O bem e o direito: o status de cidadão do sujeito-surdo no Brasil e o estatuto da Libras


resumo resumo

Angela Corrêa Ferreira Baalbaki
Luiz Felipe Andrade Silva



Introdução1

O reconhecimento da Libras (Língua Brasileira de Sinais) como “meio legal de comunicação e expressão” (BRASIL, 2002) constituiu, certamente, um importante passo em direção à conquista de direitos civis dos surdos, no Brasil. Uma vez que a relação entre língua e Estado-nação é bastante estreita, a legitimação de Libras – mesmo que não sendo considerada como língua oficial – confere, igualmente, algum estatuto de cidadania à comunidade surda2.

Interessa-nos, porém, observar dentro daquilo que Guimarães (2005) chama de espaço de enunciação brasileiro, o modo como a Libras é significada, a partir dos direitos civis da comunidade surda em relação ao uso da língua que lhe seria própria e que é tomada, dentro dos movimentos sociais surdos, como aquilo que confere à comunidade surda sua identidade. O conceito espaço de enunciação diz respeito ao “espaço regulado e de disputas pelas palavras e pelas línguas, enquanto espaço político” (GUIMARÃES, 2005, p.18), lançando luz sobre o modo o estatuto da Libras e seus sujeitos falantes é disputado e atravessado pela política, implicando, em nossa análise, em uma atenção para a manutenção da colonialidade dentro do Estado “democrático” brasileiro. Compreendemos, portanto, a questão dentro do campo de estudo das “políticas de línguas” (ORLANDI, 2007), que se diferencia daquele das “políticas linguísticas” por não tomar as teorias e as línguas em si como pressupostos. Considera-se, aqui, que a língua tem um sentido político necessário e constitutivo, como “corpo simbólico-político que faz parte das relações entre sujeitos na sua vida social e histórica” (ORLANDI, 2007, p.7-8).

Ao estudioso das “políticas de línguas” cabe perguntar quais seriam os discursos admitidos como verdadeiros e que práticas seriam desenvolvidas sobre a língua (ORLANDI, 2007, p.8). A fim de compreender o estatuto do sujeito surdo, em particular, e da forma-sujeito histórica dominante no Brasil contemporâneo, considerada em sua relação com a língua de sinais, observaremos, aqui, certas textualidades que fazem circular dizeres sobre algumas ações governamentais relacionadas a esse sujeito surdo e reações contrárias a tais ações.

Para tanto, é importante que levemos em consideração os avanços progressivos do neoliberalismo e do neoconservadorismo que vêm promovendo, nos últimos anos, um desmantelamento do “estado democrático de direito” (LEVITSKY, ZIBLATT, 2018; MOUNK, 2019; RUNCINAM, 2018), isto é, daquela organização política do Estado-nação que implica a cidadania como estatuto universal conferido a todos os indivíduos compreendidos em seu território.

No âmbito da sociologia, para que um indivíduo seja considerado “cidadão pleno”, é necessário que lhe sejam garantidos direitos civis, políticos e sociais (MARSHALL, 1967): os últimos dizem respeito ao acesso dos cidadãos a direitos básicos e comuns – educação, trabalho, saúde, segurança, salário justo e aposentadoria; os segundos, à participação do cidadão no governo da sociedade – basicamente, o direito ao voto; quanto aos direitos civis, trata-se daqueles que garantem a liberdade individual, por meio da existência de uma justiça independente, eficiente e acessível a todos. Observamos como, em todas as três instâncias apontadas por Marshall, a língua ocupa um papel extremamente importante, seja no que tange à liberdade de expressão dos falantes (direito civil), seja no que tange ao seu acesso a direitos sociais e políticos.

De acordo com Marshall (1967, p.66), é possível traçar uma história da cidadania, a partir desses três tipos de direitos, numa escala crescente. Uma vez que a base da sociedade civil, surgida com o capitalismo, repousa nos direitos civis, esses teriam sido os primeiros a se formarem, no século XVIII, seguidos dos políticos, no século XIX, e dos sociais, no século XX. Essa esquemática historicização da cidadania, proposta pelo sociólogo britânico, porém, não se aplica ao caso brasileiro.

A questão do modo como se constroem os sentidos de cidadania e as práticas políticas civis no Estado de Direito no Brasil é complexa e recente. De acordo com Carvalho (2008), apenas após 1985 começou um esforço para a sua construção em bloco; esforço esse que se poderia dizer paralisado, em virtude dos recentes acontecimentos no âmbito político e jurídico brasileiro, pela implantação de um regime de exceção (VALIM, 2017), pela perda de direitos civis consolidados (aposentadoria, direitos trabalhistas, censura) e pela manutenção da necropolítica (MBEMBE, 2018), que fere a generalidade e abstração da forma da lei.

Para compreender o que seria a tal cidadania brasileira, há que se levar em consideração a profunda desigualdade social – de direitos sociais – entre os indivíduos brasileiros, advinda de séculos de colonização e escravatura, e as sucessivas ondas autoritárias pelas quais passou o país, desde a Proclamação da República – ela mesma, um golpe de estado (o primeiro de vários, em nossa história recente) sem efetiva participação popular. A compreensão sobre os sentidos de cidadania e, especificamente, brasileira só é possível se revista os fios da tessitura histórica que a constitui.

De acordo com a Análise de Discurso materialista (AD), a história é determinante dos processos de constituição dos sentidos e dos sujeitos, por sua inscrição na materialidade simbólica (ORLANDI, 2012). Por isso, vimos trabalhando, em nossas pesquisas (SILVA, 2019), com a hipótese de que a forma-sujeito brasileira pós-colonial não pode e não deve ser caracterizada a partir dos mesmos pressupostos que organizam a teoria francesa. Ainda que se possa recorrer ao processo econômico de mundialização do capitalismo, como algo que garante certa homogeneidade aos modos de produção no ocidente, é importante que levemos em consideração os particularismos a que nos chama atenção Milton Santos (2012, p. 23) ao observar os efeitos da “universalização” do capital nos países ditos subdesenvolvidos. Com efeito, apontamos que, uma vez que as condições de produção são determinantes para a constituição do sujeito e do sentido, a forma-sujeito histórica capitalista, nos países centrais do capitalismo, e a forma-sujeito histórica nos países ditos periféricos (pobres, subdesenvolvidos) são distintas, sobretudo, naqueles com extensa relação histórica com o escravagismo.

Nossa hipótese básica parte da compreensão de que o processo de ruptura com a sociedade feudal da qual derivaram os estados-nacionais europeus, pela laicização e pelo incremento da máquina jurídica (HAROCHE, 1992), não se estruturou da mesma forma nos países colonizados, principalmente se considerarmos o importante papel que a ideologia religiosa exerceu para a manutenção dos “direitos” das metrópoles sobre os territórios explorados e sobre as vidas subjugadas. Isso não implica dizer que a forma-sujeito de países como o nosso seja, plenamente, a do sujeito-religioso, mas certamente não podemos dizer que sua forma seja aquela do sujeito-de-direito, tanto mais se concordamos com Haroche quando a autora, como nós, rejeita “a ideia de um sujeito mestre de suas palavras, sem no entanto [se limitar] à clássica contrapartida de aí não ver senão um ‘efeito do discurso’” (HAROCHE, 1992, p.27).

