Testemunho e trauma no julgamento de Larry Nassar


resumo resumo

Giovana Oliveira de Russi
Aline Fernandes de Azevedo Bocchi



1. Introdução

Em 2018, o antigo médico da seleção olímpica estadunidense, Larry Nassar, recebeu a última pena por crime de abuso sexual. Foi condenado a 125 anos por molestar três ginastas entre 2009 e 2011, aos quais somam-se 60 anos por pornografia infantil e 175 anos por molestar outras 7 atletas. O médico foi acusado por 265 mulheres de abuso sexual entre 1997 e 2016. A primeira mulher a abertamente nomear Nassar como seu agressor foi Rachel Denhollander, uma ginasta que ousou testemunhar após ler uma série de reportagens produzida pelo The Indianapolis Star, um jornal diário publicado desde 1903. Interpelada por uma reportagem sobre abusos, resolveu ligar para o jornal e contar sua história. Em setembro de 2016, Nassar se declarou culpado de posse de pornografia infantil. Em setembro de 2017 ele enfrentava 25 acusações de abuso sexual. Foi nessa época que o caso Harvey Weinstein e a #metoo1 vieram à tona, o que contribuiu para que mais atletas viessem a público, inclusive ginastas medalhistas olímpicas como Aly Raisman, McKayla Maroney e Simone Biles.

Dois documentários expõem a rede de abusos que ocorria na seleção olímpica de ginastas estadunidenses. No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica (2019) explora a rede como um todo e mostra o julgamento do médico, direcionado às sobreviventes e à abordagem da juíza do caso, Rosemarie Aquilina. Já Atleta A (2020) narra a história da ginasta estadunidense Maggie Nichols, nomeada “Atleta A” nos autos do processo contra Larry Nassar, e que só decidiu se identificar no julgamento através de uma declaração lida por sua mãe.

A partir desses documentários, construímos um corpus com recortes cujas análises visam compreender como o testemunho funciona de modo a propiciar uma narração para o trauma. Embora não dê conta de dizer a experiência traumática toda, o testemunho faculta às vítimas a elaboração das perdas que a violência impõe, com efeitos de luta e resistência. Analisa-se, portanto, testemunhos produzidos durante o julgamento de Nassar, mostrados nos documentários mencionados, atentando para os gestos de interpretação constitutivos desses materiais. Consideramos o gesto de interpretação como ato simbólico, conforme Orlandi (1996), que afetado pela história e pela ideologia intervém no real do sentido.

Com Orlandi (2012, p. 55) compreendemos que o “documentário fala de um acontecimento que se torna, por assim dizer, político, para além da ‘intenção’ declarada de seus participantes”. Enquanto materialidade discursiva, ele inscreve posicionamentos relativos a determinadas formações discursivas, tendo em vista processos de interpelação ideológicos constitutivos de sentidos divididos e relações desiguais. Consideramos que o documentário é um objeto que se estabelece na fronteira entre a arte e o jornalismo, no atravessamento do discurso artístico e do informativo. Nessa imbricação, ele recorta a memória e discursiviza o acontecimento por meio de montagens de cenas, escolhas de determinados depoimentos, jogos de luz, som etc., os quais produzem efeitos de sequência que constituem um discurso sobre o acontecimento.

Constituídos de diversas materialidades (a imagem, o som, os testemunhos, os corpos, as vozes etc.), os documentários analisados são constituídos por uma memória discursiva que é “irrepresentável”. Eles recortam, assim, essa memória, produzindo um discurso sobre o acontecimento, e por isso não podemos considerar que eles ‘representem’ o julgamento, mas produzem uma determinada versão dele, em efeitos de sentido que se constituem ao mobilizarem em seu gesto a memória em uma atualidade. Orlandi (2012, p. 57) nomeou essa atualidade como “uma formulação”; uma entre outras, recortes possíveis a produzirem determinados efeitos.

De fato, em Orlandi (2012, p. 56), o documentário produz um “recorte no real” que é tomado como um acontecimento; ele não é um desdobramento do real, mas “faz com que algo apareça como real”, com um efeito de memória e o esquecimento que o acompanha. A autora ainda afirma que “no documentário, as coisas-a-saber são tomadas em redes de memória dando lugar a filiações identificatórias e não a aprendizagens por interação.”

Há, nos documentários examinados, uma memória que é atualizada a partir, sobretudo, dos testemunhos das mulheres sobreviventes. Os testemunhos, portanto, estruturam o documentário, evidenciam a contradição entre posições ideológicas desiguais que concorrem em uma disputa pelos sentidos do acontecimento, enfatizando uma versão do julgamento filiada às posições de combate à violência a ao assédio. Destaca, assim, sentidos esquecidos e silenciados em uma formação social machista e misógina, mas que são atualizados na discursivização do julgamento em testemunhos de resistência, com efeitos no real da história.

 

 

2. Violência, silenciamento, testemunho

Os dois documentários aqui analisados evidenciam um pacto de silêncio ao mostrarem que inúmeras denúncias foram feitas, a adultos (no caso das meninas assediadas) e órgãos distintos, sem que qualquer providência para afastar o médico fosse tomada. Outras pessoas envolvidas no preparo das atletas também foram acusadas de acobertamento e violência, como o casal Karolyi, delatado por abusos físicos e psicológicos ocorridos no rancho de preparo de atletas, fechado após os escândalos. Com o levante do movimento Metoo, reacendido pelo tweet da atriz estadunidense Alyssa Milano, o caso contra Nassar ganhou visibilidade internacional e seu julgamento foi transmitido via streaming, o que possibilitou acompanhá-lo na íntegra online, fazendo com que os sentidos ali produzidos passassem a circular além do ambiente físico do julgamento e para as pessoas presentes no local.

