Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

trazem uma combinação dos elementos exteriores já conhecidos dos bichos, reorganizados segundo os desejos de cada animal.
 
Cachorro: A cidade ideal dum cachorro
Tem um poste por metro quadrado
Não tem carro, não corro, não morro
E também nunca fico apertado
 
Galinha: A cidade ideal da galinha
Tem as ruas cheias de minhoca
A barriga fica tão quentinha
Que transforma o milho em pipoca
(Cidade ideal - 1977)

Além de se tornar objeto de idealizações dos sujeitos, a cidade parece interferir na vida psíquica de seus habitantes e, de acordo com Simmel (1976), cria “condições psicológicas” manifestas nas pequenas atitudes diárias dos sujeitos. Dessa forma, segundo Simmel (1976, p.15),
 
todas as exterioridades mais banais da vida estão, em última análise, ligadas às decisões concernentes ao significado e estilo de vida. Pontualidade, calculabilidade, exatidão, são introduzidas à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana e não estão apenas muito intimamente ligadas à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico.
 
Cidade e cotidiano acham-se assim imiscuídos naquilo que constitui a experiência diária do urbanita, tanto em nível de seu comportamento psicológico como de sua prática diária desde o seu despertar matinal até o desfecho da vida.
 
 
CIDADE, COTIDIANO E HISTÓRIA
 
Não é sem razão que os versos de “Cantiga de acordar” (2001), usam como imagem do absurdo a existência de um tempo sem lugar: “foi uma ilusão / uma insensatez [...] era como um trem / que anda sem passar / era um tempo / sem lugar”. A existência histórica só pode ser entendida nesse entrecruzamento entre um espaço e um tempo, aliás, duas categorias fundamentais para a história.
Assim como espaço e tempo se conjugam na configuração dos acontecimentos, o espaço da cidade está impregnado de história e, como na canção “Vai passar” (1984), “cada paralelepípedo da velha cidade”é capaz de lembrar o que passou.