De acordo com Haroche (1992), a forma-sujeito medieval se baseia na religião como ideologia dominante, enquanto a forma-sujeito moderna se baseia nas relações jurídicas. A primeira se construiria pela ideia de subordinação a Deus, enquanto a segunda forma se constitui pela adequação à lei: “o indivíduo é determinado, mas, para agir, ele deve ter a ilusão de ser livre mesmo quando se submete” (HAROCHE, 1992, p.178). Ao tratar da obra da autora, Orlandi dirá que “a crença na Letra (submissão a Deus) dá lugar à crença nas Letras (submissão ao Estado e às Leis)” (ORLANDI, 2009, p.51). Payer3 (2005) por sua vez, destaca que “[n]ão mais as leis divinas, mas as leis jurídicas é que se tornaram base da obediência que torna possível a organização social na forma do Estado” (PAYER, 2005, p. 14). As autoras, portanto, recuperam a afirmação de Althusser ([1970] 1996, p.121) de que teria havido uma substituição da Igreja como Aparelho Ideológico de Estado (AIE) dominante, com o capitalismo.

Nos países colonizados, porém, deve-se levar em consideração que as condições materiais de produção não se organizam da mesma maneira – esses territórios organizar-se-iam como uma espécie de ramo parasitado da metrópole, sem os mesmos direitos, sem o mesmo estatuto para seus habitantes e baseada em um regime escravocrata, essa substituição da Igreja não se realiza da mesma forma.

A função que a Igreja exerceu no Brasil (assim como nos demais países colonizados), ao longo de sua história, é seguramente dominante em relação ao papel exercido pelo judiciário. Foi ela que, durante séculos, regulou nascimentos, mortes e casamentos, que assegurou o direito à escravidão, que se responsabilizou pela educação de uns poucos, que sedimentou a sujeição a determinados princípios éticos… Na transição para o modo de produção capitalista e a sociedade de classes, observado nos países do Norte global, houve um processo de laicização do Estado, empreendida pela Revolução Burguesa, que não encontra paralelos no Brasil (cf. FERNANDES, 2020) – de modo que a passagem da submissão a Deus para a submissão às Leis estaria incompleta. Isso tanto mais se observa quando consideramos a importância que essas instituições (as igrejas) têm exercido no espaço público e político brasileiros.

As igrejas tiveram um importante papel na disseminação da Libras, nas duas últimas décadas do século XX. Baseadas na premissa de que Jesus Cristo só retornará para o Juízo Final após o evangelho ser pregado a todas as pessoas sobre a face da Terra (SILVA, 2015, p.192-3), essas religiões começaram a fazer largo uso da Libras em seus cultos, televisionados ou não, e a oferecer cursos de formação em Libras com fins proselitistas. Destaca-se, nesse âmbito, o incremento do papel do intérprete no cerne dessa missão de fazer com que sermões, cânticos e trechos da Bíblia possam alcançar a população surda.

Além disso, como afirma Assis Silva, “a história da surdez é a história da educação de surdos” (ASSIS SILVA, 2011, p.195), na qual a Igreja Católica também exerceu um importante papel. É o modelo da escola de surdos católica que, por exemplo, irá organizar a fundação, em 1857, do Instituto Nacional de Educação de Surdos4 (INES)5. Mesmo que hoje ele seja uma escola laica, houve em sua história uma importante atuação de agentes católicos. Isso colocava a educação de surdos no plano da “caridade”, do assistencialismo, junto a diversos outros grupos sociais: “leprosos, paralíticos, cegos, alienados” etc. (ASSIS SILVA, 2011, p.195). Nesse modelo de educação assistencialista, baseado na “piedade” e na “caridade” cristãs, haveria a identificação da surdez com uma deficiência e do surdo como um sujeito-em-falta, que não possui o mesmo estatuto que os sujeitos não-surdos e devedor da sua bondade. Trata-se aqui de um meio que permite a “salvação pelos atos”, um dos pilares da ideologia religiosa cristã católica. Por isso, pode-se compreender que, durante alguns séculos, a Igreja Católica, ao mesmo tempo em que buscava “salvar” sua própria alma pela ação caridosa, visava “salvar” o surdo da deficiência pela proibição do uso das línguas de sinais e pela oralização.

Um dado imaginário de uma identidade surda toma como pré-construído a noção de Libras (tal qual outras línguas de sinais) como um sistema linguístico completo e não apenas um meio de comunicação e de tradução que permitiria que uma língua oral fosse compreendida pelo surdo; tal imaginário de identidade surda como falante de Libras oferecerá uma alternativa ao discurso da deficiência. Para tanto, é de grande importância o papel do movimento surdo, em que se destacam, no Brasil, a atuação da FENEIS (Fundação Nacional de Educação e Integração dos Surdos). Ela nasce a partir da ação de congregações cristãs, principalmente católicas (ASSIS SILVA, 2011), e a partir da constituição do surdo como um grupo político minoritário, reivindicador de pautas que se voltam justamente à promoção da sua plena cidadania, cujo marco principal pode ser encontrado no documento “A educação que nós surdos queremos” (FENEIS, 2005), elaborado no V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para surdos, em abril de 1999.

Dito isso, se deve observar que a promulgação da Lei de Libras e as demais leis que asseguram os direitos dos surdos não é um ato de “doação de direitos” da sociedade ouvinte à comunidade surda, mas é resultado de uma luta por direitos – é uma “conquista”, ainda que não tenha satisfeito a todas as exigências do movimento, como: “substituir o termo ‘deficiente auditivo’ por surdo considerando que o deficiente auditivo e o surdo não têm a mesma identidade” ou mesmo “oficializar a língua de sinais nos municípios, estados e a nível federal” (FENEIS, 2005, p.27). Trata-se, mesmo assim, de um importante passo na constituição de um imaginário de “cidadania plena” para o sujeito-surdo; passo esse que vai em sentido contrário ao da construção da imagem do surdo unicamente pelo viés da ideologia religiosa: surdo como deficiente e objeto de assistência ou surdo como alvo da ação evangelizadora.

Ainda há, porém, um longo caminho para que as conquistas do movimento surdo possam ser efetivas de forma ampla pelo poder público, nas diversas instâncias em que se fazem necessária: em hospitais, tribunais e instituições de ensino. Esse era um percurso que estava, lenta, mas gradativamente, sendo feito, com a criação dos cursos de Letras-Libras nas licenciaturas de universidades públicas, sobretudo, e com a criação de vagas efetivas para intérpretes em diversos órgãos. A inscrição do surdo num regime jurídico e educativo dito leno garantiria, com isso, seu estatuto de sujeito-de-direito nas práticas sociais. Como afirmamos, trata-se de uma possível constituição da forma-sujeito no Brasil que se estabelece pela contradição (e conflito) entre a forma religiosa e a forma jurídica – e o programa “Pátria voluntária”, assim como o corte de vagas para intérpretes pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, reforçam essa hipótese de trabalho.

 

Programa Pátria Voluntária e outros desdobramentos governamentais

O Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado e o Conselho do Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, o Prêmio Nacional de Incentivo ao Voluntariado e o Selo de Acreditação do Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado foram instituídos com o decreto nº 9.906, de 9 de julho de 2019. Uma série de medidas foram tomadas para a divulgação de tal programa. Abaixo, inserimos um cartaz de divulgação de parte do programa, daquilo que concerne somente à interpretação de Libras-Língua Portuguesa.

