Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

 
Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
[...]
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
(Mário Quintana – Canção do dia de sempre)
 
 
            Na esteira de inquietações que têm fomentado os estudos sobre a cidade, preocupações com suas dimensões sócio-histórica e cultural têm ganhado força e notoriedade. A cidade, então, é lida como espaço urbano, animado pelas práticas cotidianas das pessoas que habitam o cenário citadino. No dizer de Bresciani (1996, p. 38), “cultura contemporânea e cidade formam duas entidades mutuamente implicadas”.
            Assim, os estudos sobre a cidade realizados sob essa perspectiva têm multiplicado suas lentes a fim de dedicarem atenção aos mais variados elementos e combinações de elementos que compõem as configurações complexas do espaço urbano. Estudos, desenvolvidos especialmente na área da análise do discurso, têm apontado para uma noção de cidade como espaço peculiar de interpretação, o que nos permite perguntar, conforme sugere Eni Orlandi em sua Cidade dos Sentidos (2004): “como os sujeitos interpretam a cidade, como eles se interpretam na cidade, como a cidade impõe gestos de interpretação, como a interpretação habita a cidade etc” (p.21). Um caminho possível para a investigação dessas questões parece ser dedicar atenção à vida cotidiana – um “setor privilegiado da prática” (LEFEBVRE, 1972, p.86) que institui os espaços urbanos tais como se nos apresentam.
            As cidades, portanto, não aparecem descoladas da figura do urbanita, que compõe o espaço citadino tanto com sua presença e agência física como com suas experiências psicológicas, sensíveis e imaginárias engendradas nessa ambiência urbana. O reconhecimento dessa dupla, ou melhor, múltipla atuação do urbanita na configuração do espaço da cidade abre, aos pesquisadores sociais em geral, caminhos de investigação trilhados a partir da atenção dispensada às diferentes modalizações do cotidiano nas cidades.
            Observando essas modalizações, muitos pares exploratórios podem ser pensados de modo a aproximar os moldes do recorte feito pelo pesquisador às formas de articulações forjadas no cotidiano urbano. Nesse esforço de compreensão, escolhi me dedicar, neste texto, a uma leitura do par cidade e expressão musical, entre os tantos entrecruzamentos possíveis.