O silenciamento da vítima é realizado por meio da desqualificação do testemunho das sobreviventes, que pode ser observada no relato de Kyle Stephens, no julgamento de Nassar, no momento em que Kyle fala do relacionamento dela com o pai e dos conflitos que surgiram após revelar, aos 12 anos, que era abusada pelo médico desde os 6:

 

[...] Para o meu pai, alguém que faz acusações falsas e tão hediondas é o pior tipo de pessoa. Sua crença de que eu mentira se infiltrou na fundação do nosso relacionamento. Toda vez que brigávamos, ele dizia: “você precisa se desculpar com Larry”. Não foi até que eu estava prestes a ir embora para a faculdade que tentei novamente limpar meu nome. As ações de Larry Nassar já haviam me causado angústia significativa, mas eu machuquei ainda mais quando vi meu pai perceber o que havia me feito passar. Meu pai e eu fizemos o nosso melhor para consertar nosso relacionamento esfarrapado antes que ele cometesse suicídio em 2016. (No coração do Ouro: O escândalo da seleção Americana de Ginástica Olímpica, 2019, [n.p]).

 

É interessante notar que, além da vida da atleta, a vida do pai também foi destruída quando ele se suicida por não ter conseguido acreditar em sua filha. No depoimento, a atleta chora e treme, seu corpo reage à lembrança da violência, à dor que sente e sentiu. Uma criança cujo relato é desacreditado por seu próprio pai. Verifica-se que a fala da menina é referida a um lugar determinado numa formação social, lugar destituído de credibilidade quando confrontado com o lugar social do médico e a força de interlocução dele decorrente. No jogo das formações imaginárias, que consoante Pêcheux (1969) participam das condições de produção, a fala de uma criança não tem o mesmo estatuto que a fala de um médico e sua suposta idoneidade.

Ainda assim, Kyle precisa contar a sua história, fazê-la legítima e verdadeira.

A expressão “limpar seu nome” remete ao jurídico e nos faz pensar no funcionamento da denúncia de uma jovem atleta diante de um Outro que desqualifica sua fala e sua dor. Não há apenas um corpo violado, mas também um nome manchado, sujo. Na remissão do intradiscurso ao interdiscurso, “limpar seu nome” mobiliza um pré-construído, um saber construído antes e independentemente, e que diz respeito a filiações atreladas à culpabilização da vítima em casos de estupro e assédio. Assim, o nome sujo não refere apenas à suposta mentira e perjúrio, mas ao próprio ato de violação.

Testemunhar seria, então, uma forma de limpar o seu nome, um gesto simbólico e político na luta por justiça e reparação. Trata-se de um testemunho com efeitos performativos, posto que funciona como um fazer político ao operar, por meio de um árduo trabalho enunciativo sobre a memória discursiva, como reorganização das formações imaginárias ao configurar um lugar de legitimação para as meninas e mulheres sobreviventes.

O próximo testemunho em análise é de Melody Posthuma, uma dançarina que relata, junto a outras ginastas, sua relação com Larry e os tratamentos médicos que recebia (Fig. 1).

 

Figura 1 - Melody Posthum

Fonte: No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 21:29, 2019.

                                                                

 

Você sempre escuta de treinadores e professores “sem dor, sem ganho”, então quando algo é doloroso, você está pensando “isto está me ajudando e eu estou melhorando por causa disso”. Eu me lembro de pensar “Posso sobreviver a isso por mais dois minutos?” Olhando o relógio do meu celular, esperando cinco minutos passar, dez minutos passar até 45 minutos ou uma hora. Então suas consultas eram de duas horas de duração. Minha análise é de que uma hora era médica, profissional e a segunda metade era sexual.

 

Melody busca no relógio o refúgio mental contra a violência, vendo os ponteiros passarem e se perguntando “posso sobreviver a isso por mais dois minutos?”. Crianças, adolescentes, mulheres vítimas de uma violência tão brutal que a dormência e o refúgio mental são os únicos aliados para conseguirem sobreviver. Ela inscreve, em seus dizeres, uma posição-sujeito testemunha, posição daquela que sobreviveu para narrar o ocorrido, e que empenha corpo e linguagem ao inscrever-se em uma formação ideológica de combate à ideologia machista e sexista que insistentemente viola as mulheres, seus corpos e seus nomes.

Taylor Livingston, ex-ginasta diz: “a razão pela qual Larry era um médico tão bom, era porque você não sentia nada depois, não apenas física, mas emocional e mentalmente. Você tinha que bloquear. Você tinha ou você vai desmoronar” (Fig. 2). A atleta usa bloquear em sua descrição, é preciso bloquear o que estava acontecendo, o que aconteceu, pois sentir e reconhecer o abuso iria lhe destruir, “você vai desmoronar”, cair em pedaços. O reconhecimento do abuso, do trauma é também uma forma de reconhecimento da própria dor.

 

Figura 2 – Taylor Livingston

Fonte: No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 25:45, 2019.

 

No documentário Atleta A, que aborda o mesmo escândalo dando ênfase às reportagens e implicações posteriores ao julgamento, o advogado John Manly diz: “foi isso que ele fez, ele roubou essa parte delas e elas estão lutando para recuperá-la”. Destruí-las pode ser interpretado como roubar parte de alguém e relegar essa pessoa a um sofrimento sem reconhecimento, um sofrimento privado que a sociedade nem ao mesmo reconhece. Testemunhar, ao contrário, vai na direção de romper com a dominação masculina mantida por mecanismos de redução ao silêncio, ao silenciamento (ORLANDI, 2007), que conforme observamos, funciona na destituição da legitimidade da fala de crianças e mulheres, na interdição de determinadas posições de sujeito.

3. Trauma e testemunho

Em suas reflexões sobre a perda e o trauma, Penna estabelece que o entorpecimento e o bloqueio afetivo podem aliviar “os efeitos dolorosos da angústia excessiva” (2015, p. 15) que constitui o trauma, como vemos na fala de Melody Posthum (Fig. 1), na qual há uma tentativa de fuga, como se olhar fixamente para o relógio e ver a hora passar tornasse a situação de violência tolerável. Penna se apoia em Caruth (1996), que considera que a noção de trauma diz respeito à relação enigmática da psique com a realidade, em que o registro do evento traumático se encontra “dissociado dos processos cognitivos habituais”. Segundo Caruth, há duas abordagens principais na teoria do trauma, a que o focaliza como dilaceramento de um eu pretensamente inteiro; e a que lança luz à função de sobrevivência presente na experiência traumática, o que permitiria que um indivíduo sobrevivesse a uma experiência insuportável. Ele não é meramente um efeito de destruição, mas também um enigma de sobrevivência.