 

Figura 1 – Peça de campanha do Pátria Voluntária

Fonte: https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/patria-voluntaria/confira-todas-as-pecas-criadas-para-aumentar-a-participacao-dos-brasileiros-em-acoes-do-patria-voluntaria

 

No cartaz da campanha, em um provável auditório, em destaque no centro, uma mulher6 faz o sinal de “Pátria Voluntária”7 – cuja descrição linguística pode ser a seguinte: mão esquerda aberta, dedos unidos e palma para cima e mão direita em configuração 36  (FELIPE; MONTEIRO, 2008, p. 28) que, por meio de empréstimo linguístico da Língua Americana de Sinais, pode significar, nas situações enunciativas sinalizadas, “eu te amo”. Destacamos que aquela que sinaliza está de costas para o auditório, direcionando a produção do sinal “eu te amo” com a mão direita e o apoio com a mão esquerda, produzindo o efeito de sentido de “receber amor” para um público outro – um gesto argumentativo que se daria de um ouvinte (o intérprete) para um surdo? Interessante observar a repetição do mesmo sinal (que se liga ao próprio logo do Programa) de dá com todos os presentes na cena (foto-propaganda); uma repetição do mesmo. Considerando-se seus elementos visuais (o auditório, a figura da mulher branca com seu sorriso) e os enunciados –, observamos que há um silenciamento do surdo como sujeito que formula dizeres – inserindo em uma posição de receptor de “mensagens” traduzidas. Assim, outros efeitos de sentido são produzidos. Só importaria aquilo que o ouvinte fala ao surdo, não o contrário, mesmo quando o enunciado aborda algo que lhe importa? Ou ele é tomado como “público passivo” da propaganda? Ou não é nem mesmo isso, fala-se dele, mas não com ele? De toda forma, parece que para o sujeito surdo não há possibilidade de reversibilidade, ele está fora da “cena de enunciação”, que acaba por produzir um efeito de infantizalização desse sujeito.

Esse movimento pode ser comparado, por um lado, ao movimento de evangelização: o surdo é aquele que recebe as exortações e ensinamentos das religiões cristãs, sendo receptor passivo da palavra do pastor, do padre ou do missionário interpretada em Libras por um ouvinte8. Por outro lado, também se compara ao espaço da caridade, que objetifica o surdo como “pessoa-em-falta”, aquele a quem serão doados cuidados e transmitidas informações. Mais uma vez, o surdo é construído como se fosse receptor passivo. Aquilo que seriam suas necessidades é construído pelo religioso que faz a caridade previamente, não como uma resposta aos apelos de seu público. Antes, suas mãos chegavam a ser amarradas para que ele fosse impossibilitado de sinalizar – só tendo a possibilidade de sair de seu estado de receptor passivo após “deter” – por doação caridosa, claro – uma língua oral.

Essa memória religiosa do surdo – nos espaços de caridade católicos ou nos de proselitismo religioso das igrejas evangélicas – segue produzindo sentidos, assumindo valores parafrásticos mesmo no espaço pretensamente laico de uma propaganda e um programa governamentais. Com efeito, o espaço da caridade vai se constituindo (e se consolidando) pela divulgação de conhecimento linguístico. Para Assis Silva (2011), a atividade missionária possibilita que “o engendramento da surdez afirmada e performatizada como particularidade étnico-linguística” (ASSIS SILVA, 2011, p. 126) propicia um processo concomitante da passagem da comunicação total ao bilinguismo (Libras-Língua Portuguesa) – com presença marcada dos intérpretes.

Ao observar esses aspectos, tomamos esse discurso de campanha como um discurso de propaganda governamental e o cartaz como uma das formas de textualidade e de circulação de sentidos sobre surdos, língua de sinais e pátria – um imaginário relacionado ao missionarismo, à caridade que parecem, no lugar dos direitos civis, ser impulsionados pela “pátria amor”. O surdo é retirado do seu lugar de pretenso cidadão-pleno: ter cumprida a Lei que lhe garante o uso de Libras em instituições básicas – como a escola, a universidade, o hospital, o fórum, etc. (instituições da sociedade burguesa que garantem os direitos sociais comuns, sobre os quais falamos anteriormente) – é obrigação do Estado e direito do surdo. Aqui, porém, isso é tratado como um ato de “amor” (caridade), algo valorizado positivamente dentro da moral (cristã/burguesa) de formação social. Assim, o slogan “Fazer o bem é pra você também” produz efeitos de sentidos de que: ao fazer cumprir-se um direito dos surdos, o Estado estaria fazendo o bem, atividade moralmente valorizada, e não fazendo sua obrigação; de que o cumprimento dos direitos dos surdos deve ser compartilhado ou mesmo passado do Estado para a sociedade civil; de que fazer o bem também promove o bem para quem o faz, ou seja, salva-o. Dito de outra forma, observamos, no cartaz de divulgação do Programa, a ênfase nos sentidos de caridade em detrimento do direito à cidadania.

Pêcheux (2011 [1979]) busca compreender as origens da propaganda dentro da esfera política, trabalhando com a hipótese de que a propaganda, centrada na pretensa dicotomia cognitivo/afetivo, encontra suas raízes “nas formas históricas de assujeitamento do indivíduo, que se desenvolveram com o próprio capitalismo” (p. 80). Aqui nos cabe uma ressalva: não é do mesmo sujeito que falamos, uma vez que as condições de produção são diferentes num país colonizado e nas antigas metrópoles, numa colônia de exploração e nos Estados Unidos. Pêcheux divide duas tendências do capitalismo – a via americana, pretensamente democrática, de uma democracia baseada no esforço pessoal, e a via prussiana, construída na sociedade feudal e contra ela. No entanto, observa a base do autoritarismo prussiano atrás da fachada do liberalismo americano. Entre nós, veríamos ainda hoje a base de uma “liturgia estético-religiosa dos signos e gestos” (PÊCHEUX, 2011 [1979], p. 78), dessa religiosidade colonizadora por trás da fachada do capitalismo dependente de nosso “estado de direito”.

Em que bases seriam sustentados os dizeres que afirmam que, ao se fazer o bem, garantir-se-ia igualmente o bem? A realização do bem seria paga pelo retorno do bem produzido? A moeda de pagamento do trabalho voluntário seria o amor por um causa?

Como destaca Assis Silva (2011), “[d]iferentemente de outros povos não alcançados, o ‘povo surdo’ ocupa um segmento na própria congregação local. Como a língua de sinais não possui escrita, a formação de intérpretes vem suprir a função da tradução do cristianismo para surdos” (ASSIS SILVA, 2011, p.105). O autor sugere a pregação do cristianismo como fator desencadeador da atividade do intérprete – o que poderia ser compreendido como um discurso fundador no campo da tradução de línguas de sinais, sustentado pelo discurso da caridade cristã – um discurso transverso (PÊCHEUX, 1988 [1975]) que sustenta sentidos já-lá produzidos. Assim, para garantir os direitos dos cidadãos (neste caso, dos sujeitos surdos), fazer o bem seria a opção. O Estado, ao se responsabilizar pela divulgação da caridade, desresponsabiliza-se de seus deveres.

Notadamente, o Decreto nº 10.185/2019, de 20 de dezembro de 2019, extinguiu cargos, entre eles, alguns técnico-administrativos em educação. Em sua ementa, que sintetiza o assunto tratado no ato normativo, registra: “Extingue cargos efetivos vagos e que vierem a vagar dos quadros de pessoal da administração pública federal e veda a abertura de concurso público e o provimento de vagas adicionais para os cargos que especifica”. No anexo III, há uma lista de cargos para os quais foram vedados a abertura de concurso público e o provimento de vagas adicionais em relação ao previsto no edital. Sob o código do cargo 701266, tem-se o nome do cargo “Tradutor intérprete de linguagem (sic) sinais”.

