Entre verbal e não-verbal: A representação da mulher no discurso do esporte


resumo resumo

Érica Daniela de Araújo
Gabriela Villela Arantes
Milene Bianchi dos Santos
Sérgio Cardoso Barcelos



A linguagem não é, pois, transparente, assim como a história também não o é. Tampouco o sujeito. No entanto, vivemos na ilusão da evidência. Quando produzimos um sentido ele nos parece evidente. Mas não é. Tanto não é que pode significar diferentemente para diferentes posições sujeitos. Eni Orlandi (2011, p. 697).

 

1. Palavras iniciais

Conforme a epígrafe que encabeça este trabalho, de nossa perspectiva teórica, a linguagem não é transparente, já que, em seu funcionamento, coloca em relação sujeito1, língua e história. Assim sendo, a Análise de Discurso nos permite criar um dispositivo de interpretação que, relacionando o dito e o não-dito, no entremeio entre descrição e interpretação, explicite os efeitos de sentidos de variados objetos simbólicos em sua não-transparência. Em outros termos, permite-nos analisar os processos discursivos em sua espessura semântica.

Em vista do exposto, neste artigo, filiados à perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso, propomo-nos analisar a representação da mulher no e pelo discurso do esporte, especificamente, no discurso formulado na mídia jornalística impressa a partir dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021. Para tanto, selecionamos três capas do jornal “O Globo”, a fim de analisar como essa mídia, em seu discurso verbal e não-verbal, representa e significa a mulher. A escolha por esse recorte se deu porque o jornalismo contribui com a produção, a circulação e a consolidação de sentidos sobre “ser mulher” na sociedade brasileira, quer esses discursos estejam engajados nas reinvindicações femininas, quer propagem discursos patriarcalistas. Trata-se, pois, de uma mídia que circula “em meio a uma grande massa heterogênea de sujeitos” e que produz “efeito documental” (ORLANDI, 2012, p. 179). Em vista disso, contribui com a manutenção de alguns efeitos de sentidos ao ser legitimada socialmente como “discurso verdadeiro” e, portanto, reproduz a sociedade, até mesmo, em suas desigualdades. Ademais, conforme Orlandi (1995, p. 41-42),

 

[...] a mídia funciona através da redução do não-verbal ao verbal, produzindo o efeito da transparência, da informação, do estável (ou, pelo menos, do diretamente decodificável). A própria concepção da mídia fica assim afetada pelo efeito de continuidade homogênea do não-verbal ao verbal. A complexidade do conjunto de signos de distintas naturezas se reduz a um processo de interpretação uniforme. Tudo se interpreta do mesmo jeito. É o efeito literal se reproduzindo em cadeia contínua em todas as linguagens.

 

Esse “efeito literal” é fruto da relação “instrumentalizada” do falante com a mídia, na qual “o verbal ocupa, como a ilusão do discurso cotidiano, o lugar do neutro, do natural, do universal. O centro de que derivam os outros” (ORLANDI, 1995, p. 45). Contudo, esse lugar é pura ilusão, efeito. Não há “lugar do neutro, do natural, do universal”, mesmo quando a mídia diz ser “imparcial”. Isso ocorre porque

 

[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem (PÊCHEUX, 2014 [1975], p. 146-147. Grifo itálico do autor).

 

De outro modo, os sentidos se constituem tendo em vista as posições assumidas pelos sujeitos no discurso, as quais são determinadas sócio-histórica e ideologicamente. Assim sendo, os sentidos não estão contidos nas palavras ou expressões, mas são resultado da relação língua-sujeito-história. Em outras palavras, “o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam” (ORLANDI, 2005, p. 42-43).