Já Carrenho (2019), ancorada em Levi (2014), Agamben (2008), Felman (2014) e Mariani (2016), fala sobre a dimensão do trauma, uma dimensão que “barra a possibilidade de entrada da experiência no âmbito do vivido e do reconhecido/reconhecível, fazendo permanecer para o sujeito justamente o impossível da experiência, o impossível de significá-la.” (p. 50). Segundo ela, não podemos chegar a uma definição concreta e fixada do que é ou não uma experiência traumática, pois essa experiência pode, no preciso momento em que pensamos tê-lo feito, se reorganizar, tornar-se outra. Além disso, “o sujeito só significa a experiência como traumática no depois, de forma que o trauma é produzido retroativamente” (CARRENHO, 2019, p. 52). Assim, é nas sutilezas dos movimentos de (re)significação de eventos traumáticos, a partir de processos de identificação, que evidenciamos a existência de traumas.

Em O Inconsciente Jurídico (2014), Felman recorre à fala de Hanna Arendt (1960, p. 417 apud FELMAN, 2014, p. 99) sobre o trauma, que o conceitua como “algo que não pode ser adequadamente representado, tanto em termos jurídicos quanto em termos políticos”. Segundo ela, o abuso de poder estaria inscrito na cultura como trauma, ou seja, “o político está essencialmente ligado à estrutura do trauma” (p. 116).

Enquanto ameaça súbita ou inesperada que não entra no registro simbólico, o trauma é precisamente aquilo que não pode ser visto, mesmo quando está em contato com “as regras de evidência e com a investigação jurídica do julgamento por visibilidade” (FELMAN, 2014, p. 116). O trauma não pode ser conhecido, ele permanece indisponível para a consciência, retornando de forma repetida e reencenada na forma de flashbacks, pesadelos e repetições. No âmbito jurídico, a prova mais contundente é aquilo que se vê, a testemunha ocular, mas o trauma é justamente essa instância que não pode ser vista ou mensurada. A autora argumenta que, nos tribunais, “entre fatos contraditórios e versões conflitantes da verdade, veredictos são decisões em torno do que admitir na memória coletiva e do que transmitir da memória coletiva. A lei é, nesse sentido, uma força organizadora da significação histórica” (2014, p. 117). Força que, enquanto tal, não contempla homens e mulheres da mesma maneira, justamente porque a memória coletiva é constituída por esquecimentos e silenciamentos. Ela é habitada pelo invisível.

Observa-se que os testemunhos, amplificados pela circulação de seus sentidos nos documentários que os discursivizam, constituem narrativas de violência que excedem o que seria da ordem do singular, configurando um “trauma social e coletivo” (BOCCHI, 2017b, p. 1818). Felman (2014, p. 98) vai apontar a importância do julgamento/veredito para que o trauma social e coletivo reverbere na memória coletiva. Segundo ela, o julgamento “inadvertidamente participa de um trauma que é não apenas individual, mas está inscrito na história”, e cuja queixa individual ou reclamação ganha “significado histórico, cumulativo, coletivo, jurídico” (grifos da autora). A esfera jurídica pode, portanto, contribuir de modo decisivo sobre os sentidos que irão se estabilizar na memória coletiva, organizando as significações para o assédio e a violência sexual.

Contudo, o testemunho nem sempre ocorre na esfera jurídica, de maneira formal ou buscando uma decisão judicial. Ele pode ser simplesmente o ato de narrar o evento traumatizante para alguém. Escrever sua história, como fez Primo Levi (1947, p. 6) diante de uma “necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes”, que se estabelece como “impulso imediato e violento”.

Destaca-se a importância do endereçamento na inscrição do testemunho e da potência de cura implicada na fala, em falar e escrever para os outros, compartilhar histórias de violências. Com Bocchi (2017b), entendemos que a perspectiva do endereçamento determina o testemunho na relação com algo que não se pode calar. Como entende a pesquisadora, as análises ora realizadas também nos mostram que os testemunhos adquirem “um sentido forte, político, de engajamento crítico na mudança, e não um sentido meramente positivista que reafirma o poder da esfera jurídica” (p. 1812).

Felman e Laub trabalham, nesse texto, os traumas e testemunhos de sobreviventes do Holocausto. Apesar de sua abordagem considerações serem acerca deste acontecimento histórico, muito da análise do trauma pode ser pensado em relação ao nosso material analítico. Eles argumentam que a dificuldade de se narrar um acontecimento traumático se encontra na incapacidade do sujeito de narrativizar completamente tal experiência. Há sempre algo que escapa e não pode ser totalmente compreendido e colocado em palavras. Segundo eles, “o ato de contar pode se tornar, em si mesmo, severamente traumatizante, se o preço de falar é reviver; não alívio, mas retraumatização adicional” (FELMAN e LAUB, 1992, p. 67 – tradução nossa; grifos dos autores).

Se não há uma escuta adequada, narrar a experiência pode ser o equivalente a revivê-la, a reexperimentar o evento em si, o que nem todas as pessoas teriam condições de fazer. É por isso que se destaca a importância de um ouvinte empático ou de um “outro endereçável, um outro que possa ouvir a angústia das memórias e, assim, afirmar e reconhecer sua realidade”. Para eles, sem essa escuta a história é aniquilada, e é justamente essa aniquilação que faz com que a narrativa do trauma “não possa ser ouvida ou que uma história não possa ser testemunhada” (FELMAN e LAUB, 1992, p. 68; grifos dos autores).