Interessante observarmos que os decretos, gestos administrativos – compreendidos como “sentidos de governança” (ORLANDI, 2012, p. 133) –, foram promulgados em um mesmo ano: de um lado, um programa de voluntariado que parece ter como principal bandeira a interpretação de línguas de sinais; por outro, a vedação de abertura de concurso público para intérpretes de Libras. Trata-se de decretos – portanto, práticas discursivas da regularidade administrativa pública – que colocam em xeque a presença do intérprete de Libras como funcionário público. Podemos dizer que se trata de decretos que funcionam em sistema de complementaridade, regendo a presença do intérprete na cena bi/multilíngue brasileira como voluntário e não mais como funcionário público. O intérprete, portanto, aparece como o caridoso, salvador em busca de salvação (por seus atos), ganhando como salário “o bem”: nada “menos” capitalista, nada mais colonial e capitalista (SILVA, 2019). E à propaganda que diz “Fazer o bem é para você também” ficaria difícil ao “bom sujeito” (PÊCHEUX, 1988 [1975]) – que se identifica aos dizeres do caritarismo – responder: não para mim ou mas eu não quero fazer o bem – “arte de anestesiar as resistências, de absorver as revoltas no consenso e fazer abortar as revoluções” (PÊCHEUX, 2011 [1979], p.92), isso é a propaganda, afinal.

Ainda assim, como um gesto de resposta à publicação do decreto nº 10.185/2019, uma nota de repúdio é lançada em conjunto pela FEBRAPILS (Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais), FENEIS e ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes). A seguir, apresentamos algumas sequências discursivas.

 

SD1: A ausência de regulamentação acerca da formação destes profissionais pode gerar prejuízos não só aos usuários dos serviços, mas também aos próprios profissionais que atuam diariamente em diversos contextos altamente complexos [...] (FEBRAPILS, 2010, p. 1 – negrito dos autores)

 

A SD1 recortada da nota de repúdio dos tradutores-intérpretes dá destaque à formação do intérprete em contraposição à do voluntário que não necessariamente teria formação adequada. Uma formação “adequada” do intérprete seria significada como formação em nível superior; e essa traria a garantia da qualidade da tradução? Por outro lado, enfatiza-se que o voluntário, por provavelmente não contar com tal grau de competência, traria um risco (danos graves em diferentes espaços de enunciação) aos envolvidos. E a inexistência/ausência de uma regulação a respeito da formação (isto é, qualquer um poderia ser, portanto, intérprete-tradutor de Libras) geraria prejuízos à compreensão do surdo.

Desta feita, o sujeito tradutor-intérprete parece apagar sua dimensão de profissional/trabalhador – sujeito formado para traduzir-interpretar –, e evidenciar a diferença que se daria menos no âmbito da precarização do trabalho e da exploração da mão-de-obra e mais no da qualidade do serviço prestado “aos usuários”. Os “prejuízos”, em SD1, são associados aos surdos e aos profissionais, deixando de promover um sentido financeiro, salarial, profissional. Ademais, podemos observar uma política de silêncio, tal como definida por Orlandi (2007): silenciar não é necessariamente calar, mas dizer outra coisa; não falam de condições de trabalho e salário para falar de formação. É como se sujeito-tradutor-intérprete não vivesse (condição material) de seu salário ou como se sua atividade não tivesse estatuto pleno de profissão. A dimensão política do sujeito-trabalhador-tradutor-intérprete some; transferem-se os sentidos de trabalhador para o de formação adequada9.

Na nossa formação social, o trabalho foi significado tão somente como ação realizada pela classe trabalhadora herdeira do sistema escravocrata10, talvez por isso, questões trabalhistas (direitos do trabalhador, salários etc.) sejam postas como menores, secundárias. Há uma historicidade que inscreve dizeres da formação superior11 que sobrepõem a condição do trabalhador. São sentidos latentes na memória discursiva que fazem uma estranha/incomum aliança entre diferentes matrizes de sentidos. Tudo parece indicar o retorno de algo sócio-historicamente recalcado: o trabalho considerado subalternizado em nossa formação social irrompe e atravessa o fio do discurso... Em reflexão sobre o trabalho no Brasil e a teoria de Althusser, Martins (2018) nos diz que

 

Althusser elenca algumas das instituições que, em sua análise, constituem-se em Aparelhos Ideológicos de Estado (1980 [1970], p. 43-44), como a igreja, a família, a imprensa e a escola – lista que, segundo o autor, não esgota as possibilidades de outros AIEs funcionando em dada formação social. Neste sentido, consideramos, diante das análises empreendidas, que o trabalho pode se configurar como um interessante Aparelho Ideológico de Estado na formação social capitalista que se apresenta no Brasil, especialmente em função de uma historicidade baseada na escravidão (MARTINS, 2018, p. 94).

 

Pelo fato de a figura do assalariado estar em continuidade com a do escravizado, na história de nossa formação social, ao trabalhador, que “vende sua força de trabalho”, associam-se diversos sentidos negativizados (compartilhados com os corpos racializados daqueles que foram traficados e escravizados) – o de subserviência, incapacidade, ignorância, animalidade, baixeza, pecado… Dessa maneira, para traçar uma separação entre voluntários e profissionais, a discursividade com que vimos trabalhando não remete aos “direitos trabalhistas” – querer ser pago em dinheiro é ser mesquinho, quando se pode ser pago em “amor, bem” –, mas à qualificação, àquilo que separaria o livre (branco, escolarizado, racional) do trabalhador braçal (negro, escravizado, ignorante, animalizado). Devemos ressaltar, contudo, tais relações discursivas não são da ordem do saber do sujeito: “palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. [...]. O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele.” (ORLANDI, 2009, p. 32).

A SD1 faz funcionar a antagonização entre o profissional tradutor-intérprete e o voluntário pela via da formação de qualidade; contudo, acaba por silenciar a dimensão do trabalho do próprio tradutor-intérprete. Dito de outra forma, exalta-se a questão da formação preterindo as questões trabalhistas concernentes. Vejamos outros recortes operados.

 

SD2: Salientamos que de acordo com o Decreto nº 9.906, de 9 de julho de 2019, que Institui o Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado “Pátria Voluntária”, em seu Art. 20, determina que o serviço voluntário tem como fundamento o princípio da complementaridade que “pressupõe que a atividade voluntária não substitui o papel do Estado e que órgãos e entidades da administração pública e entidades privadas responsáveis por atividades voluntárias não poderão engajar voluntários em substituição a empregos e cargos formais ou como meio de evitar obrigações para com seus empregados e servidores”. No entanto, temos observado várias tentativas de precarização do trabalho do tradutor, intérprete e guia-intérpretes de Libras, principalmente através da proposição de “oportunidades” de trabalho voluntário em instituições e eventos públicos. (FEBRAPILS, 2019, p. 3 – negrito dos autores e sublinhado nosso).

 

O neoliberalismo instaurou outra morfologia das classes sociais com a precarização das relações de trabalho – desmonte, via flexibilização, dos direitos trabalhistas, subocupação, desemprego em massa, impactando as condições materiais da existência da classe trabalhadora. Na SD2, a “precarização do trabalho do tradutor, intérprete e guia-intérpretes de Libras” estaria diretamente relacionada ao oferecimento de oportunidades de ações de interesse social e comunitário, sem remuneração de trabalho, em instituições públicas. Cabe frisar que os sentidos de precarização têm sido produzidos no interior de um modelo que gera impactos perversos aos trabalhadores. A supervalorização da “mão invisível do mercado” e a implementação de um “Estado mínimo” (desde que amparem e sustentem o sistema econômico) produzem tais consequências na organização das relações materiais de trabalho.

