Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

pode ser mutável e se integra numa variedade de cenas e de situações, válidas somente porque representadas em conjunto. À multiplicidade do eu corresponde uma ambiência comunitária, porque, ao contrário da noção de indivíduo que se apóia numa lógica de identidade isolada, a pessoa só existe na relação com o outro, portanto enquanto participante de uma comunidade (p.136).
 
Se, de um lado, “sim, os homens habitam as cidades enquanto objeto real. Nesse nível, ela é uma entidade concreta, com suas ruas, praças e sistemas de transporte” (ROUANET e PEIXOTO, 1992, p. 71), esses meios de transporte bem podem ser como chamam os gregos, methaphorai[4] e os homens que se movem pelo espaço urbano também cavalgando seus relatos, têm seu imaginário habitado pela cidade.
 
 
CIDADES QUE HABITAM HOMENS
 
            Em resposta à pergunta sobre as cidades habitarem os homens ou os homens nela residirem, Rouanet arrisca uma resposta que julga ser a de Walter Benjamin:
 
Ele responderia que o homem habita uma cidade real e é habitado por uma cidade de sonho. Essa dualidade resume o essencial do Trabalho das Passagens. Em todos os momentos, Benjamin joga com dois níveis de realidade, a realidade objetiva e a onírica. (ROUANET e PEIXOTO, 1992, p.67)  
 
Essa imagem da cidade que habita os homens aparece assim mesmo num verso da canção “Assentamento” (1997) que dá voz a um personagem migrante do sertão para cidade, que, hoje saudoso da “campina quando flora” e resolvido a ir embora, convoca seus pares a segui-lo, dizendo “a cidade não mora mais em mim / Francisco, Serafim / Vamos embora”.   
Rouanet prossegue com a resposta à pergunta lançada, ainda apoiado no referencial de Benjamin, sugerindo que “é nos homens que a cidade mora, porque é parte de sua vida de sonho” (1992, p.71). A cidade, portanto, não só habita os homens, como é objeto de suas idealizações.
Entre as canções que compõem o musical infantil “Os Saltimbancos” (1977)[5], está “Cidade Ideal”, cuja letra se refere à expectativa, às idealizações que cada bicho (antropomorfizado) faz a respeito da cidade que se aproxima. As idealizações da cidade


[4]“Na Atenas contemporânea, os transportes coletivos se chamam methaphorai. Para ir para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma ‘metáfora’ – um ônibus ou um trem.” (CERTEAU, 1994, p. 199).
[5] O musical de Enriquez e Bardotti narra a aventura de um grupo de bichos que se conhecem no caminho de migração para a cidade.