Felman e Laub (1992, p. 67) compreendem que o testemunho é “composto por pedaços de memórias que foram sobrecarregadas com ocorrências que não se estabeleceram no entendimento”. Isso porque estariam relacionados a traumas, que são “atos que não podem ser construídos como conhecimento nem assimilados completamente, eventos que excedem nossos quadros de referência”. Felman (2014, p. 31) se apoia em Caruth para estabelecer o seu entendimento do trauma. Segundo ela, Caruth articula trauma, psicanálise e história de forma abrangente e inovadora, a qual pode ser resumida em três pontos: 1) A compreensão de que o trauma é uma dimensão essencial da experiência histórica, o que pode nos oferecer um novo entendimento da causalidade histórica; 2) O fato de que a experiência traumática impõe uma reflexão sobre a relação entre destruição e sobrevivência; 3) O fato de que a experiência do trauma implica, também, a uma dimensão ética, visto que “a experiência do trauma se dirige a um Outro e demanda a escuta de um outro”. Segundo Felman, essa dimensão ética está fortemente relacionada à questão da justiça.

Ao examinar a obra de Freud Moises e o Monoteísmo, Caruth teria mostrado, nos dizeres de Felman (2014, p. 31), que este livro é “o testamento de Freud sobre a história como trauma”, um lugar de inscrição de um trauma histórico, o da partida de Freud da Viena invadida pelos nazistas. Se o trauma está relacionado a uma cena que repete com persistência o horror e a violência, também a história está sujeita a formas de repetição compulsivas, de modo que o trauma é também um “sintoma da história”.

Entretanto, mesmo diante da complexidade de tarefa como a de testemunhar um trauma, a necessidade de falar se impõe, no testemunho, como urgência da qual não se pode fugir. Testemunhar consiste, assim, em mais do que contar sua história e tê-la ouvida, “consiste na experiência do impossível”, sendo a sua função “fazer falar a dor, o sofrimento e o desamparo”. Ele é forma de reescrita de uma memória de violência, “mas também de resistência, pelo trabalho de luto que o testemunho possibilita” (BOCCHI, 2017a, p. 1814).

É através da reescrita, do testemunho, que o sujeito irá se colocar novamente, bordejando o real da história, ressignificando sua história de trauma, em resistência. Ainda, para Felman, o testemunho tem caráter de promessa; testemunhar é produz o próprio discurso como evidência material da verdade. O testemunho é uma prática discursiva, um ato performativo de fala; ele “endereça o que na história é ação que excede qualquer significância substancializada”, e produz “impacto que dinamicamente explode qualquer reificação conceitual e qualquer delimitação constativa” (FELMAN e LAUB, 1992, p. 5).

Ainda na esteira deste impossível, temos o esquecimento, instância estruturante da memória discursiva, “introdução do nada como força do significar” (ORLANDI, 2014, p. 6). Mariani (2016, p. 52) vai tratar do esquecimento pela “impossibilidade de um tudo lembrar-se que está no cerne da constituição do sujeito.” Um furo na memória que não encontra eco para se significar, o que Pêcheux ([1988] 2006, p. 183) chamou de “o acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito”. Para Mariani (2016, p. 55), narrar, testemunhar “é deparar-se também com o esquecimento, logo, com o real que sinaliza no campo da fala e da linguagem, a impotência das palavras e um indizível na/da apreensão dos objetos.”

Mariani lembra Agamben e os termos testis e supertes. “1. Testis (o que se põe como terceiro) em um processo entre dois contendores; 2. Supertes, aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode dar testemunho disso” (2008, p. 35 apud MARIANI, 2016, p. 55). Nas análises aqui apresentadas temos supertes, alguém que passou por uma experiência traumática e que, através do relato do acontecimento, “pode dar um testemunho, ou seja, transmitir aos outros o que foi passado por essa experiência” (MARIANI, 2016, p. 55).

Assim, a autora aponta a insuficiência da linguagem em falar de um “todo vivido”. A linguagem irá apenas fazer “borda na tentativa de dar conta do real da experiência, ou evento, ou acontecimento que mergulha com violência o sujeito”. Há nessa posição de superstes a marca da insistência do testemunho, de contar para “os que sabiam”, para “os que não queriam saber”, para os “indiferentes”, para os que querem saber, o que se viveu (MARIANI, 2016, p. 55). E temos também testis, “a imagem-depoimento que, como efeito, produz a si mesma como comprovação da violência, torna-se prova dentro de um dispositivo de verificação ameaçado constantemente pela possibilidade de perjúrio e infidelidade” (BOCCHI, 2019, p. 24). É o funcionamento do testemunho no julgamento examinado, em que o gesto de narrar testemunha uma violência e coloca em xeque o esquecimento e a linguagem.

 

4. O jurídico

A esfera jurídica se apresenta em nosso material nos testemunhos das ginastas e outras mulheres vítimas do médico olímpico Larry Nassar, testemunhos cuja circunstância de enunciação, sua condição de produção estrita, é a cena do tribunal nos EUA. Segundo Felman (2014, p. 90), um julgamento “é uma busca por uma decisão, e assim, em essência, ele não busca simplesmente a verdade, mas uma finalidade: uma força de resolução”. Ele é um “acontecimento teatral que, por definição, tem lugar num palco diante de um auditório” (p. 11), o que remete a uma cena pública na qual busca-se uma suposta resolução para um trauma privado que se torna, também, trauma coletivo. Entretanto, a cena do tribunal, o “teatro da justiça” é um lugar onde os traumas sociais são reencenados em uma mise en action que não está voltada para a elaboração desses traumas, mas presta-se a reproduzi-los e aprofundá-los, silenciando muitas vezes suas demandas de representação, diz a autora.

