A cidade fragmento: fotolivro Paranoia (1963)


resumo resumo

Ana Luiza Rodrigues Gambardella
Paulo César Castral



O objeto abordado neste estudo é o fotolivro Paranoia que é constituído na junção de poesias de Roberto Piva (1937-2010) e fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee (1931-2010); no contato com o livro percebe-se a vivacidade do espaço urbano enquanto personagem, tema e lugar na construção de uma imagem complexa da cidade. O presente artigo1 objetiva um olhar atento sobre os processos significantes na possibilidade de constituição de uma imagem particular e sensível de cidade na fruição do fotolivro Paranoia, por meio da análise do conjunto fotografia e texto de uma de suas poesias, a Visão de São Paulo à noite, Poema Antropófago sob Narcótico.

Paranoia, publicado em 19632 pela editora Massao Ohno, é o livro de estreia de Roberto Piva como poeta, o qual expande o convite a Wesley Duke Lee. Composto por vinte poemas e setenta e seis fotografias, apresenta uma disposição uniforme entre texto e imagem fotográfica no entrelaçamento dos seus pares de páginas e constrói um ritmo de leitura através destas conexões. O projeto consistia em percorrer a São Paulo da vivência do poeta e assim, conjuntamente com o fotógrafo, construir uma narrativa visual e poética do espaço.

 

(Wesley Duke Lee) Passou sete meses percorrendo ruas, praças, becos, parques de diversão e o mundo homossexual de São Paulo em companhia do poeta, à procura de imagens. O que tentava encontrar era a imagem de um grito de Piva, a expressão visual do desespero do poeta com quem mergulhou no mundo-tabu da pederastia, aspecto da sexualidade que nunca havia enfrentado, mas que sempre o assustava. (COSTA, 2005, p.57-58)

 

Na tentativa de uma conversa profícua entre os dois suportes da representação do espaço urbano, a busca de Wesley Duke Lee pela expressividade poética de Piva, por meio das imagens, fica visível na medida em que o contato com o livro nos situa em uma perspectiva da experiência dos artistas na cidade. Uma perspectiva particular do caminhar pelo espaço que tem como resultado o objeto fotolivro no encadeamento entre poesia e imagem fotográfica.

O fotolivro Paranoia está localizado dentro de uma produção poética surrealista no Brasil, seu autor é um dos fundadores do Grupo Surrealista de São Paulo em 1963 juntamente com Claudio Willer e João da Rocha. A obra é citada como o primeiro livro de poesia delirante do país pela edição nº08 da revista La Breche, dirigida por André Breton e publicada pela Terrain Vague (WILLER, 2014).

 

Paranoia é o primeiro livro de poesia delirante publicado em português. Piva, com sua formação intelectual, é profundamente marcado pela cultura italiana assumiu sua inspiração pelos grandes clássicos da decadência, onde a exuberância da imagem é própria dos povos latinos. Freud e Lautréamont tinha grande importância para ele. Enfim, a mais moderna literatura dos beats norte-americanos transmitiu a ele a fascinação por neons e a alucinação da metrópole metálica evocadas pelas fotografias de São Paulo inseridas no livro.3 (XXX, 1965, p.125, tradução própria. in: WILLER, 2014)

 

A abordagem da produção dentro do campo Surrealista abre a possibilidade de leitura por meio de suas particularidades estéticas e da sua estrutura de representação. O caminhar pela cidade enquanto ato estético na deambulação surrealista aparece como um elemento de grande importância no livro, sugerindo um mergulho no espaço urbano experienciado pelos artistas e colocando o leitor frente a frente à uma cidade historicamente localizada dentro de um contexto próprio: o centro urbano dos anos 1960, metrópole múltipla e abrigo dos mais complexos devaneios e desejos.

Fotografia e palavra sobrepõem camadas de leitura, formando discursos e modificando constantemente seus significados. A junção das representações verbais e imagéticas invoca interdependência para a construção do conjunto da obra.