Por consequência, não há sentido único; o sentido se constrói a partir das relações possíveis de serem estabelecidas pelos sujeitos em uma determinada conjuntura sócio-histórica (cf. STEFANIU; RAIMO, 2016, p. 28). É, por isso, que “todo enunciado é suscetível de tornar-se outro, de se deslocar discursivamente” (PÊCHEUX, 2008, p. 53), já que “o sujeito é afetado pela ideologia, pelo efeito de literalidade, pela ilusão de conteúdo, pela construção da evidência do sentido, pela impressão do sentido lá” (ORLANDI, 2004, p. 22). Dessa forma, nosso gesto de leitura é, de fato, uma “intervenção no real do sentido” (ORLANDI, 2004, p. 21-22), dado que possibilita a filiação, a depender da posição-sujeito em jogo, a determinados efeitos de sentidos e não a outros. Assim sendo, no batimento teoria-método-análise, o analista de discurso, sensível às relações de sentido, lança mão da paráfrase e da polissemia como procedimentos privilegiados de análise, relacionando o que é estabilizado - reiteração do mesmo, o real da língua -, e o que é sujeito ao equívoco - ao deslizamento de sentido, o real da história.

Dito isso, em nossa análise, conforme Orlandi (2012), foram considerados três mo(vi)mentos essenciais, a saber:

i) a constituição – que concerne ao interdiscurso, à memória do dizer; “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 2005, p. 31). É na e por essa medida que “todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos” (ORLANDI, 2005, p. 33). Conforme Orlandi (2012, p. 180), “trata-se do que foi e é dito a respeito de um assunto qualquer, mas que, ao longo do uso já esquecemos como foi dito, por quem e em que circunstâncias e que fica como um já-dito sobre o qual nossos sentidos se constroem”;

ii) a formulação – refere-se à materialidade da língua, ao intradiscurso; “momento em que o sujeito diz o que diz. Em que se assume autor. [...] Se faz materialmente pela colocação do discurso em texto, pela textualização” (ORLANDI, 2012, p. 10-11). As formulações “se caracterizam como agenciamentos específicos pelos quais o acontecimento do dizer mobiliza a língua em textualidades particulares” (GUIMARÃES, 2004, p. 16-17).

iii) a circulação – diz respeito ao lugar no qual o discurso se mostra, se apresenta. Esse lugar não é indiferente aos sentidos, dado que “os ‘meios’ nunca são neutros” (ORLANDI, 2012, p. 11-12). Essa contextualização nos é importante para compreendermos a partir de quais posições político-ideológicas a mídia representa a mulher.

Assim sendo, buscamos compreender como a mulher é significada no e pelo discurso esportivo, analisando a relação entre linguagem verbal e não-verbal na constituição dos diferentes efeitos de sentidos. Essa relação, que a mídia lança mão em seus processos de significação a fim de direcionar sentidos, não constitui, pois, uma relação de complementariedade. Como bem assinalou Lagazzi (2012), trata-se de uma imbricação de diferentes materialidades que se entrelaçam na contradição. Nas palavras da autora:

 

quando falo de imbricação material não se trata de complementaridade, que não se trata de termos materialidades significantes que se complementam, mas sim materialidades significantes em composição, que se entrelaçam na contradição, “cada uma fazendo trabalhar a incompletude na outra”. Esta formulação me parece consequente e imprime movimento à imbricação. Imbricar pode ser compreendido, então, como compor no movimento da incompletude e da contradição. Uma materialidade significante remete a outra e a falha que as estrutura demanda rearranjos, assim como a não-saturação que constitui a interpretação permite que novos sentidos sejam reclamados. Nesse movimento da incompletude e da contradição, considerar as especificidades de cada materialidade fica como outro desafio a ser enfrentado (LAGAZZI, 2012, p. 1).

 

Dito isso, buscamos, assim, expor o olhar leitor a essa opacidade dessa imbricação material, de tal modo a “escutar” o não-dito no dito (ORLANDI, 2012). Sendo assim, procuramos responder, por meio da análise do funcionamento do discurso da e na mídia impressa, especificamente no que concerne às capas selecionadas, a seguinte questão: o que, a partir da relação entre linguagem verbal e não-verbal, essas capas nos dão a ler?