Felman (2014) vai argumentar, quando compara “o julgamento do século (O. J. Simpson) com a obra A Sonata a Kreutzer, de Tolstói,” que a luta de gênero envolve uma dimensão política “maior que a lei” e há uma convergência crítica indispensável entre o reino do jurídico e o reino da política. É nessa convergência entre o político e o jurídico que, sem ferramentas próprias, tenta-se, através do julgamento (única ferramenta à mão) julgar e sentenciar sobre algo que não pode mesmo ser adequadamente representado, seja em termos jurídicos, seja em termos políticos. Segundo a autora, tanto Tolstói quanto o caso de O. J. Simpson apontam para o “fracasso do julgamento”, fracasso no qual o veredito não proporcionou um senso de encerramento do caso. Sobre o julgamento de O. J. Simpson, ela diz que “o efeito do veredito não foi aquele de uma catarse intelectual ou emocional, mas de um anticlímax, que deixou largas porções do auditório com uma espécie de vazio” (p. 112). Assim, diferentemente da literatura que expõe a violência de gênero e toda a trama que a encobre, realizando uma elaboração crítica do trauma, no tribunal os traumas e dramas sociais são, em geral, obliterados e emudecidos.

Felman argumenta que há uma “memória jurídica” constituída, também, por “uma cadeia esquecida de feridas culturais e por compulsivas ou inconscientes repetições jurídicas” (FELMAN, 2014, p. 92). Essas feridas culturais rejeitadas pela memória jurídica evidenciam as contradições e falhas próprias ao jurídico, especialmente no que diz respeito às questões de gênero e à violência contra a mulher, e às questões relativas ao racismo. Há, igualmente, uma repetição jurídica traumática, uma compulsão à repetição, conforme demonstrada no caso de O. J. Simpson, as quais expõem, na história jurídica, um retorno do recalcado, nos termos freudianos. O que quer dizer que todo julgamento “envolve essencialmente ‘algo maior do que o direito’. Em todo grande julgamento, e certamente em todo julgamento de significado político ou histórico, algo que difere da lei é abordado” (FELMAN, 2014, p. 100).

De fato, o acontecimento do julgamento de Nassar discursivizado nos documentários nos faz perceber que o testemunho no tribunal está circunscrito a um funcionamento jurídico que tende a apagar seu caráter subjetivo, pois o teatro do direito abre-se apenas aparentemente para as vozes das testemunhas. Reprodutora de uma estrutura de poder injusta e desigual, trata-se de uma instância jurídica que se quer imparcial e apta para mediar os conflitos. Entretanto, ela está cega para as questões subjetivas. Mas, então, não há espaço no “teatro do direito” encenado no julgamento de Larry Nassar para que as testemunhas sejam efetivamente ouvidas em suas demandas subjetivas, para que os traumas sociais e coletivos encontrem uma resolução e possam ser de fato elaborados?

Veremos que a atuação da juíza, no caso Larry Nassar, foi o que permitiu que os testemunhos pudessem se inscrever para além de seu efeito de repetição da experiência traumática, possibilitando à testemunha, pela via de uma implicação subjetiva, bordejar o real do trauma. Ao abrir espaço para que as sobreviventes pudessem testemunhar publicamente, o gesto da juíza viabiliza, em nosso entendimento, que o “acontecimento do testemunho” pudesse se inscrever no julgamento, rompendo com a repetição jurídica e com a repetição histórica. Compreendemos o acontecimento como ponto em que se rompe com uma estrutura vigente, instaurando um novo processo discursivo: “o acontecimento inaugura uma nova forma de dizer” (CAMPOS, 2000, p. 17) no espaço enunciativo do tribunal. No “acontecimento do testemunho” no julgamento, as sobreviventes se inscrevem como narradoras de uma violência, inscrevem seus nomes próprios em um registro, no simbólico, de uma condição histórica que maltrata, humilha e mata as mulheres. Os documentários, assim, colocam em circulação o acontecimento do testemunho, na atualização de uma memória.

 

Figura 3 – Testemunho de Rachael Denhollander

Fonte: Atleta A, 2020, 1:27:00.

 

Em seu testemunho no julgamento do médico olímpico Larry Nassar, a ex-ginasta Rachael Denhollander diz (fig. 3):

 

Há dois grandes objetivos no nosso sistema criminal, Meritíssima. A busca por justiça e a proteção de inocentes. Nenhum deles pode ser cumprido se a pena máxima disponível no acordo [de se declarar culpado] não for imposta a Larry por seus crimes. Então eu pergunto: quanta prioridade deve ser dada à comunicação de que o poder máximo da lei será usado para proteger outra criança inocente da devastação incomparável causada pelo assédio sexual? Eu lhes digo, essas crianças merecem tudo. Merecem toda a proteção que a lei pode oferecer. Merecem a sentença máxima. (tradução nossa2).

 

A súplica de Rachael continua e pode ser vista em outro documentário, No coração do ouro: o escândalo da seleção americana de ginástica.

 

Eu peço que você entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós importa. [...] É isso que precisamos aprender. Olhe ao redor do tribunal, lembre-se do que você testemunhou nos últimos sete dias, e que seja um aviso para todos nós. Quando os adultos em cargos de autoridade não respondem adequadamente às revelações de agressão sexual, quando as instituições criam uma cultura em que um predador pode florescer sem medo, é assim que se parece, um tribunal cheio de sobreviventes que carregam feridas profundas. Mulheres e meninas que carregam cicatrizes que nunca se cicatrizarão por completo, mas que se uniram para lutar por si mesmas porque ninguém mais o faria. Mulheres e meninas que fizeram a escolha de colocar a culpa e vergonha na única pessoa a quem pertencem, no agressor. Mas que o horror expresso nesse tribunal nos últimos sete dias, seja motivação para que qualquer um e todos, não importa o contexto, assuma a responsabilidade se erraram em proteger uma criança. Para entender as incríveis falhas que levaram a essa semana. E fazer melhor da próxima vez. Porque tudo é o que essas sobreviventes valem.