 

Trata-se não de uma obra em que o conteúdo textual e o conteúdo fotográfico se complementam, mas de conteúdos autônomos os quais se entrelaçam para consubstanciar o conjunto da obra. Entre ambos os conteúdos, como também, entre eles e a própria capital paulista, não há nem síntese, nem ilustração, nem tradução; tão só uma interlocução dialógica de aspecto permutativo alçando comutações entre signos verbais e signos plásticos. Estes, por sua vez, então configuram o díptico movimento dos dois corpos autorais, os quais puseram em primeiro plano outros corpos imersos na paisagem urbana real que atravessaram. (SILVA, 2016, p. 71)

 

A abertura do caminho para uma leitura do espaço urbano instituída pelos artistas será aqui analisada a partir dos conceitos de construção do signo surrealista e em particular na questão do acaso objetivo, abordado por Claudio Willer enquanto potência estruturante da escrita criativa. Sob essa perspectiva, pretende-se compreender qual é a condição estética colocada pelos artistas para o leitor da obra.

 

Representação e surrealismo

As qualidades do signo têm um papel fundamental no debate acerca do movimento surrealista. A diversidade na produção, resultante de múltiplos fatores, desloca o debate das questões relativas à forma para a abordagem dos processos significantes das obras. Sobre a construção deste signo, Krauss (2014) destaca as análises de William Rubin acerca das representações dentro do surrealismo, onde apresenta duas vertentes importantes para o grupo:

 

[...] o projeto surrealista tem dois pólos de atração: o automatismo abstrato por uma parte; o academicismo ilusionista por outra parte, esses dois pólos correspondem “aos dois pilares freudianos da teoria surrealista, quer dizer o automatismo (a associação livre) e o sonho”. (KRAUSS, 2014, p. 109)

 

Poderíamos dizer, visto pela perspectiva da construção do signo surrealista, que sua unidade se dá pelo entendimento do mundo enquanto representação, de modo que não haja uma dissociação clara entre mundo material, psíquico e representacional.

 

Eu gostaria de acrescentar, embora não tenha espaço para me estender sobre o assunto aqui, que o que une toda a produção surrealista é precisamente esta percepção da natureza como representação, da matéria como escrita. Obviamente não se trata aqui de coerência morfológica e sim semiológica. (KRAUSS, 2014, p. 122)

 

Essa relação é exemplificada por Krauss (2014) ao analisar o capítulo Tournessol de L’amour Fou, livro de André Breton publicado em 1937. Segundo a autora, esse capítulo está desenvolvido em níveis diferentes de fatos temporal e espacial. Breton narra um acontecimento da noite de 29 de maio de 1934, no qual o autor encontra uma mulher e a segue pelas ruas, em uma deambulação mediada por esse encontro. A deambulação ocorre pelas ruas de Paris, centrando-se na figura da Torre Saint-Jaques, “que desempenha o papel de uma espécie de cerne do relato, nos planos psicológico, espacial e temporal conjuntamente.” (KRAUSS, 2014, p.147); o encontro fortuito de Breton com a torre desempenha o papel de elemento condutor a um evento ocorrido em 1923 e desencadeia uma série de memórias, entre elas trechos de poemas escritos dez anos antes do acontecimento.

Ao analisar esse trecho específico do livro, Krauss pretende associar a ideia de “porta giratória” – utilizada por Walter Benjamin4 –, em uma analogia referente a um instrumento que quebra com a relação interna e externa da passagem, uma diferença “provisória e funcional de tal forma que está, ao mesmo tempo, aberta e fechada” na tentativa de descrever este lugar procurado pelos surrealistas, onde o “ato significante, que consiste em passar de um espaço para o outro, se desenvolve sem referente fixo ou estável” (KRAUSS, 2014, p. 146). A autora ainda aponta que o verso que reaparece na memória do poeta e que abre caminho para a afetação de outras memórias é o acesso ao “labirinto de memória”; assim como a “porta giratória”, e sua relativização do referente, seriam uma tentativa dos surrealistas de aproximar o inconsciente e o espaço da cidade.