 

2. As mulheres nos Jogos Olímpicos: um histórico de pouca inclusão

Historicamente, os jogos olímpicos originaram na cidade de Olímpia, na Grécia, por volta de 776 a.C. Nessa época, os festivais esportivos visavam homenagear Zeus. Após a dominação romana da Grécia, em 392 a.C., os jogos foram considerados cultos pagãos, sendo interrompidos. Somente em janeiro de 1896, o francês Barão Pierre de Coubertin organizou a primeira edição dos jogos na Era Moderna, em Atenas, na Grécia. Desde então, os jogos são realizados a cada 4 anos, representando um momento histórico para atletas e nações.

Na Grécia Antiga, somente homens livres e nascidos na Grécia podiam participar dos jogos. A participação de mulheres era totalmente proibida. Na Era Moderna, na edição de 1896, nenhuma mulher participou. Segundo Pierre de Coubertin,

 

O verdadeiro herói olímpico é, a meu ver, o homem adulto. (...) Não aprovo a participação das mulheres em competições públicas. Isto não significa que elas devam se abster de praticar esportes, mas não devem dar espetáculo. Nos jogos olímpicos seu papel deveria ser sobretudo, como nos antigos torneios, o de coroar os vencedores. (COUBERTIN apud CARDOSO, 2000, p. 30. Grifos nossos).

 

Acresce-se a isso, o seguinte dizer do idealizador dos jogos modernos:

 

O problema dos esportes femininos complica-se com a paixão e expressões exageradas que neles põe a campanha feminista. Os dirigentes desta campanha pretendem simplesmente a anexação de tudo o que até agora era do domínio próprio do homem; d’ahi a tendência da mulher querer mostrar-se capaz de igualar o homem em todas as actividades. [...] technicamente as jogadoras de futebol ou as pugilistas que se tentou exibir aqui e ali não apresentam interesse algum; serão sempre imitações imperfeitas. Nada se aprende vendo-as agir; e assim os que se reúnem para vê-las obedecem a preocupações de outra espécie. E por isso trabalham para a corrupção do esporte, aliás, para o levantamento da moral geral. Se os esportes femininos forem cuidadosamente expurgados do elemento espetáculo, não há razão alguma para condená-los. Ver-se-á, então, o que deles resulta. Talvez as mulheres compreenderão logo que essa tentativa não é proveitosa nem para seu encanto nem mesmo para sua saúde. De outro lado, entretanto, não deixa de ser interessante que a mulher possa tomar parte, em proporção bem grande, nos prazeres esportivos do seu marido e que a mãe possa dirigir inteligentemente a educação física dos seus filhos. (COUBERTIN, 1938, p. 46. Grifos nossos).

 

Nas citações acima, verifica-se, nos dizeres de Coubertin, muito do preconceito social ainda existente com relação à participação das mulheres em várias modalidades desportivas. Esse estereótipo de que o esporte é “domínio masculino” e que a mulher, ao praticar uma modalidade, busca “igualar-se aos homens” permanece ressoando em diversas esferas sociais, como na mídia esportiva. Embora existisse essa prerrogativa sexista de Coubertin, na edição de 1900, em Paris, 22 mulheres representaram 2,2% dos atletas. Em 2012, as mulheres puderam competir em todas as modalidades e, somente em 2021, as mulheres passaram a representar 48,8% dos atletas.

Entre as brasileiras, a primeira a competir em Jogos Olímpicos foi a nadadora Maria Lenk, 1932. Em 1936, já acompanhada de outras brasileiras, Lenk foi a primeira mulher a usar o nado borboleta. Em 1941, em vista do artigo 54, do Decreto Lei 3.199, de Getúlio Vargas, as mulheres foram proibidas de praticar esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”2. Em 1965, na Ditadura Militar, esse artigo foi reeditado, incluindo novas modalidades desportivas. Contudo, não foi “permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, rugby, halterofilismo e baseball” para mulheres. O fim das restrições às mulheres só ocorreu em 1979.

Conquanto Maria Lenk tenha obtido muitas conquistas, a primeira medalha de ouro feminina foi obtida em Atlanta, em 1996, por Sandra Pires e Jaqueline Silva, no vôlei de praia. Nesse mesmo ano, Adriana Samuel e Mônica Rodrigues conquistaram a prata no vôlei de praia; a seleção feminina de basquetebol conquistou a prata e a seleção feminina de voleibol o bronze. Em esportes individuais, somente nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, é que o Brasil obteve um ouro com a saltadora Maurren Maggi.

