Revista Rua


A máquina corretiva, ou como restituir aos moradores de rua à estrutura: dois modelos de transformação
The corrective machine, or how to restore the homeless people to the structure: two models of transformation

Carlos José Suárez G.

p.79). Apesar da violência do novo ambiente, parece que são poucos os jovens que realmente desejam voltar para casa. Na rua, no meio do sofrimento, encontram um espaço vital de liberdade[20].
A chegada à rua implica para os meninos, obviamente, a entrada em um mundo novo, que neste trabalho se assemelha à anti-estrutura. Esta anti-estrutura, como é definida por Turner, não é necessariamente o reino do caos; discutirei, portanto, a apresentação que faz Turner desta etapa do “drama social” como se ela fosse um momento de total homogeneidade e simetria entre seus membros. Alguns autores no Brasil, como Arno Vogel, fazem este tipo de leitura das comunidades que se formam na rua, tidas por ele como uma communitas, uma “fraternidade que reúne seus membros nos perigos e peripécias comuns da saída para o mundo da rua” (1996, p.147), cuja lei essencial é o silêncio, seguida do princípio que este autor chama de “não-interferência/não-alugação”, ou seja, deixar a cada qual fazer sua vontade desde que não comprometa a integridade do grupo[21].
Pelo contrário, em uma investigação que fiz durante os anos 2006 e 2007 (GÓNGORA; SUÁREZ, 2008) expus como era percebida a violência dentro de um local muito particular de Bogotá, a “Calle del Cartucho”[22]. Nesta zona, estavam concentradas a maior quantidade de homicídios da cidade, os mercados ilegais, as atividades ilícitas e uma série de estruturas criminais, mas estava caracterizada, sobretudo, pela maior presença de moradores de rua de Bogotá (CÁMARA de Comercio de Bogotá, 1996; NIÑO et al. 1998; LLORENTE et al. 2001; ROBLEDO; RODRIGUEZ, 2008). Estas investigações concluem em geral que a “Calle del Cartucho” era o epítome do medo, de perigo e da morte na capital da Colômbia. Ou seja, nos termos de Turner, nos encontramos na presença de um local da cidade reservado para essa população tão especial que estou caracterizando. Mais do que isso, este local corresponde àqueles já definidos por Turner: “a communitas que é, em princípio, sem fronteiras, tem sido, na prática histórica, limitada a regiões geográficas especiais e a aspectos específicos da vida social” (2008b, p.250)[23]. A identificação entre


[20] Rompe-se assim a dicotomia do sentido comum “rua-perigo/casa-seguridade”. Ao menos duas pesquisas publicadas desvendam os perigos da casa, colocando a violência intrafamiliar como um verdadeiro problema de saúde pública, mascarada pela espectacularização e publicidade que têm os crimes na rua (cf. BARRIOS et alli, 2006; JIMENO et alli, 2007).
[21] Em definitivo, este tipo de interpretações “idílicas” da vida na rua lembram o mito de “Peter Pan”, quando, na verdade, sua dinâmica tem verossimilhança com “O Senhor das Moscas”.
[22] A “Calle del Cartucho” passou por um processo de renovação urbana e foi derrubada para construir o Parque Terceiro Milênio. Para consultar detalhes desta metamorfose urbana cf. Suárez (2010)
[23] A idéia de communitas de Vogel está ligada à sua forma “utópica” e intersticial; nesta análise prefiro a forma “histórica” e concentrada.