 

O mais extraordinário é que o poema havia traçado em 1923 o itinerário que os dois iriam percorrer por Paris em 1934: a travessia do Pont-au-Change, a rua Gît-le-Coeur e o mercado das Flores. Cada imagem surge então como uma profecia, um signo que designa o futuro, mas um signo cujo sentido só se estabelece por este futuro. (KRAUSS, 2014, p. 147)

               

A falta de um sentido proposto e que se completará no significado em um momento futuro é resultado de uma escrita automática dos signos. Essa construção do signo surrealista é proposta por Krauss (2014) por meio da ideia do signo indicial vazio de significado, o sincategorema, que, a partir de um referencial externo, dota de um significado passageiro, voltando a se esvaziar após a utilização. É um signo que se relaciona com o seu contexto. O sincategorema se relaciona com o sujeito, o espaço e as manifestações do inconsciente. Segundo a autora, Breton utiliza o termo “índice” para ilustrar os signos que funcionam de forma profética, referindo-se à possibilidade dos signos de serem vazios de sentido em determinados momentos.

Essas relações traçadas por meio do encontro evocado é o que se denomina acaso objetivo. O acaso objetivo nos mostra as relações que se tem entre o sujeito que interpreta um dado signo, o espaço em que se insere dentro de sua realidade material, e as relações de igualdade que se tem entre o sujeito, esse espaço, a manifestação do inconsciente e o encontro evocado pelo signo. A ação do acaso é o desvelamento das múltiplas relações que podem ocorrer entre si para a criação de significação e, portanto, para o preenchimento do signo com o referencial externo – dado no encontro entre o espaço material, o psíquico e o sujeito – e para a criação de um possível significado momentâneo.

Os significados possíveis evocados em um dado signo são, portanto, dependentes dessas relações traçadas pelo acaso objetivo.

 

Fig.01: Esquema Acaso Objetivo, autoria própria.

 

É dentro do acaso objetivo que as relações de significação são possíveis e a consequente formação deste signo vazio, ou, o que também podemos chamar de hiato entre significante e significado.

A noção de espaçamento é trazida por Bates (2009) em Photography and Surrealism: Sexuality, Colonialism and Social Dissent. Segundo o autor a criação do “efeito surrealista” em uma representação se dá a partir da criação de lacunas, hiatos, entre significante e significado; deste modo, observa-se uma ambivalência que permite a contradição e as relações analógicas entre representações.

O acaso objetivo também nos auxilia a compreender o conceito de Beleza convulsiva que permeia o Movimento. “A surrealidade seria a natureza “convulsada” por uma espécie de escrita” (KRAUSS, 2014, p. 122), a transformação da realidade em representação, em escrita automática. Desse modo, temos a possibilidade de conceber a Beleza convulsiva através de uma visão corriqueira do cotidiano e buscar, em tal espaço, os signos transmutáveis que invocam, através do inconsciente, das analogias e das metáforas, o Maravilhoso.

 

O maravilhoso não é uma imagem que brota da consciência, tampouco um objeto que existe no mundo objetivo. É fruto da passagem do sujeito, o qual se entrega ao acaso para poder descobrir a realidade a partir de um ponto de contato que é igualmente o ponto de partida. (FABRIS, 2013, p. 98)

 

A noção de hiato e de sincategorema convergem para a consciência do vazio do signo dentro de um processo contínuo de significação, dentro do acaso objetivo podemos transmutar esses significados e encontrar o Maravilhoso.