Com a crise do sistema capitalista (hodiernamente, caracterizado pelo crescimento da especulação financeira), imputa-se que o Estado seja mínimo; assim, deve cortar gastos, entre outros, com o funcionalismo público – dizeres atrelados a alguns sentidos de governança que, em uma posição revestida da caridade cristã, substitui funcionários públicos por voluntários (principalmente, aqueles sujeitos que, historicamente, “desde sempre” foram constituídos como tal). Receber salário do governo (ser servidor público) é lido como beneficiar-se do país, mamar nas tetas do governo; inversamente, fazer trabalho público para o Estado (sem ser remunerado) não seria o governo mamar nas tetas da sociedade civil, beneficiar-se do cidadão, seria “fazer o bem”. Afinal, ainda que menos negativizado do que a imagem do escravizado/trabalhador braçal, o “aproveitador/explorador/usurpador” é moralmente condenado e associado ao servidor público de classe média, não às elites. Como uma forma de denegação da estrutura colonial, invisibiliza a produção de riquezas históricas pela culpabilização do “homem livre” sem posses, formado. Observamos, portanto, esse retorno de uma memória discursiva, atrelada à colonização.

Se considerarmos que “no terreno da linguagem, a luta de classes é uma luta pelo sentido das palavras, expressões e frases” (ZOPPI-FONTANA, 2005, p. 55), podemos dizer que a luta dos tradutores intérpretes contra o voluntariado aqui colocada em cena se dá pelo posicionamento em face de um programa de voluntariado implementado pelo Estado, que apreende aquela classe de trabalhadores por considerá-los missionários, caridosos – não-trabalhadores que teriam como maior pagamento o amor. Não seria essa também uma luta contra o Estado neoliberal?

              De certa forma, pela comparação entre as SD1 e 2, observa-se um contraditório movimento de identificação (PÊCHEUX, 1988 [1975]) do sujeito-intérprete com o sujeito-trabalhador, como “identidade” fixada e construída historicamente no seio das relações de produção capitalistas. A ideologia neoliberal naturaliza sentidos e até mesmo “atualiza” sentidos recuperados do colonialismo-escravocrata (como vimos anteriormente)… Por um lado, há a identificação do sujeito-intérprete com o sujeito-trabalhador (da classe trabalhadora) como uma evidência no fio intradiscursivo na SD1; por outro, na SD2, isso se materializa a partir da oposição entre “trabalho do tradutor, intérprete e guia-intérprete de Libras” e “trabalho voluntário” – respectivamente, trabalho qualificado e trabalho não qualificado, como vimos em SD1. Poder-se-ia mesmo dizer que não é o dever do Estado em garantir esse serviço e remunerar seus trabalhadores que é problematizado; problematiza-se o trabalho considerado inferior (de menor qualidade) do voluntário, enquanto o trabalho daquele que é formado deveria ser pago. Nem bem se entra na esfera dos direitos trabalhistas (direitos do cidadão), já se deixa de falar em “profissão” para falar em “trabalho”; fala-se das oportunidades dos outros (menos qualificados) para não falar em direitos e deveres.

Em outro gesto argumentativo, como poderemos verificar na SD3, os sentidos, ainda que relacionados, são endereçados a outra região de dizer (que se assemelha e se aproxima).

SD3: Nestes eventos, foram orçados e remunerados outros serviços como recepção, iluminação, etc. mas não o serviço de interpretação de/para Libras. (FEBRAPILS, 2019, p. 4 –sublinhado nosso)

 

A verba pública teria sido usada para pagar outros serviços terceirizados; no entanto, aqueles destinados à interpretação não teriam entrado no rol das atividades remuneráveis, ficando no âmbito do voluntariado. Apesar do efeito de reclamação de mau uso de verba pública produzida pela SD3, interessa-nos observar a formulação do “enunciado dividido”12 (COURTINE, 2014 [1981]), marcado pela negação linguística, pelo funcionamento da negação “mas não o serviço de interpretação de/para Libras”. Tal enunciado negativo produz um choque: não se nega que a interpretação de/para Libras seria, assim como “recepção, iluminação etc.”, inserida nos serviços remuneráveis; diversamente, ao considerá-la um serviço a ser remunerado (e, portanto, que não deve ser uma ação de voluntariado), acaba por reafirmar a própria terceirização da função do intérprete. Ou melhor, ao tentar desconstruir um imaginário (sustentado por uma memória discursiva secular que indica que a interpretação poderia ser realizada por voluntários), joga-se esse trabalhador para a informalidade da terceirização, afastando-o do trabalho regulamentado e garantido por direitos e deveres legais. Recuperam-se enunciados inscritos na posição-sujeito intérprete, defensor de seus direitos trabalhistas, e ao mesmo tempo divergentes, relacionados à terceirização dos trabalhadores – fortemente implementada pelo neoliberalismo. No eixo da formulação, há dizeres da terceirização/do terceirizado, daquele que é prestador de serviços.            Os enunciados destacados na SD3 poderiam ser parafraseados da seguinte maneira: 1) a interpretação deve ter remuneração por ser um serviço; 2) a interpretação, como serviço, não pode ser trabalho voluntário, mas pode ser terceirizado.

              Vejamos outras SDs a seguir.

 

SD4: Para além disso, no dia 02 de Dezembro de 2019 começou a circular nas redes sociais peças publicitárias relacionadas ao programa “Pátria Voluntária” do Governo Federal. Umas das personagens da campanha seria uma Intérprete de Libras que supostamente estaria realizando uma atividade voluntária com o ensino de Libras. Diante do atual status da profissão, uma campanha como essa contribui para manter uma visão de que a interpretação deve ser realizada apenas por voluntários, ou que atividade de docência de Libras seria também uma atividade realizada por intérpretes, ou ainda, que qualquer pessoa, em caráter voluntário, estaria apta a interpretar, traduzir, ou ensinar a Libras, mesmo sem a qualificação adequada para o desempenho dessas atividades. (FEBRAPILS, 2019, p. 4 – negrito dos autores e sublinhado nosso)

 

No gesto de interpretação que vimos realizando até agora, pode-se dizer que, pelo fio intradiscursivo, “trabalho” (SD2) e “serviço” (SD3) vieram recobrir o fato de a profissionalização do intérprete-tradutor de Libras não ter atingido o mesmo patamar que outras profissões. Ao falar-se sobre seu “atual status”, neste contexto, pode-se compreender uma espécie de superposição dos sentidos de profissão e voluntariado/assistencialismo, superposição essa que deveria ser evitada. Mais uma vez, a diferença se estabelece no nível da qualificação, da formação, não confrontando o Estado pela violação dos direitos trabalhistas, mas apelando para a necessidade de garantir a “qualidade” da “atividade”.

Aponta-se a campanha como um “reforço” para outro momento em que se tinha um status da profissão diferente do atual. Nesse encaminhamento, Baalbaki e Rodrigues (2020) destacam que a polêmica sobre aqueles que “disponibilizam sua expertise na área sem retorno de pagamento” assim como “o perigo de um retorno ao assistencialismo em relação ao surdo” (p. 177) estariam presentes em nossa formação social. Desta forma, nos dizeres sobre e de intérpretes de Libras/Português tal polêmica é recorrente e constante na história recente da educação de surdos.

Pêcheux (1999 [1983]) destaca que “[p]ara tratar do memorizável é preciso entender o acontecimento inscrito no espaço da memória sob dupla forma-limite: (1) o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever; (2) o acontecimento que é absorvido na memória como se não tivesse acontecido” (p. 50). Considerando a última, podemos dizer que, a denúncia produzida na nota de repúdio antevê o retorno da memória do assistencialismo parece funcionar como uma absorção das garantias civis conquistadas pelos surdos e os direitos trabalhistas, pelos intérpretes. Passemos a outra sequência recortada.