De lá para cá, a cada nova edição, as brasileiras (re)escrevem a história da mulher no esporte; história essa marcada por muita luta, a qual, em certo sentido, comunga com a luta feminina em outras instâncias sociais no Brasil, como pelo direito ao voto, em 1932. Vejam: essa busca por igualdade, tanto no âmbito social geral quanto no âmbito do esporte, embora já se manifestasse, ainda é recente, deixando (re)velar, na mídia impressa, por exemplo, sentidos históricos e sociais do que é “ser mulher”.

 

3. Mo(vi)mentos de análise

O jornal “O Globo” foi lançado em 29 de julho de 1925, por Irineu Marinho. Desde então, permanece em circulação diária em todo o país, sendo hoje, em sua versão digital, uma das mídias impressas e digitais mais lidas no Brasil. Por ser assim, constitui um veículo que circula em meio heterogêneo, gerando efeito documental aos discursos propagados. Contudo, conforme salientado, não se trata de um meio neutro, isento de posicionamentos político-ideológicos.

Ao longo dos Jogos Olímpicos de Tóquio, o jornal “O Globo” estampou várias capas noticiando os feitos dos atletas brasileiros, os quais foram divulgados nos “Cadernos Especiais Tóquio 2021”. Essas capas possuíram, mais ou menos, um padrão: (i) uma foto do evento; (ii) “Tóquio 2021” escrito em vermelho, branco e amarelo; (iii) uma legenda da imagem (ora abaixo da imagem, ora em destaque junto à foto); (iv) em alguns casos, figurou a manchete e a linha fina da notícia junto à fotografia; e (v) uma apreciação, em amarelo ou em branco ou em azul, sobre o fato. Veja, abaixo, um exemplo, retirado do jornal do dia 7 de agosto de 2021.

 

Figura 1: Capa do jornal “O Globo” de 7 de agosto de 2021.

 

No que concerne ao discurso esportivo, nosso foco de análise, a figura 1 é constituída por uma fotografia de Isaquias Queiroz ao cruzar a linha de chegada em primeiro lugar. Abaixo da foto, há a formulação de uma legenda, a qual determina as condições de produção da fotografia: “Isaquias Queiroz vibra ao cruzar a linha de chegada em primeiro lugar. Ele assumiu a ponta na prova e manteve o ritmo de remadas até o fim”. Há ainda a formulação “Vantagem”, em destaque negrito, junto à legenda. Como apreciação do fato, aparece formulado o adjetivo “impecável”.

No que tange à linguagem verbal, chama-nos a atenção o adjetivo “impecável”, o qual significa, conforme o dicionário Michaelis: (i) que não está sujeito a pecar; (ii) imaculável; (iii) que está em perfeito estado; (iv) caprichado, esmerado, primoroso. Observe: na relação entre essa formulação verbal “impecável” e a fotografia, há polissemia, isto é, deslocamentos de sentidos, na medida em que abre possibilidades outras de significância: (1) “impecável” é a imagem de Isaquias Queiroz?; (ii) “impecável” é a atuação do atleta no evento?; (iii) “impecável” é a “vantagem” obtida?; (iv) “impecável” é o “ritmo de remadas até o fim”? A quê se refere a formulação?

A relação entre verbal e não-verbal na capa acima é estabelecida a partir do jogo paráfrase-polissemia, entre dito e não-dito, o qual trabalha a opacidade da linguagem e a sua não transparência. Logo, não há sentido único: “impecável” pode se referir ou à imagem, ou à atuação, ou à vantagem, ou ao ritmo de Isaquias. O sentido se constrói a partir das relações estabelecidas pelos sujeitos em determinadas conjunturas sócio-históricas. Ao mobilizar o adjetivo “impecável” para qualificar ou a imagem, ou a atuação, ou a vantagem, ou o ritmo de Isaquias, a figura masculina do atleta é alçada a uma apreciação positiva, a qual, mesmo passível de equivocidade, dialoga com as discursividades do período greco-antigo, em que o corpo masculino era exaltado por sua perfeição. Corpo esse em destaque na fotografia. Na antiguidade, os Jogos Olímpicos, restritos aos homens, era um ambiente de honras e conquistas (COUBERTIN, 1938), em que se exaltava a perfeição, modelo a partir do qual limitou a participação feminina, haja vista a subjugação e a estigmatização (im)postas socialmente.