Visão de São Paulo à noite, Poema Antropófago sob Narcótico

No contato com o livro percebe-se a ligação íntima dos autores com o espaço urbano. A cidade que se transforma em representação e cria uma lógica particular e íntima é uma característica marcante de Paranoia. Para um olhar mais aprofundado na criação dessas pontes externas e internas ao livro, será adotado o estudo da unidade do poema Visão de São Paulo à noite, Poema Antropófago sob Narcótico (transcrito abaixo) por meio do qual se pretende compreender e desenhar as relações aqui colocadas pelo autor no texto e as relações com as imagens fotográficas dentro do conjunto de páginas referidas pelo poema.

 


Fig.02:
Paranoia (páginas 32 e 33). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva (PIVA, 2000, p.32-33)

 

Visão de São Paulo à noite

Poema Antropófago sob Narcótico

 

Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas

  acende velas no meu crânio

há místicos falando bobagens ao coração das viúvas

e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo

fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes

  chupando-se como raízes

 

Maldoror em taças de maré alta

na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida

a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria

  feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas

  definitivamente fantásticas

há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo

a lua não se apoia em nada

eu não me apoio em nada

 

sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas

teorias simples fervem minha mente enlouquecida

há bancos verdes aplicados no corpo das praças

há um sino que não toca

há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios

reino-vertigem glorificado

espectros vibrando espasmos

 

beijos ecoando numa abóbada de reflexos

torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos

  enlouquecidos na primeira infância

os malandros jogam ioiô na porta do Abismo

eu vejo Brama sentado em flor de lótus

Cristo roubando a caixa dos milagres

Chet Baker ganindo na vitrola

 

eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas

  partidas do meu cérebro

eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes

  vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e

  abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos

  colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror

disparo-me como uma tômbola

a cabeça afundando-me na garganta

 

chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me

nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado

quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas

ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,

  correrias de maconha em piqueniques flutuantes

vespas passeando em voltas das minhas ânsias

meninos abandonados nus nas esquinas

angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos

  entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto

  e o Estrondo

(PIVA, 2010, p. 33-45)

 

Neste poema, assim como no livro como um todo, observa-se inferências, deambulações mentais que o poeta traz como um dado de partida (a procissão e seus personagens), associações livres como o caminhar de Breton em Tournessol, trazido por Krauss (2014).

No exercício deambulatório encontramos diversas referências externas à cidade trazidas pelo poeta: Maldoror, como uma característica própria do autor – e que vai se apresentar durante outros trechos do livro –, questões de sexualidade, alusões claras à violência, os ‘anjos de Rilke’, que aqui são colocados com corporeidade, desejo, sexualidade ‘dando o cu nos mictórios’, e figuras como Brama, Cristo e Chet Baker.

Um ponto importante na trajetória do autor pelo livro, e que neste poema se faz presente, é a coexistência da cidade e do corpo humano. O fluxo entre ser humano e espaço urbano se apresenta com adjetivações e movimentos, que borram os limites entre ambos. Em ‘há bancos verdes aplicados no corpo das praças’, a praça percorrida pelos corpos aqui também é corpo, ser e espaço se confundem e são caracterizados em igualdade de valoração nos referenciais trazidos pelo texto poético; ‘eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas | partidas do meu cérebro’, o corpo se confunde com os fios e sente o choque saindo das portas partidas do cérebro, em uma simbiose entre cidade e mente; percebe-se também a coexistência corpo e cidade na construção de aliterações: ‘putos putas patacos torres chumbo chapas chopes’, na aliteração, característica trazida por Krauss (2014) ao traçar estratégias de construção surrealista, essa repetição dos elementos cria um ritmo de leitura e um ritmo de entrada na representação construída. Dessa forma, a construção poética utiliza-se de ambos, corpo e cidade, em uma relação de interdependência/simbiose, ambos se tornam igualmente fragmentos quando justapostos.

A aliteração construída nessa justaposição faz com que o corpo e os elementos urbanos, da construção e da vida social, se confundam e desempenhem papel de igual importância, vistos pelo fragmento; essa característica do fragmento também é importante nas fotografias que não enquadram o referente por inteiro, é perceptível o enquadramento de um trecho do corpo humano escondido através de plantas, entre elementos urbanos ou atrás de um maquinário. Percebe-se que, em diálogo íntimo com o poema, o corpo também se apresenta pelo fragmento através da fotografia, assim como é perceptível com a cidade.