 

O emprego das designações (“inocentes”, “outra criança”, “essas crianças”, “sobreviventes”, “mulheres e meninas”) e do pronome (“nós”), nos dizeres de Rachel, constroem discursivamente o lugar da vítima, produzindo para ela sentidos. São crianças inocentes e desprotegidas, “devastadas” pelo assédio, “mulheres e meninas que carregam cicatrizes” e que, assim, necessitam da proteção do Estado e da sociedade, aqui simbolizada pelo veredito, pela pena máxima. O deslizamento entre “mulheres e meninas”, “crianças” e “nós” produz um efeito de coletividade, o que constitui o trauma privado dessas mulheres e meninas em trauma coletivo, produzindo um “nós sobreviventes” que reclama por justiça. A identificação coletiva passa a produzir eco coletivo capaz de mobilizar o drama pessoal de muitas das mulheres presentes no auditório, e tantas outras que acompanharam o desenrolar do julgamento pela internet. Lembrando que o julgamento de Nassar, por ter sido transmitido por streaming3, pôde ser acompanhado na íntegra online, o que significa que os sentidos ali produzidos passaram a circular além do ambiente físico do julgamento e para as pessoas presentes no local.

Como dissemos, o julgamento é uma busca por uma decisão e a súplica de Rachael mostra tal funcionamento ao dizer “entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós importa.” De maneira que somente através de uma sentença máxima o trauma sofrido por essas mulheres pudesse ser reconhecido. Felman sustenta que “a lei é uma força organizadora da significação da história” e que os vereditos são “decisões em torno do que admitir na memória coletiva e do que transmitir da memória coletiva” (2014, p. 117). Será também através do veredito da condenação de Larry Nassar que “a mensagem” será admitida na memória coletiva. Quando Denhollander diz “entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós importa”, sua súplica não é apenas para que o trauma dela e das outras mulheres seja reconhecido e o médico condenado, mas também que um trauma coletivo histórico pudesse ser ressignificado, servindo de mensagem para a sociedade; o abuso não é mais tolerável e nem será velado e silenciado, será condenado e passível de pena.

Apesar de Nassar ter se declarado culpado das acusações de agressões sexuais e, por isso, não enfrentou julgamento, a juíza do caso, Rosemarie Aquilina, determinou que o réu deveria ouvir todas as mulheres que escolhessem depor. De início, foram 88 que declararam a vontade de falar formalmente. Contudo, no decorrer dos dias, mais mulheres se apresentaram e, no final do processo, 156 mulheres depuseram. Assim, foi na falha própria ao jurídico, falha que admitia o silenciamento das vítimas após a declaração de Nassar, que o julgamento irá se mostrar como uma forma de significação das sobreviventes, de seus traumas e de seus lutos, pela possibilidade do testemunho que aí se produziu. Foi na falha do ritual ideológico4 do direito que um gesto de resistência pôde se impor.

Ao se declarar culpado, Nassar busca a interdição dos depoimentos das vítimas e, novamente, seus silenciamentos. Segundo Felman (2014, p. 130) “a confissão deseja conferir ao discurso o mais elevado valor moral e a mais elevada responsabilidade epistemológica: a de acessar a verdade [...]”. Ou seja, ao se declarar culpado das acusações, Nassar tenta impor uma verdade e impossibilitar que outros sentidos pudessem ressoar. A decisão da juíza inscreve uma posição sujeito alinhada àquela das sobreviventes, como mulher em um “nós” coletivo, e produz como efeito uma desestabilização na série de repetições históricas; ela permite que as sobreviventes ocupem um lugar como narradoras da violência e, a partir desse lugar, possam contar suas histórias.

Assim, é justamente aqui que o julgamento de Nassar se diferencia do de O. J. Simpson. Quando Aquilina impõe ao médico que ouça os testemunhos de suas vítimas, ela constrói uma ponte para o que Felman chamou de abismo, “a realidade concreta de uma brecha traumática” (p. 123), “aquilo que não podemos apreender e que não compreendemos” (p. 127). O abismo entre o gênero e o jurídico que não enxerga agressões quando mulheres são vitimadas. A juíza ainda chegou a responder a Nassar em suas reinvindicações5 de que o julgamento seria “um circo midiático” e de que seria muito doloroso para ele ouvir as vítimas por quatro dias, dizendo: “Passar quatro ou cinco dias a ouvi-las é algo menor, em relação às horas de prazer que o senhor teve à custa delas e que lhes arruinou a vida.” A juíza pondera que, independentemente do desconforto do médico e suas reclamações em carta a ela endereçada, o réu tinha a obrigação de ouvir suas vítimas. Em outra fala, agora dirigida a uma das vítimas, a juíza se endereça à dor das sobreviventes – “Deixe a sua dor aqui. Depois saia e faça coisas maravilhosas”.

                                                            

Figura 4 – Testemunho de Jamie Dantzscher

Fonte: Atleta A, 2020, 1:23:35.

 

Jamie Dantzscher, ex-atleta olímpica, diz em seu testemunho “[...] ao invés de proteger as crianças e denunciar as agressões que viu, você usou a sua posição de poder para manipular e agredir também. Você sabia que eu era indefesa. Eu estou aqui hoje, com todas essas mulheres, não vítima, mas sobreviventes, para falar diretamente a você que seus dias de manipulação acabaram. Nós temos uma voz agora. Nós temos o poder agora”. A ex-ginasta ainda diz, no documentário Atleta A, que finalmente se sente orgulhosa ao poder dizer “você não me controla mais” (Fig. 4). Observamos, nesses dizeres, uma tentativa de produzir uma passagem da posição sujeito vítima para a posição sujeito sobrevivente. Na primeira, o sujeito se encontra indefeso e vulnerável aos investimentos do agressor, emudecido pela manipulação e agressões. Já na posição sujeito sobrevivente, o sujeito pode inscrever uma voz que é, sobretudo, uma voz coletiva: “Nós temos voz agora”. Essa voz coletiva diz do alinhamento da testemunha ao trauma de outras mulheres que, como ela, experimentaram a violência e o abuso sexual.

