Revista Rua


Resenha

Espaços enunciativos transnacionais: como a capitalização linguística afeta a ordem da língua portuguesa (do Brasil)?

Angela Aguiar Araújo[1]

O impacto da criação do Mercosul na constituição de políticas linguísticas para a integração regional foi um dos pilares de sustentação da investigação realizada conjuntamente por instituições do Brasil e da Argentina que resultou no livro O português do Brasil como Língua Transnacional (ZOPPI-FONTANA, 2009). Organizado pela pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mónica G. Zoppi Fontana, esta obra pode ser considerada uma das iniciativas precursoras da proposição da conceituação da língua a partir do espaço enunciativo transnacional. Um novo processo de gramatização do / no Brasil, marcadamente afetado pelas condições de produção determinadas por uma política de mercado (da qual resulta o que é denominado “língua de mercado” / “mercado de línguas”) que visa à integração regional, teria sido possível a partir do processo de constituição do estado nacional (brasileiro). O deslocamento de sentidos (materno / nacional / transnacional) seria consequência do processo de gramatização distinto (com a consolidação de uma memória distinta / de uma rede distinta de filiação dos sentidos) de Portugal, do qual resultaria a posição de autoria brasileira frente à própria língua.

De que modo uma possibilidade outra de significação da língua (transnacional) está ligada ao gesto teórico que vem sendo realizado, há algumas décadas, no Brasil, para compreender os processos pelos quais instrumentos linguísticos se constituem no trabalho político-científico de definição dos limites imaginários da língua (materna / nacional)? Zoppi-Fontana (p. 9), ao descrever como foi impelida à investigação da posição de autoria brasileira, destaca a “aventura” intelectual proposta[2] por Eni Orlandi, há cerca de duas décadas, para estudo do processo de gramatização do português do Brasil. Afetada ainda pelo gesto de reterritorialização entre o espanhol (língua na qual foi escolarizada e realizou estudos até a graduação) e o português (tendo em vista que realizou pós-graduação no Brasil, onde estabeleceu carreira acadêmica), Zoppi-Fontana se lançou, ainda nos anos 1990[3], na pesquisa que resultou na obra em questão. Desde então, com a colaboração de alunos e de colegas, vem desenvolvendo trabalhos a partir da hipótese da posição de autoria como resultado de um destacado processo brasileiro de gramatização que, mais recentemente, originou políticas de promoção da língua nos espaços de enunciação internacional. Mas como os gestos institucionais que dão os contornos de significação à unidade do português do Brasil (língua transnacional) fazem deslocar sentidos daquilo que funciona(ou), muitas vezes, como uma coincidência ao fazer significar a unidade da língua (materna / nacional / de estado) do estado nacional?

Na obra, há uma predominância do escopo teórico-metodológico da História das Ideias Línguísticas e da Análise de Discurso. O eixo de ligação entre os artigos se dá pelo fato de as análises destacarem espaços discursivos / enunciativos a partir dos quais o português é significado como língua estrangeira ou na relação com a língua estrangeira: materiais didáticos do português, legislação, mídia, sites institucionais, anais de congressos, exames de proficiência, a “nacionalização” / “escolarização” do imigrante, etc.

Capitalização Linguística

No artigo O português do Brasil como língua transnacional, Mónica G. Zoppi Fontana descreve como, nas duas últimas décadas, depois de o estado brasileiro assumir o papel de gestor da língua, ocorrem atos fundacionais que inaugurariam um novo sentido para a língua: além de nacional, transnacional. Os “espaços enunciativos ampliados” ou “espaços de enunciação transnacional” se caracterizam como um novo momento do processo de gramatização da língua portuguesa marcado pelo funcionamento de uma “denegação das fronteiras” ou “pelo transbordamento da fronteiras” do estado nacional. A autora percorre várias discursividades instauradas (por exemplo, o acordo ortográfico e a criação do Celpe-Bras) e mostra a projeção, a partir desses espaços enunciativos transnacionais, de imagens do português como “língua de comunicação internacional”.

Como perspectiva de análise desse fenômeno, Zoppi-Fontana destaca quatro aspectos: os “acontecimentos linguísticos”, os “instrumentos linguísticos”, a “institucionalização do saber metalinguístico” e a “monumentalização da língua”. Tais tópicos representam o passo a passo pelo qual é construído o argumento de que esses processos são marcados pela contradição. Ou seja, ao mesmo tempo em que a língua se constitui, pelos processos de interpelação pelo Estado através da escolarização, como a “língua nacional”, há também a significação da “língua de mercado”. Aí se dá o processo de “capitalização línguística”, que significa dotar a língua de um valor de troca. A língua assume assim tanto o valor de “consumo atual (mercadoria)”, quanto “um investimento em mercado de futuros”. Isso significa que o valor simbólico será cotado pelo valor econômico. Zoppi-Fontana finaliza sua reflexão questionando se estaríamos vivendo uma virada nos processos de significação da língua (brasileira) pelo deslocamento do sentido de “desvio” (com forte conotação estigmatizante) para o sentido de “prestígio”.