Fig.03: Paranoia (páginas 34 e 35). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento5 de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva (PIVA, 2000, p.34-35)

Percebe-se, no trecho inicial do poema uma forte ligação com o espaço urbano, uma procissão pela rua São Luís, imagem nítida construída pelo autor que é quebrada pela ação seguinte, acendendo velas em seu crânio. A relação do poeta com a cidade é colocada de maneira em que vida e espaço se confundem, a indissociabilidade entre espaço urbano e poeta é exacerbada na ligação entre o ser (poeta) e o espaço numa associação visceral entre eles – como se o poeta fosse a própria cidade e seus elementos –; nessa perspectiva, percebe-se que as fotografias apresentam grande desfoque e uma grande incidência de voyeurismo, indicando uma posição em 1ª pessoa, aquele que observa, que está, que é o espaço inerte e presente.

Essa posição voyeurística também pode ser apresentada como o ato de elencar as personagens observadas - míticos, viúvas, estrelas, amantes - com uma forte carga sexual pincelada ao “chuparem-se como raízes”. É visceral, urgente e os corpos são conectados com o espaço de forma indissociável.

Considerando o conjunto fotografia + poesia, configurado na dupla de páginas, há uma comunicação relevante entre este trecho inicial e imagem fotográfica. A comunicação não é dada de pronto, ou seja, não é observável os referentes colocados pelo autor que auxiliariam na construção de uma imagem nítida do narrado. A ligação entre imagem fotográfica e texto se dá em outro regime de imagens.

A imagem fotográfica se comunica com o trecho de poesia na ocupação do espaço público, a procissão de mil pessoas na esquina da rua São Luís não se configura como uma procissão de pessoas, mas se transformam em carros que ocupam este espaço público e “acendem velas” (ou seriam as luzes da cidade?), faróis de carros que são desfocados e criam efeito de desenho na fotografia; o traço das luzes dos carros se assemelha com o traçado da chama da vela, temos uma ligação analógica no nível do símbolo com essa alusão criada. O vagão de luxo que carrega as estrelas aqui pode ser o carro brilhante a levar os pontos pela cidade, e os amantes, esses não precisam estar na imagem visual.

Conforme demonstrado acima, o encontro texto e imagem fotográfica essas relações encontradas tornam-se potência de construção de uma imagem poética do espaço relacional destes autores. A criação de hiatos entre significante e significado ocorre não somente dentro do contexto da palavra escrita, mas também na contraposição entre escrito e imagem fotográfica, abre-se o espaço para o inusitado e o encontro com o Maravilhoso em mais de uma camada de significação, conforme é observável durante o poema.

 


Fig.04: Paranoia (páginas 36 e 37). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento6 de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva

(PIVA, 2000, p.36-37)

 

Na imagem fotográfica o rapaz está alinhado com o poste, uma característica que insere o espaço do observador que aguarda o momento para a fotografia, um voyeur do espaço urbano, escondido pela vegetação ‘há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo’, diz o poeta. A floresta que o faz ser espectador da vida no urbano. ‘a lua não se apoia em nada / eu não me apoio em nada’ assim como nada se apoia no chão nesta fotografia, o referencial do piso inexiste e transfere para o imaginário de contiguidade que podemos inferir.


Fig.05: Paranoia (páginas 38 e 39). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento7 de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva (PIVA, 2000, p.38-39)

 

O menino não olha para a câmera, mas todos olham para o menino. Esta imagem tem uma nova conotação ao lado do texto, ou seja, a ligação entre o menino e o desejo não se faz na imagem, mas em contato com as palavras lascivas do autor, assim como com suas referências colocadas podemos fazer esta inferência, um dos ‘anjos de Rilke’, anjos maléficos, belos, que caminham pela cidade. Um exemplo do sincategorema da fotografia surrealista.