 

SD5: Há muito tempo, a comunidade surda tem atuado politicamente para fazer com que seus direitos linguísticos sejam garantidos, juntamente aos profissionais tradutores, intérpretes e guia-intérpretes, que têm lutado para fazer com que a visão caritativa seja desconstruída relacionada a profissão, pois historicamente, o espaço para o voluntariado existe em instituições sociais e em prol da comunidade surda. (FEBRAPILS, 2019, p. 4 –sublinhado nosso)

 

Na SD5, aproximando-se das demais analisadas anteriormente, recupera-se uma memória discursiva de um saber-fazer atrelado, historicamente, a missões filantrópicas e caritativas – que estariam na “origem” do trabalho do intérprete de Libras – reflexão já tratada por Assis Silva (2011), sendo a Libras posta como um meio de proselitismo e de caridade. Haveria um movimento de resistência de identificação a essa “origem” que faria trabalhar a memória – como um acontecimento discursivo que poderia (ou não) inscrever ou escapar à sua inscrição. Perturbar a memória secular que associa intérpretes e caridade, buscando deslocar e desregular os “implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (PÊCHEUX, 1999 [1983], p. 52) na tentativa de inaugurar uma nova série de dizeres.

O Estado se responsabilizando pela caridade, aponta para sua própria falha como instituição mantenedora dos direitos do cidadão. Mais uma vez, reforça-se esse sentido: é porque são qualificados que devem ser “devidamente” remunerados, quando deveria bastar – num estado de direito – “profissionais”. Compara-se ainda o possível comprometimento diferente do profissional e do voluntário: a questão não passa jamais pelos direitos civis, nem dos surdos nem dos trabalhadores, mas é uma questão moral ou de mérito.

 

Um terceiro lado da mesma moeda – Libras Gov: instrumento linguístico ou propaganda de governo?

No jogo de presença/ausência da língua de sinais nas políticas de línguas formuladas/construídas pelo Estado, temos um terceiro ponto atrelado e que produz efeitos para o programa “Pátria Voluntária”. Como interpretar voluntariamente de/para Libras – uma língua pouco estandardizada – em nome do Estado? Como transformar essa interpretação voluntária em uma língua pretensamente de Estado? Baalbaki e Buscácio (2020) assumem um posicionamento ao dizer que ao se promover “a palavra do governo na língua do Estado (ORLANDI, 2012): a Língua Portuguesa permanece com os sentidos de língua nacional; a Libras, uma língua outra tolerada pela Língua de Estado” (p. 57). Dessa forma, complementam as autoras, a Libras (e podemos ampliar as traduções em Libras) seria “uma língua minoritária tolerada porque serve como instrumento de acessibilidade para a difusão de um discurso do Estado” (p. 59). E para que se torne tal suporte para a difusão, precisa passar por um processo de instrumentalização linguística: a gramatização.

Auroux (1992) afirma que a gramatização dos vernáculos teve como uma de suas principais fontes a tradução das gramáticas latinas. Talvez uma aproximação possa ser feita com o processo de gramatização13 da Libras. Qual seria o papel da interpretação de/para Libras nesse processo? Em que medida há proposta de gramatização (produção de registros) da língua de sinais (LS) na produção de um arquivo em vídeo? Já que o vídeo (entendido aqui como registro visual das LS) é uma condição para os processos de gramatização dessa língua, como o projeto Libras Gov14 se propõe unificar sinais que designam os cargos dos ministros, ministérios etc.? A proposta teria, ao menos, um duplo objetivo: a unificação e estandardização dos sinais para os surdos pudessem participar da vida política e o auxílio no trabalho dos intérpretes, ou melhor: o serviço dos voluntários, uma vez aqueles tiveram seus cargos extintos com o Decreto n° 10.185, de 20 de dezembro de 2019. Um duplo objetivo que, ao que tudo indica, inviabilizaria, em parte, a proposta.

Em consonância com a proposta teórica de Auroux, o projeto poderia ser compreendido como um instrumento linguístico (AUROUX, 1992), produzido a partir de uma lista de sinais (registro em vídeo), que serviria a gramatização da Libras. Dessa maneira, a partir de um imaginário daquilo que aborda a língua (seja oral ou de sinais) que está sendo tratada, constrói um instrumento voltado a uma produção de conhecimento linguístico, mas com um repertório distinto: sinais de locais (ministérios), funções e nomes de agentes públicos (ministros e outros). Na sequência discursiva a seguir, podemos observar qual seria a finalidade desse projeto.

 

SD7: Em cerimônia no Palácio do Planalto, o Governo Federal lançou, nesta quinta-feira (26 [de setembro de 2019]), o projeto "Libras Gov – Sinalizando em Língua Brasileira de Sinais" os espaços, contextos e expressões governamentais. O objetivo é possibilitar, via Língua Brasileira de Sinais (Libras), o acesso de cidadãos surdos brasileiros, profissionais intérpretes de Libras, comunidade surda, entre outros, a termos específicos do Governo Federal e a informações relacionadas ao campo dos três poderes que compõem República Brasileira. (PLANALTO, 2019)

 

O acesso aos “termos específicos do Governo Federal” produz um efeito de material de consulta, um arquivo que, disponível publicamente, serviria aos surdos e intérpretes. Em outros termos, uma lista de sinais produzidos em Libras para dar conta de termos e expressões até então inexistentes nessa língua ou ainda de pouca circulação. Para Auroux (2007), “[a] listagem de palavras é então a técnica elementar que é a base de todo dicionário. [...] Mas toda listagem de palavras (por exemplo, o inventário de uma loja) não é diretamente um dicionário” (p. 16-17). Poderíamos tratar, portanto, o projeto como uma tentativa de produzir um dicionário que não somente teria “função mnemotécnica” (AUROUX, 2007, p. 17), mas também uma função de difundir as posições assumidas por um governo? Sobre as línguas orais europeias, Auroux nos diz que

 

A lista de palavras não é um ‘dicionário’ no sentido de um dicionário de língua. É - uma vez que ela é escrita – um objeto técnico[...] Ela pode, assim, assumir outras funções além daquelas que eram as suas na origem, ou ser retomada na construção de outros objetos técnicos.[...] Se a lista de palavras não é um ‘dicionário’, ela está indubitavelmente na origem dos dicionários (AUROUX, 2007, p. 18).

 

Embora o autor não conceitue a lista – um objeto técnico – como um dicionário, assume que seria “uma entidade autônoma suscetível de outras utilizações ou de conservação de forma quando o contexto muda” (p. 19). De fato, uma visão instrumental em que o objeto (dicionário, gramática) teria a função de ampliar a competência linguística dos falantes, no caso, dos surdos e dos intérpretes. Daí que para a Análise do Discurso, considerando seu funcionamento histórico e ideológico, esses são objetos significantes (Cf. SILVA SOBRINHO, 2013) porquanto discursivos, nos quais a ilusão referencial (PÊCHEUX, 1988 [1975]) imputa ligar palavras e coisas do mundo, ou ainda sinais a “espaços, contextos e expressões governamentais”, como no Libras Gov15.