Nacional versus materno: o apagamento de uma pela afirmação de outra

Em Imigrante: sujeito moderno. Dispositivos de objetivação do sujeito e da língua na modernidade, Maria Onice Payer destaca a importância da distinção entre língua nacional / língua materna – pelas diferentes memórias relativas a cada uma delas – para a compreensão do processo de “(des)identificação” resultado do processo de escolarização. No Estado Nacional, a afirmação da língua nacional se dá pelo apagamento da língua materna, o que resultaria no efeito de uma ilusória coincidência entre ambas. É fazendo funcionar, no entanto, a tensão entre ambas que é possível compreender os processos de subjetivação do imigrante quando este é (in)corpo(rado) à massa de cidadãos.

Ao descrever o processo pelo qual se dá a escolarização do imigrante, no contexto de um recente processo de formação do estado nacional brasileiro, a autora sustenta que é na relação entre sujeito/língua[4], que é possível compreender a contradição que aí opera pelos distintos funcionamentos do nacional versus o materno. No espaço da oralidade, como descreve Payer é possível a irrupção do sujeito / sentidos atravessados por essa divisão: “cinza”, “cinzento”, “cinzolento”. No processo de nacionalização do imigrante, operariam os discursos político, educacional e jurídico na objetivação da língua, fazendo apagar a tensão entre línguas. No entanto, enquanto “duplamente cidadão”, funcionaria para o imigrante uma memória “presença (permanência)” e uma memória “ausência (esquecimento)”. Ainda que a análise remonte ao início do século XX, Payer conclui conduzindo sua argumentação para o questionamento de como a língua e o sujeito são afetados pelas novas condições impostas pelo “capitalismo mundial integrado”, pelas quais a relação língua nacional / língua materna é desestabilizada.

O “mercado de línguas” no livro didático

Em Políticas de línguas em livros didáticos brasileiros de ensino de português com língua estrangeira, Leandro Rodrigues Alves Diniz analisa a possibilidade de novos sentidos no deslizamento de sentidos do português. Compartilhando o pressuposto do “espaço de enunciação transnacional”, o autor destaca títulos, capa e prefácios de livros didáticos para compreender como se dá o processo parafrástico-polissêmico pelo qual a imagem de um discurso fundador do Brasil contrasta com o português como língua veicular (“urbana, estatal ou mesmo mundial”). Através de elementos verbais e não verbais dos livros didáticos, o artigo aponta como se dá a tensão entre a estabilização de uma memória nacional (projeta uma imagem para o passado) em contraste com aquilo que se projeta para o futuro na relação com a língua veicular.

Diniz, citando Payer (2005), afirma que o funcionamento dos livros didáticos retoma o texto da mídia, visto como o texto da sociedade contemporânea: o do marketing e o da publicidade. Isso seria marcado no discurso que “vende” a língua sinalizando duas possibilidades de sucesso: o acesso ao Brasil e acesso ao mundo globalizado. Estaria funcionando no livro didático uma discursividade de promoção da brasilidade e do Brasil, tendo como alvo o turista ou o homem de negócios. Ainda que seja formulada a hipótese da língua veicular, o autor descarta a ideia de a língua portuguesa do Brasil funcionar como uma língua globalizada (como aconteceria com o inglês). Funcionaria antes como uma língua transnacional na relação com o transbordamento / “denegação” da fronteira do nacional, não se construindo, portanto, a partir do global ainda que esta imagem seja projetada.

O “índio primitivo” nos livros didáticos

Em Os índios e os livros didáticos de português como língua estrangeira, Cássia Cristina Furlan e Carmen Zink Bolonhini analisam quatro livros produzidos no Brasil e utilizados nos cursos para falantes de outras línguas. As autoras buscam compreender como se dá a construção imaginária dos grupos que compõem a população brasileira. Mencionados em todos os livros, os índios seriam significados a partir da construção de um imaginário pelo qual eles estariam associados ao primitivo, ao distante, ao exótico, ao passado, ao primeiro habitante, etc. Além disso, eles seriam ainda desqualificados pela relação que teriam com o trabalho e com a diversão. As autoras destacam que o dizer deixa silenciado o não dito e, dessa forma, questionam a forma como o índio é representado nos livros didáticos como um “sujeito não contemporâneo”, a partir do lendário e da idealização do contato com o branco.

