Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

Sob a perspectiva da História Cultural, repertórios musicais são tomados como produtos culturais que desafiam as tentativas interpretativas por se configurarem em discursos que permeiam o cotidiano ao mesmo tempo em que o tematizam. Assim, pretendo construir, neste texto, um percurso de compreensão e exploração de referências ao cotidiano e à encenação urbana no cancioneiro de Chico Buarque.
            À semelhança do que observou Negrão de Mello (1997) na obra de Adoniran Barbosa, a cidade aparece no cancioneiro de Chico Buarque não apenas como um cenário para os enredos de suas canções. Mais do que isso, o cotidiano citadino apresenta-se, muitas vezes, na obra desse compositor como o próprio enredo de seus relatos cantados, ou ainda como uma de suas “condições de produção” (Ibidem, p.150).
            Temáticas atinentes ao cotidiano na cidade permeiam o repertório de Chico Buarque e compõem muito mais versos que o célebre (já referenciado no título) “todo dia ela faz tudo sempre igual”, diversas vezes repetido ao longo da canção “Cotidiano” (1971). O interesse desse compositor pelo cotidiano citadino revela-se não tanto pelo fato de ter batizado um de seus discos com o nome “Cidades” quanto pela frequência com que nos deparamos com relatos cantados desse cotidiano em sua obra, a cada feita sob um viés diferenciado.
Assim, o cotidiano urbano na obra de Chico Buarque aparece centuplicado pelo relato das mais diferenciadas práticas que o compõem. Diante desse cotidiano que se mostra como quase inapreensível, espargido e impregnado em cada canto do cenário citadino, um entendimento precípuo nos socorre:
           
Donde sorprender la cotidianidad? Contestaremos esta pregunta de manera también aparentemente ambígua: La sorprendemos en todas partes y en niguna. No consiste ni en la vida familiar con su entorno y relaciones, ni en las distracciones, el ocio y sus actividades múltiples. Y, al mismo tiempo, es todo esto, la vida del ser humano que va de lo uno a lo outro, que se realiza y pierde tanto en el trabajo como en la família o el ocio. (LEFEBVRE, 1972, p.88)
 
Interessa-nos o repertório de Chico Buarque por apresentar, como condições de produção e objetos de tematizações, diversas situações cotidianas que, como recorda Teixeira (1990, p. 110), Maffesoli chamaria de “espuma dos dias”. O compositor demonstra uma postura mental atenciosa – radicalmente diferente da atitude blasée descrita por Simmel (1976) – no que diz respeito ao cotidiano das cidades.
Embora tenha optado, conforme orienta Orlandi (2004), por realizar, nesse trabalho, uma análise em certo sentido despretensiosa no que diz respeito à descrição ou