Esse exemplo contribui tanto para circunstanciarmos o fato analisado, quando para servir de comparativo às capas em que mulheres são discursivizadas por essa mídia. Vamos a elas:

 

Figura 2: Capa do jornal “O Globo” de 30 de julho de 2021.

 

Na figura 2, há uma fotografia de Rebeca Andrade durante a prova de ginástica olímpica na trave. Ao lado da imagem, há a formulação da manchete “Uma prata mais que simbólica”. Abaixo da manchete, há a formulação da linha fina da notícia: “Criada na periferia de Guarulhos por mãe solo, Rebeca Andrade ganhou na prova mais completa da ginástica a primeira medalha de uma brasileira no esporte e disse representar suas antecessoras nos Jogos”. Do lado esquerdo da imagem, há a formulação da legenda, que circunstancia as condições de produção da foto: “Rebeca voa na trave. Ela ainda tem mais duas finais”. Antes da legenda, há a formulação, em destaque negrito, do comentário: “Consagração”. Ao lado, em amarelo, há a formulação de apreciação do fato: “iluminada”.

A formulação “consagração”, em destaque antes da legenda, pode significar, entre outros sentidos: (i) tornar sagrado; (ii) dedicação; (iii) validação, convalidação, ato ou processo de legitimar algo. Logo, é possível ler que a “consagração” de Receba com a medalha de prata se deve: (i) a algo vindo do sobrenatural; (ii) à sua dedicação; (iii) à sua validação da sua atuação.

Em “uma prata mais que simbólica”, a expressão “mais que” estabelece entre os substantivos “prata” e “simbólica” um comparativo de superioridade, em que a “prata” tem uma qualidade superior àquilo que ela representa. Para “justificar” essa comparação, aparece, na linha fina da notícia da notícia, a formulação: “criada na periferia de Guarulhos por mãe solo”. O jogo semântico estabelecido entre as duas formulações, em certa medida, “justifica” a “prata”, que é aí entendida como “mais que simbólica”. Em outros termos, em decorrência de sua situação de vida, “criada na periferia de Guarulhos por mãe solo”, a prata se justifica como “mais que simbólica”.

Por sua vez, o adjetivo “iluminada”, que acompanha de modo apreciativo a fotografia, pode significar: (i) que recebe ou recebeu luz; (ii) aquele detentor de muito saber; (iii) provido de muita inspiração e luz divina; (iv) vidente. Trata-se, novamente, de uma formulação que trabalha o equívoco: (i) é iluminada a imagem de Rebeca?; (ii) é “iluminada” é a atuação da atleta?; (iii) “iluminada” é a “consagração” obtida?; (iv) “iluminado” é o “voo na trave”? A quê se refere a formulação? Embora, pela relação imediatista com a linguagem, a tendência seja ler nesse adjetivo uma qualificação positiva, a equivocidade que aí se estabelece possibilita leituras não positivas, as quais comungam, em certa medida, com “a prata mais que simbólica”.

Essa formulação, quando lida junto à fotografia, em que feixes de luz são colocados em evidência junto à atleta, possibilita ler que “iluminada” não é Rebeca, é algo externo ao feminino, mas que propiciou a “prata mais que simbólica”. Por ser mulher, negra, “criada na periferia de Guarulhos”, “filha de mãe solo”, Rebeca vencer é um ato “iluminado”, “provido de inspiração”; uma atuação que “recebeu luz divina”, que é “mais que” representativo. Veja: os feitos femininos são historicamente discursivizados como algo além do humano.