Ao deixar no esquecimento os lugares, atualmente ocupados pelo índio brasileiro, a ele seria negado o acesso aos direitos. Retomando Orlandi (1990), as autoras descrevem que há o apagamento do “político” / do “histórico” quando se destaca o cultural como única forma de dizer o índio. Ao tomarem o português como a referência, os livros didáticos deixam o índio fora da cultura / da sociedade, ainda que eles já estivessem ocupando o Brasil, antes mesmo de os europeus chegarem à América. Esse não lugar resultaria no silenciamento de uma cidadania. Ao ser dito pelas palavras do outro, o índio e o processo de significá-lo nos livros didáticos seria atravessado pelo discurso das descobertas. A relação desigual que se estabelece aí deixa o índio sem um lugar na história brasileira.

Instrumentos linguísticos no fortalecimento da integração regional

Em Celpe-Bras e Celu: impactos da construção de parâmetros comuns de avaliação de proficiência em português e em espanhol, Margarete Schlatter, Matilde V. R. Scaramucci, Silvia Prati e Leonor Acuña avaliam como o estabelecimento dos processos avaliativos contribuem para a construção das bases de integração da região do Mercosul. Desde a sua criação, em 1991, esse acordo estabeleceu a meta de criação de ações no âmbito educacional para promover a integração entre os países. Nessa perspectiva, foram criados os exames de proficiência de português (Celpe-Bras) e o de espanhol (Celu). Para as autoras, ainda que o prognóstico não seja favorável, é preciso considerar os impactos da política linguística no sistema educacional.

Ao apresentarem o histórico / levantamento do processo de implementação dos exames de proficiência do espanhol e do português, as autoras apontam elementos que permitem identificar o fortalecimento desses instrumentos não só como processos de avaliação, mas também por suas consequências no processo de ensino e de reconhecimento das variantes regionais. Ao avaliarem a capacidade dos candidatos de transitarem em diferentes contextos de oralidade e de escrita, os exames provocam mudanças. As ações paralelas para a implementação da avaliação marcada por uma crescente colaboração teria ainda como consequências uma consciência bilíngue, com a afirmação das variedades brasileira e rio-platense.

Conclusão

A obra organizada por Zoppi-Fontana conduz o leitor a uma reflexão acerca das conseqüências do novo processo de gramatização do português do / no Brasil. Ao desestabilizar sentidos já constituídos sobre a língua nacional / língua materna, permite pensar de que forma o capitalismo mundial integrado afeta a relação sujeito / língua quando se constitui a posição de autoria brasileira frente à própria língua.

Referência Bibliográfica:

DINIZ, L. R. A. Mercado de línguas: a instrumentalização brasileira do português como língua estrangeira. Campinas: RG / FAPESP, 2010. 160 p.

ORLANDI, Eni. Terra à vista. Discurso do confronto: velho e o novo mundo. São Paulo: Cortez, Campinas, SP: Ed Unicamp, 1990.

PAYER, M. O. Sujeito e sociedade contemporânea. Sujeito, mídia, mercado. Rua, Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp, no. 11, março de 2005, p. 9-25.

ZOPPI-FONTANA, Mónica Graciela (org.) O português do Brasil como língua transnacional. Campinas, SP: Editora RG, 2009.


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[1] Doutoranda em Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571 - Campinas - São Paulo – Brasil. E-mail: angela.jornalista@gmail.com

[2] Eni Orlandi é uma das fundadoras do campo da História das Ideias Linguísticas que, no Brasil, se constituiu em diálogo, tendo em vista o pressuposto comum da relação constitutiva entre língua e história, com a Análise de Discurso (de origem francesa com desdobramentos no Brasil) e a Semântica do Acontecimento. A HIL toma os instrumentos linguísticos como objeto de análise e base para a compreensão de como os processos de constituição dos sujeitos (nacionais) pela identificação ao Estado (nacional) através da língua (nacional). Ver a língua como indissociável da história implica no reconhecimento da relação entre o simbólico e o político, visto como as dissensões que dividem as formações sociais. Ou seja, essas divisões se marcam na língua pelo funcionamento da contradição.

[3] No texto de apresentação da obra, Zoppi-Fontana descreve que, em 2004, foi aprovado o projeto Capes / Brasil e SPU / Argentina que permitiu o intercâmbio entre pesquisadores dos dois países. O tema da língua transnacional, como resultado da investigação sobre a integração regional e as políticas públicas de línguas adotadas pelos países membros do Mercosul, tem sido / foi, como descreve Mónica, fundamental para a identificação da posição de autoria brasileira frente à língua, o que estaria na base da formulação do conceito de língua transnacional.

[4] Em seu artigo, relembrando trabalhos anteriores, Payer destaca que a relação intrínseca sujeito / língua deve ser vista a partir do pressuposto teórico da Análise de Discurso pelo qual sujeitos e sentidos se constituem mutuamente como resultado do processo de identificação do sujeito à formação discursiva, vista como o nicho de significação.

 


Número 17 - Novembro 2011
ISSN 1413-2109/e-ISSN 2179-9911

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