Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

O cotidiano da violência, das crianças envolvidas em situações de risco, também aparece nas canções, pela voz do pai do menino assassinado em “O meu guri” (1981) ou pela notícia da mortalidade infantil em “Brejo da Cruz” (1984), ou ainda pelo cotidiano do “pivete”, cantado nos versos de 1978:
 
No sinal fechado / Ele vende chiclete / Capricha na flanela / E se chama Pelé / Pinta na janela / Batalha algum trocado / Aponta um canivete / E até / Dobra a Carioca, olerê / Desce a Frei / Caneca, olará/ Se manda pra Tijuca / Sobe o Borel / Meio se maloca / Agita numa boca / Descola uma mutuca / E um papel / Sonha aquela mina, olerê / Prancha, parafina, olará / Dorme gente fina / Acorda pinel
(Pivete - 1978)


Na canção “A cidade dos artistas” (1981), composta para o filme “Os Saltimbancos Trapalhões” [3], o cotidiano dos artistas de rua é colocado em destaque, pela voz dos próprios atores.
 
Na cidade / Ser artista / É subir na cadeira / Engolindo peixeira / É empolgar o turista / É beber formicida / É cuspir labareda / É olhar a praça lotando / E o chapéu estufando / De tanta moeda / É cair de joelhos / É dar graças ao céu /
Lá se foi o turista / O dinheiro, a peixeira / A cadeira e o chapéu
(A cidade dos artistas - 1981)
 
Também a encenação diária dos trabalhadores é objeto de canções como “Pedro Pedreiro” (1965) e “Construção” (1971), desde o amanhecer, quando estão nos terminais “esperando o trem”, até o trabalho de erguer paredes, “tijolo por tijolo, num desenho lógico”.
Outros tantos personagens, encenados pelo que Silva chamará de “pessoas comuns” (1996, p.94) que animam os cenários urbanos ou, no dizer de Certeau (1994), “praticam os lugares”, criando os espaços citadinos, são evocados na música de Chico Buarque.
Todavia, não apenas o espaço urbano se constitui pela encenação interativa dos personagens que o habitam, mas também as pessoas se constituem nesse jogo de cenas. Maffesoli, como nos recorda Teixeira (1990), considera adequado recorrer à etimologia da palavra pessoa (persona – máscara) para compreender que a entidade “eu”


[3] Filme dirigido por JB Tanko e lançado em 1981.