Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
(Deus lhe pague - 1971)
 
Talvez mais que a velocidade desse tempo, os versos acima transcritos e os demais que compõem as duas canções citadas e ainda outras, suas irmãs de sentido, expressem a necessidade de dar cumprimento ao que Maffesoli (apud TEIXEIRA, 1990) reconhece como o critério do “dever-ser” ou daquilo que orienta, na direção de uma moralidade focada numa finalidade pragmática última, as ações cotidianas dos sujeitos, de acordo com esse sentimento de dever que tende a sobrepujar, em muitos momentos, a agência puramente impulsiva. 
Não são, entretanto, apenas referências ao cotidiano das grandes cidades, metrópoles, que se mostram nas canções de Chico Buarque. Integram o repertório desse compositor, músicas como “A Banda” (1966), “A noiva da cidade” (1975/76), “Gente Humilde” (1989) e outras cujos enredos que têm, notadamente, uma ambiência urbana diferente daquela própria das metrópoles. Esses versos tratam do cotidiano de ruas estreitas margeadas por “casas simples / com cadeiras na calçada / e na fachada / escrito em cima que é um lar”.
 Também as relações de vigilância estabelecidas entre a vizinhança, sobretudo nas pequenas cidades e nos bairros menores, aparecem em trechos que misturam referências diretas a construções metafóricas em que elementos do cotidiano urbano, de tão pertencentes aos urbanitas, servem de imagem para a expressão das emoções.
 
Quando aumentar a fita
As línguas vão falar
Que a dona tem visita
E nunca vai casar
Se enroscam persianas
Louças se partirão
O amor está tocando
O suburbano coração
(Suburbano Coração - 1984)
 
Eu quero fazer silêncio
Um silêncio tão doente
Do vizinho reclamar
E chamar polícia e médico
(Agora falando sério - 1969)
 
O cotidiano infantil na cidade também é algumas vezes referenciado. Aparecem, nas canções, práticas infantis ambientadas no cenário urbano, como a invasão ao terreno do vizinho onde “todo balão caía e toda maçã nascia” (Até pensei – 1968) ou as