 

Figura 3: Capa do jornal “O Globo” de 3 de agosto de 2021.

 

Na figura 3, há uma fotografia de Kahena Kunze e Martine Grael ao comemorarem o ouro olímpico em iatismo. Ao lado da imagem, há a formulação da seguinte legenda, a qual determina as condições de produção da fotografia: “Kahena e Martine comemoram a vitória na Baía de Enoshima, em Tóquio”. Antes dessa legenda, há o comentário: “É festa”, em destaque negrito. Acima, há a manchete da notícia “Bicampeãs na vela” e a linha fina da notícia “Kahena Kunze e Martine Grael conquistaram o ouro na classe 49erFX e tornaram-se bicampeãs olímpicas no iatismo”. Como apreciação do fato, aparece a formulação em amarelo “vento a favor”.

“Vento a favor” constitui um sintagma que, de certa forma, estabelece, relação de sentido com o esporte iatismo. Contudo, joga com sentidos outros. Esse sintagma, “vento a favor”, pode significar: (i) navegar sob condições de vento favoráveis; (ii) ir muito bem em alguma coisa; (iii) sem obstáculo e (iv) com felicidade. Assim sendo, podemos compreender, entre outros sentidos possíveis, que:

i) na navegação empreendida por Kunze e Grael, os ventos, de fato, estavam na mesma direção do trajeto percorrido;

ii) Kunze e Grael foram muito bem na competição;

iii) a vitória veio sem obstáculo algum;

iv) a competição terminou em felicidade.

Embora a leitura (i) seja possível a partir do enunciado, o iatismo constitui um esporte que se lida, constantemente, com alterações dos ventos e das marés, o que não foi diferente no dia da competição dessas atletas, tanto é que o evento deveria ter ocorrido no dia anterior, o que não aconteceu tendo em vista a ausência de ventos. O mesmo ocorre com relação à leitura (iii), conquanto tal leitura seja possível, isso de fato de não ocorreu, já que as atletas não ocupavam a primeira posição entre as competidoras e ainda lidaram com os obstáculos próprios do esporte.

Na fotografia, há Kahena Kunze e Martine Grael, com o uniforme brasileiro e a bandeira do país, sorrindo e comemorando. O não-verbal, permite, entre outras leituras, que a competição terminou em felicidade, leitura (iv) em vista dos “ventos a favor”. Nessa medida, a formulação “irem bem na competição”, leitura (ii), dialoga com “Bicampeãs” e com “conquistaram o ouro”. Por fim, a “competição terminar em felicidade” relaciona-se com as formulações “É festa” e “comemoraram a vitória”.

No entanto, relacionando o verbal e o não-verbal, outras leituras são possíveis, entre elas, que, por serem mulheres, só ganharam porque foram beneficiadas por circunstâncias favoráveis, sem obstáculo. Há, no dito, o não-dito que significa, o qual, quando lido a partir de uma determinada posição-sujeito, deixa entrever sentidos outros, entre os quais menospreza a posição assumida pelas atletas, atribuindo o feito a condições externas, e não às capacidades femininas. Observe: o equívoco possibilita rupturas no fio discursivo, ele:

 

[...] se manifesta, vem à tona e ganha corpo e significação. O modo de materializar-se pode ser pelo viés da falta, do excesso, do repetido, do parecido, do absurdo, do non sense, e por aí se estendem as possibilidades. O que há de comum em todas elas é a ruptura do fio discursivo e o impacto efetivo na condição de fazer e desfazer sentidos. Isso acontece porque a língua é um sistema sintático intrinsecamente passível de jogo. E dentro desse espaço de jogo, as marcas significantes da língua são capazes de deslocamentos, de transgressões, de rearranjos. É isso que faz com que um determinado segmento possa ser ele mesmo ou outro, através da metáfora, da homofonia, da homonímia, dos lapsos de língua, dos deslizamentos sêmicos, enfim, dos jogos de palavras e da dupla interpretação de efeitos discursivos. (FERREIRA, 2000, p. 108).

