chico Buarque canta os personagens típicos da cena cotidiana dessa cidade na canção “Carioca” (1998). Figuram em seus versos: o vendedor de tapioca na praia; o praticante de vôos de asa delta que salta da pedra da Gávea; a gaivota; os ambulantes; e as adolescentes, meninas, prostituindo-se em troca, sobretudo do dinheiro estrangeiro, nas praias de Copacabana. Referências ao cotidiano das prostitutas e à sua encenação no cenário urbano aparecem ainda em outras canções como “Folhetim” (1978) e “Las muchachas de Copacabana” (1985).
            A figura do malandro, ícone do imaginário a respeito da cidade do Rio de Janeiro, também foi evocada em diversas músicas desse repertório como, por exemplo, as duas versões de Chico Buarque para a canção de Kurt Weill e Bertold Brecht (“O malandro” e “O malandro nº 2”, ambas de 1977/78), “A volta do malandro” (1985) e “Homenagem ao malandro” (1977-78).
 
O malandro
Na dureza
Senta à mesa
Do café
Bebe um gole
De cachaça
Acha graça
E dá no pé
(O malandro - 1977/78)
 
Eis o malandro na praça outra vez
Caminhando na ponta dos pés
Como quem pisa nos corações
Que rolaram dos cabarés
(A volta do malandro - 1985)


[2] Expressão que, a exemplo de Willi Bolle (1994), empresto de Walter Benjamin.