Segundo Felman ([1991] 2000), a especificidade do testemunhar consiste na urgência de fazê-lo e no alinhamento da testemunha com os horrores de outras testemunhas. Além disso, há a designação da testemunha, que no processo judicial pode ocorrer fora desse alinhamento, fora do desejo da testemunha de narrar a sua história. Entretanto, os dizeres de Jamie mostram que ela é designada a prestar testemunho em razão de seu alinhamento com outras sobreviventes; é sob o peso e a responsabilidade dessa solicitação que seu testemunho infringe os limites de um trauma privado, de uma história de dor e solidão, “para falar intercedendo pelos outros e para os outros” (FELMAN, [1991] 2000, p. 16).

 

5. O corpo

Ao analisar o caso do julgamento de Eichmann, Felman observa o incidente que ocorre quando um dos depoentes, K-Zetnik, conhecido escritor que produziu densa literatura sobre Auschwitz, colapsa e entra em coma. Para a autora, o colapso pode ser compreendido como “uma parábola ao colapso da linguagem no encontro entre direito e trauma” e isso revela a “profunda falência das palavras, a importância do corpo da testemunha no tribunal”, que seria “o mais conclusivo local de memória do trauma individual e coletivo” (2014, p. 29). Segundo ela, o trauma torna o corpo relevante no tribunal. Ele participa discursivamente do teatro da justiça, um teatro no qual as palavras não dão conta do trauma e da dor.

Aqui é preciso discordarmos de Felman quando diz que o “trauma é precisamente o que não pode ser visto” (2014, p. 116), porque através do corpo, o trauma se apresenta e é colocado em tela, nos documentários. Lágrimas, sorrisos nervosos, tremores, suspiros, pausas, abraços, soluços: no corpo, a impossibilidade de dizer o trauma todo encontra uma via para se materializar. Tudo isso é o trauma se mostrando através do corpo, podendo ser visto através do corpo enquadrado no documentário.

No epílogo de The scandal of the speaking body: Don Juan with J. L. Austin or seduction in two languages6 de Shoshana Felman (2003), Judith Butler postula que não há ato de fala sem o corpo, não somente pelo corpo representar o meio pelo qual se fala, com seu aparato físico, mas porque “o corpo significa o que não é intencional, o que não é admitido no domínio da ‘intenção’, o desejo primário, o inconsciente e seus objetivos” (p. 119 – tradução nossa, grifos da autora).

Segundo Bocchi (2019, p. 23), Felman irá estabelecer uma articulação entre teoria do ato de fala e psicanálise, “lançando mão da sedução constitutiva da complexa e escandalosa relação entre corpo e linguagem: o ato de fala, enquanto ato de um corpo falante, é sempre desconhecedor daquilo que produz, pois sujeito às determinações inconscientes.” Dessa maneira, a concepção de Felman para se assemelha com a posição da análise de discurso em conceituar o sujeito discursivo como efeito de processos ideológicos e inconscientes. Contudo, nesse momento, nos interessa manter nosso foco no corpo como aquilo produz um dizer para além das palavras, que se coloca quando as palavras já não são suficientes para constituir sentidos.

Butler (2018, p. 11-12) vai sustentar que quando corpos se juntam em espaços públicos, incluindo os virtuais, esses corpos estariam “exercitando um direito plural e performativo de aparecer”, o que a autora considera “um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo político”. Mobilizados nos espaços públicos do tribunal, coletivamente identificados em função de um trauma social e histórico, esses corpos estariam subvertendo “formas induzidas de condição precária”, particularmente referidas às condições das mulheres em uma sociedade em que a violência contra os corpos femininos é estrutural. Na análise da autora, os corpos que se juntam estão em assembleias, manifestações e protestos. Contudo, também no julgamento examinado as sobreviventes se juntam, dando apoio umas às outras para testemunharem e contarem suas histórias. Os corpos se juntam pra denunciar a própria precariedade e reivindicar condições de vida que não se constituam pela violência.

Podemos evocar momentos em que o corpo simboliza o trauma, como no julgamento de Larry Nassar, onde as sobreviventes podem ser vistas chorando, tremendo, perdendo a voz, engasgando. As palavras cessam ou faltam, o corpo toma para si a obrigação de falar. E ele diz com soluços, lágrimas, palavras entrecortadas, vaias, aplausos, ombros encolhidos, suspiros...

Evocamos um primeiro momento em que o corpo fala com dor, pesar, que extravasa o lugar de ouvinte do julgamento e gera movimento, lágrima, palma, vaia (Fig. 6). A advogada de defesa Shannon Smith relata no documentário No coração do ouro: o escândalo da seleção americana de ginástica o clima do julgamento. “Normalmente, não há pessoas aplaudindo. Pessoas vaiando os advogados de defesa. [...] É quase como se esse tipo de explosão fosse inevitável”. A juíza Rosemarie Aquilina também falou a respeito: “Foi muito doloroso. Você podia ver em seus rostos. As pessoas estavam tremendo, chorando... apenas em ver Nassar.”

Essa explosão de que fala Smith lembra a fala de Primo Levi (1947, p. 6), “a necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento [...]”. Essa violência, explosão que sai em forma de vaias, choros e gritos, é o corpo simbolizando tudo aquilo que as palavras não são capazes de expressar.

Mas nem só por meio da dor se expressa o corpo. Em outros momentos, como na figura 7, podemos ver as sobreviventes se abraçando, como que num ato de consolo e congratulação pela força do outro e própria. Um abraço que parece tirar um peso que há anos era carregado. Um abraço de alívio. Um abraço de luta. Um abraço de resistência.

 

Figura 5 – Sobrevivente chorando

Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:03:13.

 

Figura 6 – Angela e Rachael se abraçando.

Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:15:06.