Fig.06: Paranoia (páginas 40 e 41). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento8 de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva (PIVA, 2000, p.40-41)

 

Os rapazes estão em um segundo plano, informando ao espectador que o fotógrafo se encontra em uma posição “escondida”: um observador. Observador também é o poeta, que toma essa posição na escrita. Novamente o texto muda o contexto da fotografia drasticamente.

A leveza com que a falta de apoio da lua e do eu lírico, a vegetação terrena, e o espaço entre ambos que é criado no encontro do texto com a imagem fotográfica, a busca pelas personagens externas que possam minimamente exprimir àquilo que é evocado no encontro com este espaço urbano penetrado pelos artistas – e que carregam de significado os meninos fotografados, ao mesmo tempo que abrem espaço para interpretações inusitadas dessa junção fotografada e escrita – e a posição de quem observa silenciosamente, voyeristicamente a cidade no encontro com o inusitado, a busca pela beleza corriqueira. Todas essas inferências são possíveis no contato da fotografia com o trecho da poesia colocado ao seu lado direito, constroem, complexamente essa rede significativa que dá corpo à sua leitura.

Fig.07: Paranoia (páginas 42 e 43). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento9 de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva. (PIVA, 2000, p.42-43)

 

Ao olhar esse seu par de páginas (páginas 42 e 43) pode-se inferir também uma analogia sonora, o recorte exato e a falta de referente externo traz o estranhamento da situação. A superfície metálica junto com a repetição presente nas sílabas da poesia aplica um efeito sonoro interessante de marteladas (pensando as duas representações em conjunto) - CHUMbo CHApas CHOpes. A composição com o homem por entre a superfície metálica quebra com a frieza da fotografia que foca no elemento metálico, inserindo um componente humano, e consequentemente quebra às expectativas da localização da antena, como um homem foi encontrado nesta situação, onde estará esta antena?

Continuamente observa-se o jogo de palavras ‘vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e | abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos’, livre associação de palavras do acaso objetivo no encontro evocado entre sujeito, espaço e manifestação do inconsciente.

 

Fig.08: Paranoia (páginas 44 e 45). Imagem: Wesley Duke Lee / Instituto Moreira Salles

Fragmento10 de "Visão de São Paulo à noite Poema Antropófago sob Narcótico" de Roberto Piva (PIVA, 2000, p.44-45)

 

O corpo dos rapazes (novamente em grupo) recortados pela cintura e o enquadramento que se fecha no luminoso à direita define um contexto cerrado dentro dos limites do papel fotográfico. A ligação com a poesia é mais sutil neste exemplo, e faz o fechamento de uma poesia que varia entre a observação de grupos de meninos e fotografias com enquadramento mais fechado. O letreiro luminoso das vitaminas marca o espaço negro da fotografia que contrasta com o fundo claro dos jornais pendurados, vemos o eixo central bem demarcado, dividindo a fotografia em duas seções distintas e novamente a posição de espectador do fotógrafo com a vida urbana.

Nesse poema a cidade é uma personagem viva que apresenta grande importância narrativa na construção poética, tem ritmo, cores, reflexo, e tem ar. É uma escrita com grande ritmicidade, a leitura ganha velocidade, sufoca o leitor e termina em um grande silêncio (‘Estrondo’).

Uma relação fragmentária e voyeurística é instituída na construção da unidade de leitura deste poema. A cidade aqui é apresentada por aquele que observa e se entende parte constituinte do corpo da cidade. Sua visão, portanto, nunca poderá ser unitária, mas sempre fragmentada em momentos, instantes de conexão. Uma construção interdependente sem a presença de uma hegemonia significante.