Contudo, vislumbramos outro questionamento. O projeto Libras Gov seria também uma propaganda do governo? A Libras estaria sendo usada como uma língua de vento, aquela que "permite à classe no poder exercer sua maestria, sem mestre aparente" (GADET; PĒCHEUX, 2004 [1981], p. 24)? No trecho "Em cerimônia no Palácio do Planalto, o Governo Federal lançou, nesta quinta-feira, o projeto ‘Libras Gov’” parece se atestar uma “política do performativo" que, segundo Orlandi (2012, p. 134), não seria informação, mas propaganda. De fato, "a língua de madeira do direito e da política se enrosca com a língua de vento da propaganda e da publicidade. Uma face obscura de nossa modernidade a que uma reflexão sobre a língua não poderia permanecer cega" (GADET; PÊCHEUX, 2004 [1981], p. 23). Assumimos o posicionamento de que os sinais produzidos em vídeos e arquivados em canal de uma plataforma de compartilhamento serviriam também como propaganda.

Zandwais (2019) assevera que “todos os grandes regimes totalitários (quer de esquerda ou populistas ou de direita) serviram-se da ‘propaganda’ de Estado para influenciar e submeter as massas, sobretudo para subjugá-las, buscando, através dela (a propaganda), neutralizar e eliminar as forças opositoras” (p. 72). O Libras Gov, tomado apenas como um instrumento técnico para promover acessibilidade, não serviria como propaganda para submeter e subjulgar os surdos e suas lutas? Intérpretes são retirados da cena enunciativa, voluntários seriam alocados em seus lugares e um arquivo de termos governamentais em Libras é ofertado. Aqui, parafraseando Pêcheux (1997 [1983]), dizemos: a promessa de registros na Libras materialmente eficazes e facilmente acessáveis em diferentes suportes (notebooks, celulares etc) ... como os surdos poderiam resistir “a semelhante pechincha?” (PÊCHEUX, 1997 [1983], p. 35).

Ademais, o desenvolvimento de uma lista de vocabulário de Libras, nesse contexto, vem reafirmar e atualizar os traços da perspectiva religiosa que temos compreendido como constitutiva da organização da formação social brasileira. Se, por um lado, a propaganda de governo reforça a associação entre o serviço de tradução e interpretação em Libras como uma atividade voluntária (ou precarizada) e com o trabalho de assistencialismo caritativo cristão; por outro, o Libras Gov vem instaurar-se na ideia de transmissão de informação.

Historicamente, fazendo um paralelo, o processo de gramatização das línguas dos povos originários das Américas e da África, durante a colonização, foram justificados sobre a pretensa ideia de caridade que compreendia duas faces: a evangelização dos povos pagãos e a transmissão dos valores civilizatórios aos povos ditos primitivos ou selvagens. Nesse processo, as línguas dos povos colonizados eram tomadas como meros instrumentos neutros de transmissão da informação religiosa (logo, civilizada) dos povos europeus aos povos submetidos ao seu poder político, econômico e bélico; processo esse que compreendia a “estabilidade semântica” das línguas, sua perfeita homogeneidade de significados, em materialidades distintas, mas pretensamente neutras. Esse processo reforçava a “passividade” dos colonizados, seu papel de receptores sem direito à fala do discurso cristão, agora com suas línguas sendo “capturadas” pelo discurso hegemônico (cristão, colonizador).

Tal processo se verifica na prática do proselitismo religioso das igrejas evangélicas que, a partir principalmente da década de 1980, passaram a garantir a presença de intérpretes que transmitiriam aos surdos os discursos religiosos, sem permitir que esses participassem da “cena de enunciação” como interlocutores. Quando a ação do governo é fornecer um vocabulário de Libras que se adéqua às suas necessidades propagandísticas, valida-se novamente essa ideia de transmissão de informação unidirecional e retira-se dos surdos (como antes dos colonizados) o direito de seus falantes sobre sua própria língua.

 

Considerações finais

Verificamos como algumas ações governamentais (Programa Pátria Voluntária, Decreto 10.185/2019, Projeto Libras Gov) são apresentadas em nome do aprimoramento dos serviços oferecidos aos surdos, sendo estes compreendidos como um grupo que, ao sair “da força de deslocamento”, ou seja, “do movimento da sociedade, força viva dos corpos que se deslocam” (ORLANDI, 2013, p. 32), é capturado pela força de manutenção de sentidos, pela força “ordem jurídico social instituída” (idem, p. 32) para se estabilizar como um grupo que precisa do trabalho voluntário do outro (ouvinte) .

Observamos, assim, como na relação entre Estado e população surda continua a ressoar uma memória discursiva que atrela esse grupo social e sua língua (a Libras) à religiosidade. Essa religiosidade se ata ao projeto colonial, basilar para a compreensão do modo de produção do capitalismo periférico, a partir do qual se organiza a formação social brasileira. O sujeito surdo é constituído, assim, como um sujeito-em-falta, infantilizado, a quem não é garantida a pretensa “cidadania plena”, assim como sua língua é tida como uma língua-em-falta, incompleta, insuficiente. Isso é construído e reforçado pelas políticas públicas, ao se tirar a obrigatoriedade da acessibilidade da esfera dos quadros oficiais e regulares do funcionalismo, apelando para o voluntariado – forma de ação que se aproxima, historicamente, da caridade cristã.

Ao mesmo tempo, essa língua é vista como uma “nomenclatura” incompleta, uma língua que não teria funcionamento semelhante ao português, com uma comunidade de fala específica, dentro da qual se daria a ampliação do léxico. Libras é compreendida como um código de transmissão unilateral, de tradução do português (oficial) – concepção que se aproxima do proselitismo cristão, na sua relação com os povos originários quando da colonização e na relação das igrejas com os surdos como alvo de conversão, passivos, como sujeitos capazes de “profetizar” ou “falar em línguas”.

Essa relação entre governança e religião, que se vai constituindo de maneira dialética, lança luz sobre o estatuto do cidadão brasileiro, não apenas o surdo, mas de uma maneira geral. Leva-nos, assim, a questionar de que modo a colonialidade (como conjunto de prática e ferramentas da colonização que perduram em nossa formação social) afeta a constituição do Brasil como um país capitalista e um Estado de direito, aos moldes dos países e estados europeus. Com isso, questionamo-nos acerca dos impasses que isso oferece à Análise de Discurso materialista, uma vez que, como afirma Orlandi,

 

a AD permite a reflexão sobre a linguagem levar em conta as especificidades histórico-políticas dos diferentes contextos em que se desenvolve.

Assim, o modo como a AD se desenvolve na América Latina pode, e deve, ser diverso daquele com o qual esta se desenvolveu na França. (ORLANDI, 1990, p.33)

 

Questionamo-nos, assim, se de fato teria havido, no Brasil, a transição de uma forma de subjetivação baseada centralmente na religião para uma forma de subjetivação baseada no estatuto jurídico, como defende Haroche (1992) para a Europa. No caso do sujeito surdo e sua língua, na relação com o Estado, certamente podemos dizer que se mantém fortemente o elemento religioso, senão como AIE dominante, como AIE codominante, atrelado ao aparelho judiciário e escolar. Desta forma, a laicidade – como aspecto central na formação dos estados nacionais burgueses, no século XIX – não se desenvolve plenamente em nosso país.

Confirma-o a análise de trechos recortados da nota de repúdio de intérpretes e tradutores de Libras, nos quais o (AIE) trabalho não assume as mesmas características compreendidas nos países capitalistas europeus. Essa análise parece indicar a conjugação dos dois gestos argumentativos. A formação de qualidade e a remuneração correspondente ao trabalho realizado parecem ser a tônica. Nesse gesto argumentativo, portanto, “Os TILS precisam ser reconhecidos como profissionais, já que é a sua formação que fará diferença, interferindo na qualidade da informação” (BAALBAKI; RODRIGUES, 2020, p. 178-9). O outro antagônico seria o voluntário que, ilusoriamente, não teria como garantir a qualidade do trabalho, visto não ser possível asseverar a formação necessária. No entanto, como já observamos, outros efeitos de sentidos são produzidos A palavra “remuneração” pode abarcar tanto o pagamento de salários de funcionários (com direitos garantidos) como de terceirizados – profissionais cuja relação de trabalho foi precarizada. Nesse embate outra via se abre: a possibilidade do trabalho do intérprete se dar de forma terceirizada. Em suma, trabalho terceirizado ou voluntário que contaria com um repositório de sinais governamentais para consultar e “garantir” a transmissão da informação governamental.