 

Aquilina vai, ao final do testemunho de Rachael, lhe dizer: “Obrigada. Você construiu um exército de sobreviventes e é uma general de cinco estrelas. Você fez tudo isso acontecer. Você fez todas essas vozes importarem.” É muito expressivo que a juíza use uma analogia armamentista para falar do grupo de sobreviventes, uma vez que exércitos são, em sua maioria, compostos por homens e vistos como símbolo de virilidade. Ao atribuir às sobreviventes esse status, Aquilina mostra que a “batalha” foi ganha, elas venceram a luta com seu exército. Coroa Rachael com a mais alta patente do Exército dos EUA, general de 5 estrelas. E isso aparece estampado no rosto de Rachael, que sorri (Fig. 7).

 

Figura 7 –Rachael sorrindo.

Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:14:48.

 

O sorriso da sobrevivente e a fala da juíza percorrem o cômodo e há uma salva de palmas. Os testemunhos terminaram. As vozes das sobreviventes ressoaram.

 

Considerações finais

Neste texto, buscamos ler os documentários Atleta A e No coração do ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, à luz do testemunho e da teoria do trauma. Encontramos, no modo como os testemunhos se inscrevem no julgamento, um acontecimento, o qual procuramos nomear acontecimento do testemunho, o que nos permitiu compreender o jurídico como um espaço de produção de sentidos outros para simbolizar e ressignificar a violência e a dor sofridas pelas atletas sobreviventes das agressões sexuais e assédios do médico Larry Nassar. Na decisão da juíza de acolher a fala de todas as sobreviventes que desejassem falar, localizamos um gesto de resistência que, inscrito na falha do ritual ideológico, possibilitou que o “acontecimento do testemunho” pudesse se inscrever no julgamento, rompendo com a repetição jurídica e com a repetição histórica.

Compreendemos que os documentários colocam, assim, em circulação o acontecimento do testemunho, na atualização de uma memória. Como no julgamento de Eichmann7, guardadas as devidas proporções, observamos que o gesto da juíza transformou traumas privados secretos e silenciados em um trauma coletivo que pôde reverberar sentidos na sociedade, tornando públicos os abusos cometidos contra as meninas e mulheres atletas. Verificamos, também, a importância do corpo da testemunha no tribunal, que seria o mais conclusivo local de memória do trauma individual e coletivo.

Assim, os documentários funcionam de modo a colocar em circulação um discurso sobre o julgamento que ratifica sentidos de denúncia ao assédio e à violência sexual, promovendo uma versão que não silencia frente ao machismo e à misoginia. Eles participam, portanto, de um movimento para admitir na memória coletiva vozes e corpos silenciados. Consentimos com o caráter problemático de uma memória coletiva estruturada com suas hierarquias, divisões e silenciamentos, construída por meio da imposição, da dominação e da violência física e simbólica. Ao destacar os esquecimentos e silenciamentos que uma memória produzida por homens brancos e para homens brancos comporta, os documentários produzem pontos de contato entre os traumas individuais/singulares e os traumas coletivos, possibilitando que o acontecimento do testemunho no teatro do tribunal ressoe socialmente e a memória possa ser reconstruída sobre uma base comum.

Referências

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BOCCHI, Aline Fernandes de Azevedo. O funcionamento discursivo de testemunhos de violência no parto: movimentos de sentido entre o judiciário e o equívoco. In: ZOPPI-FONTANA, Mônica G.; FERRARI, Ana Josefina. (orgs.). Mulheres em discurso: gênero, linguagem e ideologia. Campinas: Pontes Editores, parte 1, texto 3, p. 57-82, 2017a.

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BOCCHI, Aline Fernandes de Azevedo. Posições subjetivas em face da violência: traços constitutivos de memória em testemunhos de mulheres. Fórum linguístico, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 1808-1822, jan./mar. 2017b.

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CARRENHO, Júlia Mendes. EU VOU CONTAR e outras cenas de testemunhos de mulheres: um estudo discursivo entre arquivo, trauma e língua. Orientador: Lauro José Siqueira Baldini. 2019. 189 f. Monografia (Bacharel em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

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FELMAN, Shoshana. O inconsciente Jurídico: julgamentos e traumas do século XX. Tradução de Ariani Bueno Sudatti, prefácio de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: EDIPRO, 2014.

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Data de Recebimento: 06/06/2021
Data de Aprovação: 14/03/2022


1  Para uma análise aprofundada do movimento metoo, ver RUSSI (2021).

2  Algumas traduções foram feitas diretamente dos áudios originais em inglês por não constarem disponíveis legendas em português na data de acesso da escrita deste artigo. Quando foi possível, foram utilizadas as legendas oficiais dos streamings. Entendemos que realizamos essas análises a partir de condições de produção específicas, nas quais as legendas têm relevância na forma como os documentários circulam em outros países, que possuam outras relações com a língua inglesa, o que poderá ser problematizado em um trabalho posterior.

3  Streaming é um tipo de serviço de transmissão de dados via internet que permite que conteúdos sejam transmitidos sem a necessidade de download. Plataformas como Netflix, Spotify e GloboPlay fornecem conteúdos de forma paga ou gratuita, através de uma assinatura, mas plataformas como YouTube também sustentam esse tipo de transmissão e permitem que vários conteúdos possam ser transmitidos. O julgamento de Nassar foi transmitido via streaming pelo site Law and Crime.

4  Pensamos a falha do ritual ideológico a partir de Pêcheux (2009), que estabelece o funcionamento da ideologia e localiza a possibilidade da resistência nas falhas desse ritual.

5  Nassar escreveu uma carta endereçada à juíza após o primeiro dia de procedimentos. A magistrada leu o documento e comentou parte de seu conteúdo no segundo dia. A carta foi lacrada pela justiça para que nenhuma vítima se perguntasse de quem Nassar fala e nem se colocasse como receptora dos ataques do médico, nas palavras da própria Rosemarie Aquilina.

6  Livro ainda sem tradução para o português. Numa tradução livre: O escândalo do corpo falante: Don Juan com J. Austin ou sedução em duas línguas.

7  O tenente-coronel foi sequestrado por agentes do Mossad em 1960 e levado para Jerusalém para julgamento, sendo condenado em 1961 a morte por enforcamento.