 

Considerações

Com o estudo do poema Visão de São Paulo à noite, Poema Antropófago sob Narcótico foi percebida a interdependência entre imagem fotográfica e poesia, e a construção de significados em camadas, situação que se estende ao livro como um todo. Com a mobilização das linguagens (imagem fotográfica e poesia), os autores constroem uma imagem complexa da experiência pela cidade. A construção em camadas, perceptível na leitura a partir das inferências que a imagem e o texto fazem um com o outro abre um campo de possíveis de interpretação que, tendo como base a imagem particular dessa experiência dos autores, cria possibilidades de leitura de acordo com as experiências daquele que o lê, o leitor.

Cidade, fotolivro, autores – e, em certa instância, leitores – se fundem no entendimento do mundo enquanto representação, principalmente quando por meio deste mundo material é evocado a analogias externas da lembrança de um autor, de um espaço, de uma rua. Um caminho de vai e volta de uma atenção dialética entre o estar presente e o encontro com a efusão de pensamentos. As analogias externas, citadas pelos autores – seja dentro do texto, seja na junção de linguagens – é uma pista daquilo que se pode compreender como o encontro evocado pelo espaço urbano aos autores. Busca-se uma igualdade entre sujeito, espaço e manifestação do inconsciente na construção da imagem particular de cidade proposta pela criação artística, portanto, pode-se concluir que o acaso objetivo apresenta papel importante na construção da obra, que ao mesmo tempo deixa-se aberta para novas relações que podem surgir na sua recepção, com os leitores.

Sendo a ação do acaso objetivo ‘o desvelamento das múltiplas relações que podem ocorrer entre si para a criação de uma significação’, o encontro dos artistas com o espaço urbano é vivido no decorrer do poema e do livro. Criam-se significados momentâneos nessa junção, assim como hiatos de significação que demarcam o efeito surrealista, como por exemplo na escrita em ‘vespas passeando em voltas das minhas ânsias’ (PIVA, 2012, p.45), ou nas luzes refletidas nos automóveis da imagem fotográfica que dançam em ‘uma procissão de mil pessoas acende velas no meu crânio’ (PIVA, 2012, p. 34).

Nessa entrega com o desconhecido dentro do cotidiano, no acaso objetivo há o encontro com o Maravilhoso. Na leitura proposta, o maravilhoso aparece como a transformação do mundo em signos, e nos hiatos que se criam nessa possibilidade do encantamento com o banal e na descoberta de relações propostas pela experiência dos autores.

A imagem fragmentária proposta na leitura se apresenta como uma não totalidade da visão do espaço que, mesmo fortemente relacionado com o espaço urbano, é impalpável e indomável. Ela se faz presente nos trechos recortados e na junção inesperada de elementos e palavras, e, cria corpo na conjunção poema-imagem fotográfica. No poema Visão de São Paulo à noite, Poema Antropófago sob Narcótico e no livro como um todo, a cidade se apresenta desta forma fragmentada, não visível na sua inteireza, não obedece às regras rígidas do urbanismo, não obedece a um caminho traçável pelos mapas, mas se dissolve em viagens alucinógenas, em encontros inesperados, mesmo sem perder o encontro com o material em suas referências. A construção da imagem da experiência dos autores, mesmo que não abrace uma visão totalitária da cidade vivida por eles, é reflexo dos lugares onde as relações humanas têm espaço para o acontecimento fortuito e a surpresa.

A impossibilidade de criação da imagem totalizante mostra a possibilidade de inferência no espaço que não seja regulatória, traçada e planejada, mas que seja resultante da experiência em que a cidade e o corpo são tomados como um elemento só. Deste modo, o espaço poético construído pelos autores é fragmentário, a cidade torna-se fragmento a partir da visão construída por eles. Em última instância, em Paranoia, estar no espaço é estar no fragmento.

 

Referências

BATE, David. Photography and Surrealism. Sexuality, Colonialism and Social Dissent. London, New York: I.B. Tauris, 2009.

COSTA, Cacilda Teixeira da. Wesley Duke Lee: um salmão na corrente taciturna. São Paulo: Alameda / Edusp, 2005.

FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. Volume II. 1 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. tradução de Anne Marie Davée. 1. ed. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.

PIVA, Roberto. Paranoia / Roberto Piva com fotografias de Wesley Duke Lee – 2 ed. São Paulo: Instituto Moreira Salles e Jacarandá, 2000.

SILVA, Cícero Mendes da. Cidade e escatologia no Paranoia de Roberto Piva e Wesley Duke Lee. Orientação: Prof. Dr. Washington Luis Lima Drummond. 2016. 126 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2016.

WILLER, Cláudio. A famosa resenha em La Brèche – Action Surrealiste, 30 out. 2014. Disponível em: <https://claudiowiller.wordpress.com/2014/10/30/a-famosa-resenha-em-la-breche-action-surrealiste/>. Aceso 04 mai 2017.

XXX. Le surrealisme à São Paulo. Revista La Brèche 8, novembro de 1965, p.127 Le Terrain Vague, Paris, France. In: WILLER, Cláudio. A famosa resenha em La Brèche – Action Surrealiste, 30 out. 2014. Disponível em: <https://claudiowiller.wordpress.com/2014/10/30/a-famosa-resenha-em-la-breche-action-surrealiste/> . Aceso em 04 maio 2017.

 

Data de Recebimento: 25/10/2021
Data de Aprovação: 30/03/2022


1  Nota identificando origem da pesquisa a ser inserida após avaliação do artigo. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

2  O livro teve uma primeira publicação, em formato de bolso, publicada em 1963, uma sua segunda edição – um fac-símile de proporções aumentadas em 2000 – pelo Instituto Moreira Salles e uma terceira edição brasileira pelo mesmo instituto em 2009, com novo projeto de diagramação. No presente atirgo foi utilizada a edição de 2000, fac-símile.

3  Original: “Paranoia est le premier livre de poésie délirante publié en brésilien. Piva, dont la formation intellectuelle est profondément marquée par la culture italienne a pris son inspiration dans le grands classiques de la décadence, d’où l’exubérance de l’image propre aux peuples latins. Freud et Lautreamónt ont eu pour lui la plus grande importance. Enfin, la plus moderne littérature beat nord-américaine lui a transmis la fascination des néons et l’hallucination par la métropole métallique qu’évoquent les photographies de São Paulo insérées dans son livre.”

4  Expressão citada no texto O Surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia, de 1929.

5  “Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas | acende velas no meu crânio | há místicos falando bobagens ao coração das viúvas | e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo | fogo azul de gin e tapete colorindo a noite, amantes | chupando-se como raízes” (PIVA, 2000, p.34)

6  “Maldoror em taças de maré alta | na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida | a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria | feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas | definitivamente fantásticas | há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo | a lua não se apoia em nada | eu não me apoio em nada” (PIVA, 2000, p.37)

7  “sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas | teorias simples fervem minha mente enlouquecida | há bancos verdes aplicados no corpo das praças | há um sino que não toca | há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios | reino-vertigem glorificado | espectros vibrando espasmos” (PIVA, 2000, p.38)

8  “beijos ecoando numa abóbada de reflexos | torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos | enlouquecidos na primeira infância | os malandros jogam ioiô na porta do Abismo | eu vejo Brama sentado em flor de lótus | Cristo roubando a caixa dos milagres | Chet Baker ganindo na vitrola” (PIVA, 2000, p.41)

9  “eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas | partidas do meu cérebro | eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes | vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e | abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos | colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror | disparo-me como uma tômbola | a cabeça afundando-me na garganta” (PIVA, 2000, p.42)

10  “chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me | nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado | quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopeias libertas | ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha, | correrias de maconha em piqueniques flutuantes | vespas passeando em voltas das minhas ânsias | meninos abandonados nus nas esquinas | angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos | entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto | e o Estrondo” (PIVA, 2000, p.45)