Acreditamos, com isso, ter apontado pistas que validem os esforços de pesquisa, em AD, sobre as relações entre cidadania e religiosidade, lançando luz sobre a contradição constitutiva de nossa formação social: ex-colônia/país periférico. Terminamos, assim, lançando algumas perguntas para futuros desdobramentos: seria possível reconhecer o funcionamento dessa engrenagem religiosa-colonial também nas políticas públicas e educacionais voltadas à língua portuguesa e às línguas orais minorizadas do país? Seria possível observar essa constituição contraditória no próprio seio de nosso aparelho jurídico e policial, assim como em outros aparelhos ideológicos? Acreditamos que sim. E dessa maneira, recordamos daquele lugar comum colonial, tão repetido em nossos primeiros anos de colonização portuguesa: de que seríamos um território sem fé, sem lei e sem rei… Ou seja: um território em falta, com sujeitos-em-falta e todo um continuado esforço para promover essa completude.

 

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Data de Recebimento: 04/07/2021
Data de Aprovação: 25/04/2022


1   O presente artigo é resultado parcial das atividades do projeto “Disciplinarizaçäo da Linguística no Estado do Rio de Janeiro: uma perspectiva multidisciplinar das percepções sobre língua”, submetido pelo coordenador Prof. Dr. Décio Rocha ao edital Humanidades, da FAPERJ (E-26/010-000145/2016).

2  Cabe observar que, salvaguardadas as qualidades da mencionada lei, ela mantém a necessidade de um “bilinguismo desigual” (LAGARES, 2018, p.78), uma vez que não se “poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa” (BRASIL, 2002), e que ela não compreende a comunidade surda como um grupo identitário – aquele dos falantes de Libras –, mas como “portadores de deficiência auditiva” (BRASIL, 2002).

3  Em sua reflexão teórica, Payer (2005), ao retomar Pêcheux (1988) e Haroche (1992) em relação à constituição do sujeito de direito, interpelado pelo Estado, aponta para a alteração no processo de interpelação do sujeito pela ideologia em uma formação social que move sem cessar, já que histórica. A autora assevera que o sujeito contemporâneo seria, por enfraquecimento do Estado, interpelado pelo Mercado. Assim, o “texto sagrado” da contemporaneidade seria, para Payer (2005), a mídia que interpelaria os sujeitos. Também definimos algumas distinções no processo de interpelação do sujeito em uma formação social como a brasileira; entretanto, nossos encaminhamentos passam por outras bases, como veremos a seguir.

4  O instituto foi inicialmente nomeado “Instituto dos Surdos-mudos do Rio de Janeiro”.

5  Contudo, elementos do catolicismo ainda se fazem presentes no prédio da instituição; há, por exemplo, altares com imagens sacras/de santos, mesmo se tratando atualmente de uma instituição pública.

6  Ainda que não venhamos a nos debruçar sobre esse aspecto, é relevante apontar para o fato de que o gênero atribuído à pessoa que sinaliza – feminino – e sua raça – branca – também se recobre de sentidos dentro dessa discursividade instaurada pelo sistema capitalista/colonial. Nele, a mulher branca (DAVIS, 2016) é identificada com aquela que cuida do outro, uma vez que historicamente não teve ocupações consideradas produtivas dentro da ordem econômica da sociedade (ao contrário das mulheres negras e dos homens, sejam eles brancos ou negros). A mulher, portanto, é “somente” aquela que cuida, que zela pelos outros, cujo valor se dá pela manutenção (reprodução) das condições de trabalho de filhos, marido e dos “necessitados” (FEDERICI, 2017). Dessa forma, os efeitos de sentido produzidos pelo “corpo” de quem sinaliza, no cartaz, são diferentes daqueles que poderiam ser produzidos caso se tratasse de uma pessoa negra ou um homem branco.

7  Como toda a língua, Libras também está sujeita a modificações no seu sistema linguístico, haja vista sua relativa autonomia (ORLANDI, 2009). No vídeo comemorativo de um ano no programa, o sinal é realizado de outra forma. Conferir: https://youtu.be/3Xeva6cFCqw, acesso em 9 de fevereiro de 2021.

8  Chama-nos atenção, por exemplo, que nas religiões glossolálicas, não há tradução da “língua dos anjos” ou “do espírito santo” para a língua de sinais e que não sejam registradas manifestações de surdos no mesmo sentido.

9  Os sentidos sempre podem ser outros. O tradutor/intérprete pode ser significado, por exemplo, como um revolucionário. Russo (2010), ao retomar outros dizeres sobre intérpretes de Libras, destaca que haveria uma rede de tradutores e intérpretes voluntários (http://www.babels.org/) “formada por ativistas de diferentes tendências e formações unidos na tarefa da transformação e abertura dos Fóruns Sociais. Trabalhamos para dar voz aos povos com línguas e costumes diferentes” (p. 99). A questão em torno da formação também pode produzir outros efeitos de sentido. Russo (2010), ao abordar certa historicidade dos intérpretes de Língua Americana de Sinais, afirma que houve uma “época em que aqueles que assumiam a função de ILS eram os familiares e amigos, por manterem um contato próximo à comunidade surda” (p.31), passando de “uma atuação entre amigos, onde um presta favor ao outro” (p. 32), para uma relação profissional, com a abertura de espaços de qualificação profissional.

10  Lembremos com Davis (2016) que, nas antigas colônias escravocratas, “raça informa classe” e “classe informa raça”.

11  Como destacam Faria Filho e Sales (2002), o bacharel foi “o responsável por toda uma forma de compreender e produzir, no Brasil, o ideário liberal e iluminista” (FARIA FILHO; SALES, 2002, p. 249). A divisão de trabalho entre os bacharéis e a população pobre parece ainda se perpetuar em nossa formação social. Se o trabalho intelectual foi uma atividade destinada a uma única camada da sociedade autorizada a cumpri-la, o trabalho manual, outrora atribuído aos escravizados, tornou-se “naturalmente” uma atividade realizada pela classe trabalhadora-assalariada. (cf. BAALBAKI, 2010).

12  Courtine (2014 [1981]) caracterizou o enunciado dividido pelo uso contrastivo da cópula de identificação "é/não é”.

13  Auroux (1992) compreende o processo de gramatização como uma revolução técnica-científica responsável pela produção de gramáticas e dicionários, que teria ganhado forte impulso nos séculos XV e XVI, movido por interesses práticos relacionados à formação dos estados nacionais, da consolidação do sistema jurídico etc.

14  Os vídeos do projeto podem ser acessados em https://www.youtube.com/watch?v=Q5OA-_ANRp4.

15  A entrada de cada verbete é sempre produzida em Língua Portuguesa, seguida da produção sinalizada em Libras. Alguns desses sinais em Libras não são contextualizados historicamente, tais como: “escolta de batedores”; “batalhão da guarda presidencial”; “bateria histórica Caiena”. Outros, contudo, mostram-se desatualizados, já que os nomes próprios e seus respectivos sinais dos agentes públicos não correspondem aos que se mantém na função pública indicada.