 

No caso em análise, relacionando verbal e não-verbal, o equívoco se manifesta, possibilitando deslocamentos e provocando variados efeitos de sentidos. As brasileiras são significadas como campeãs porque contaram com o “vento a favor”. Esse dito coloca em relação não-ditos que significam a vitória como decorrente do externo, e não do feminino.

 

Figura 4: Capa do jornal “O Globo” de 4 de agosto de 2021.

 

Na figura 4, há uma fotografia de Ana Marcela durante a competição de maratona aquática nos Jogos Olímpicos de 2021. Ao lado da imagem, há a formulação da manchete “A um pódio do recorde”. Abaixo da imagem, há a formulação da legenda: “Depois de quase duas horas de prova, Ana Marcela ganhou o ouro, a única premiação que faltava à nadadora, que tem 11 medalhas em Mundiais”. Essa legenda situa as condições de produção da fotografia. Antes dessa legenda, há o comentário: “Braçadas para a vitória”, em destaque negrito. Como apreciação do fato, aparece a formulação em branco “apetite”.

Na fotografia, há Ana Marcela nadando, dando braçadas na água, no dia em que foi premiada nos Jogos. O não-verbal da fotografia relaciona-se com a formulação “Braçadas para a vitória” presente, em negrito, antes da legenda da imagem. Embora essa relação se dê, não há repasse do verbal pelo não-verbal. Dissociando verbal e não-verbal, outras muitas legendas seriam possíveis, outros muitos sentidos também. A significância do não-verbal “guiada” pelo verbal, muito típica da mídia, busca produzir um efeito de evidência entre essas linguagens.

Ao lado esquerdo da imagem, aparece a formulação “apetite”, substantivo masculino, que pode significar, segundo o dicionário Michaelis: (i) vontade ou desejo de comer, fome; (ii) estado de espírito favorável à ação, ânimo, disposição, interesse; (iii) desejo de ter ou conseguir alguma coisa; (iv) gosto ou preferência especial, predileção; (v) desejo sexual intenso. Trata-se, novamente, de uma formulação que trabalha o equívoco. Quais sentidos “apetite” pode contrair nesse discurso?

i) Ana Marcela teve “desejo de comer algo” depois de quase duas horas de prova?

ii) Ana Marcela teve “ânimo” e “disposição” durante a competição de quase duas horas?

iii) Ana Marcela teve “desejo” de conseguir a vitória, após quase duas horas de prova?

iv) Ana Marcela teve “predileção” pela maratona aquática de quase duas horas?

v) Ana Marcela teve “desejo sexual” durante a competição de quase duas horas?

O enunciado “apetite” está aberto ao equívoco, a diferentes sentidos que, a depender a posição-sujeito assumida, tenderá para uma leitura específica, o que não significa que as demais deixem de existir.

Na formulação da manchete, “A um pódio do recorde”, há uma elipse: quem está a um pódio do recorde? Ana Marcela? Os atletas brasileiros? As atletas brasileiras? Os competidores da maratona aquática? Há, nessa formulação, uma elipse que instaura um silêncio; um não-dito que significa. A quê se deve essa equivocidade presente na capa do jornal? Ana Marcela, baiana, lésbica, foi a oitava mulher medalhista nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Esse “a um pódio do recorde” referia-se, indiretamente, às atletas brasileiras, às mulheres, que, com a medalha conquistada por Ana Marcela, estavam próximas de superar o quantitativo de medalhas obtidas por brasileiras em Pequim. Contudo, a formulação interdita esse sentido, silencia esse fato, joga-o para o não-dito, que também significa e faz parte do dito.

 

4. Considerações finais

 

“a dispersão dos sentidos e do sujeito é condição de existência do discurso [...], mas para que funcione ele toma aparência de unidade. Essa ilusão de unidade é efeito do ideológico, é construção necessária do imaginário discursivo”. Eni Orlandi (2007, p. 19).

