Revista Rua


A máquina corretiva, ou como restituir aos moradores de rua à estrutura: dois modelos de transformação
The corrective machine, or how to restore the homeless people to the structure: two models of transformation

Carlos José Suárez G.

“liminares rituais”, que mudam seu status original para um mais elevado, os marginais estão sempre em decadência. Para estes seres a sociedade tem reservado “a função simbólica de representar a humanidade, sem qualificações ou características de status. Neste caso, o mais baixo representa a totalidade humana, o caso extremo retrata mais adequadamente o todo” (TURNER, 1971, p.218).
 
Nesta ordem de idéias, devemos procurar entender como é possível que algumas pessoas de nossa sociedade contemporânea entrem neste estado. Em uma investigação realizada em 2007 sobre meninos e meninas de rua foram elencadas as principais causas da saída de casa e de sua chegada à rua. Muitas destas crianças[17] relataram que sua chegada à rua deu-se principalmente como conseqüência da pobreza nas suas famílias; algumas delas pertencem à segunda geração na rua. A isto se acrescenta abuso de drogas e de álcool dos parentes. A casa foi em muitos casos “fator de expulsão”[18] por violência e abuso sexual, particularmente em lares pobres com padrastos como chefes de família (BARRIOS et alli, 2006).
Os jovens abandonados na rua tinham que aprender a se defender rapidamente; a chegada à rua como experiência de liberdade total significa para o menino dispor do seu próprio corpo à vontade, o que se manifesta pela precocidade sexual e pelo uso de entorpecentes. Sem dúvida, a rua é relatada como um território “selvagem” e agressivo, que requer ser domesticado, particularmente adotando uma atitude hostil e temerária, usando uma linguagem carregada de gíria e palavrões: “O mais difícil foi encaixar-me lá, porque era um meio muito agressivo, e eu fui me tornando como eles, por qualquer coisa estourava, e saía na porrada. Eu comecei a ser assim”[19](BARRIOS et alli, 2006,


[17] Não penso discutir neste trabalho o uso eufemístico dos termos, seja criança, infante, menino, jovem, adolescente, menor, rapaz, garoto ou moleque para se referir a estas pessoas. Isto fica reservado para aqueles políticos e pesquisadores que gostam de brincar com estas categorias de discurso para driblar problemas sociais e as sugestões para sua transformação.
[18] Cabe anotar que alguns pesquisadores na América Latina referem-se timidamente a este encadeamento de fatores, mostrando um excesso de cautela nesta questão, argumentando que, se fosse assim, as ruas estiveram cheias de meninos das camadas pobres e miseráveis das grandes cidades.
[19]Lo más difícil fue acoplarme allá, porque era un medio muy agresivo y yo me fui volviendo como ellos, por cualquier cosa me “regaba” [empezar a insultar sin contenerse] y venga démonos [golpes] y yo ya me volví así”.Por outra parte, Arno Vogel (1996) vê na “turma” o meio pelo qual o menino entra na “nova geopolítica” da rua carioca. Ao mesmo tempo em que é obrigado a nela estar sua característica essencial, segundo este autor, é a igualdade total entre seus membros. Ainda que a “turma” seja um suporte de proteção para o menino que chega pela primeira vez à rua, na Colômbia o fenômeno da “turma”, chamada de “pandilla” ou “gallada” foi se perdendo, pelo menos na forma de conjunto de meninos caminhando juntos pela rua, ou reunidos juntos nas esquinas para falar, ou dormindo juntos no chão; portanto, esse tipo de “rede de apoio” para os meninos está praticamente suprimido na Colômbia. A perda destes conjuntos foi dada pelo aumento, em meados dos anos 90, de outro fenômeno a ser tratado neste trabalho: a “limpeza social”; aqueles que a praticavam, aproveitavam o excesso de visibilidade destes grupos para identificá-los e exterminá-los. Porém, existe, sim, outro tipo de integração dos moradores de rua, mas só presente entre os adultos, denominado “parche”: são grandes conjuntos de catadores de lixo que se reúnem sob os viadutos para realizar a tarefa de catar lixo pela noite; alguns deles aproveitam este momento para dormir.