Revista Rua


Para além do "sempre igual": cotidiano e encenação urbana no repertório de Chico Buarque
Beyond the routine: daily life and urban mise en scène in the Chico Buarque's repertoire

Flávia de Souza Fontineles

No entanto, Sohiet (1998) alerta para a necessidade de pensarmos a festa em suas significações culturais, já que, por mais que possa servir como estratégia de controle social, a festividade é também uma forma de expressão cultural legítima, que pode possibilitar “ao historiador, munido do método indiciário, alcançar os significados sociais, por vezes inacessíveis por outros caminhos” (p. 25).
Assim, a respeito da popularidade das festas pertencentes ao calendário católico do Rio de Janeiro durante o Império, Sohiet (1998) aponta que “para os populares, esses festejos assumiam uma dimensão lúdica, pois neles tinham oportunidade de atender às suas necessidades de lazer, expressando de inúmeras formas seu universo cultural” (p.20).
            As festas e demais ocasiões de suspensão da cotidianidade citadina, assim como a manutenção do ritmo habitual do cotidiano, dependem sobremaneira do ânimo de seus habitantes, das disposições individuais e coletiva de interromper a rotina. Sem exageros, é possível dizer que não há festa sem convivas ou foliões, assim como não há cidade sem seus habitantes, em presença física ou rememorada. Esses sujeitos, personagens da encenação urbana diária, são também cantados em versos do cancioneiro de Chico Buarque. 
 
PERSONAGENS QUE HABITAM E ANIMAM A CIDADE
 
Tomado de empréstimo o verso da canção “As vitrines” (1980), vazia das práticas que a configuram e que lhe imprimem ritmo, “a cidade era um vão”. As cidades, sem as práticas dos urbanitas, em presença ou em memória, são apenas lugares.
A noção de lugar, de acordo com Michel de Certeau (1994), difere substancialmente daquela referente a espaço. O lugar é apenas um conjunto de objetos em ordenação, o sentido de espaço só se dá pela animação, pelos movimentos e práticas instauradas nos lugares.
 
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram (Ibidem, p.202)
 
 
            Assim, no entender de Certeau, “espaço é um lugar praticado”. E que são as cidades, senão lugares tornados espaços pela encenação diária das pessoas comuns que animam os cenários urbanos e neles produzem suas práticas? No “teatro de ações” (Ibidem, p.209) cantado por Chico Buarque, várias pessoas habitam a cidade e seus