 

Ao longo deste trabalho, buscamos analisar, em algumas capas do jornal “O Globo”, a partir da relação verbal e não-verbal, a representação da mulher pela mídia esportiva. Nossa análise, contemplamos três processos: a circulação, a constituição e a formulação. No que concerne à circulação, o jornal “O Globo” constitui um veículo de impressa que circula nacionalmente e internacionalmente. O lugar de circulação desses discursos não é neutro, é um meio político-ideológico que circula e “estabiliza” sentidos na sociedade. No que tange à constituição, a memória do dizer que torna possível dizer, ela determina a possibilidade de formular qualquer discurso, projetando-nos na perspectiva do dizível. Conforme Orlandi (2012, p. 181), “não inventamos palavras, elas são socio-historicamente determinadas. Mas temos a ilusão de que os sentidos nascem em nós”. Essa ilusão de origem do dizer e de sentidos únicos possibilitam elaborar formulações como as analisadas. No que se refere à formulação, a materialização dos sentidos, voltamo-nos aos enunciados verbais que acompanham o não-verbal nas capas. Por meio dessas formulações, foi possível analisar as equivocidades entre o dito e o não-dito.

Em nossas análises, a legenda que acompanha a fotografia tentar dar legibilidade ao não-verbal ao circunscrever as condições de produção da imagem. Nas palavras de Orlandi (1995, p. 43), “tem-se o suporte verbal disponível – produzido pela ideologia do discurso social já estabilizado – e reduz-se qualquer processo de significação produzido pelas outras linguagens a este processo”. Essa “redução” do não-verbal ao verbal, como se fosse reflexo um do outro, é apenas uma “ilusão” do funcionamento da linguagem, a qual o analista procura compreender. Ao longo das capas, as fotografias das mulheres tentam “espelhar”, de modo bastante ilusório, os dizeres verbais, produzindo um efeito ideológico de evidência, o qual silencia outras posições discursivas. Contudo, se destituíssemos as fotografias dos dizeres produzidos pela mídia, outros seriam produzidos e significados a partir de filiações de sentidos outras que produziram, tal qual, efeito de evidência. Assim sendo, “há uma ideologia da comunicação social que faz com que se use a mídia verbalmente, isto é, de modo a que as outras linguagens que constituem a mídia não funcionem sem o verbal. Para nós, não é assim. Isto é um efeito” (ORLANDI, 1995, p. 42).

Embora tenhamos constatado, na mídia analisada, certo destaque para as mulheres no discurso esportivo (ao figurarem nas capas, por exemplo), ao analisarmos a relação verbal e não-verbal, verificamos a (re)produção de estereótipos de gênero que significam a conquista feminina como decorrente de fatores externos. Comparando as capas em que as brasileiras apareceram com a capa em que Isaquias Queiroz figurou, observa-se uma distinta direção significativa do dizer: não é preciso falar da vida de Isaquias para justificar o feito masculino; ele, atuação dele etc. são “impecáveis”. O masculino novamente é alçado a contemplação como nos jogos da Grécia antiga. Já quando se discursiviza o feito feminino, fatores externos interessam e justificam a conquista. De nossa perspectiva, esse fato reforça a necessidade de enfrentamento das desigualdades em variadas esferas sociais, como na mídia esportiva.

 

Referências

CARDOSO, M. Os arquivos das olimpíadas. São Paulo: Panda Books, 2000.

COUBERTIN, P. As Mulheres e os Esportes. In.: Revista Educação Physica, v. 21. Rio de Janeiro, 1938, p. 60.

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Data de Recebimento: 01/09/2021
Data de Aprovação: 04/05/2022


1  “Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição”. (ORLANDI, 2012, p. 40).

2  Sobre isso, conforme Miragaya, “o esporte sempre foi um construto masculino do qual muito raramente as mulheres fizeram parte. Além disso, crenças tradicionais sempre prescreveram que o cansaço físico e a competição eram contrários à natureza da mulher. Acreditava-se que o lugar da mulher era dentro de casa, num muito interior e particular, tomando conta do lar e dos filhos e que o lugar do homem era fora de casa, no mundo externo e público, trabalhando para o sustento da família”. (MIRAGAYA, 2002, p. 794).