“Os incapazes são capazes”
(Jacques Rancière)
Introdução
No âmbito do espaço público urbano, existe uma complexa e heterogênea rede discursiva que produz sentidos sobre um enorme contingente de sujeitos que são considerados “desiguais”, entre os quais: paraplégicos, cadeirantes, cegos, surdos, índios, negros, gays, lésbicas, prostitutas, pobres e população em situação de rua. Sujeitos que são “a parcela dos sem-parcela”, como diria Rancière (2009, p. 27), que existem porque há uma conta mal feita na divisão da sociedade1. Sujeitos que merecem que se fale sobre eles, que suas identidades sejam trazidas à discussão.
Delimitamos o escopo de nossa pesquisa no discurso do Estado e como ele produz sentidos sobre a população em situação de rua. O objetivo geral deste artigo é compreender quais discursividades o Estado mobiliza para endereçar-se à questão da população em situação de rua, que são comumente denominados, entre outros termos, de: “andarilhos”, “pedintes”, “mendigos”, “desempregados”, “informais”, sujeitos que perambulam as ruas da cidade solicitando uns trocados, vendendo pequenas mercadorias ou ofertando pequenos serviços (como limpar para-brisas) para terem suas necessidades atendidas. Sujeitos que o discurso urbano2 os considera malvistos, pois prejudicam a estética da cidade.
Nosso objetivo específico é analisar o texto da campanha “Não dê esmola, mostre o caminho” que faz parte de uma política pública da cidade de Pouso Alegre-MG que visa orientar a população a não dar esmolas para aqueles que se encontram em situação de rua. Refletimos sobre esta campanha na relação com enunciados de outras campanhas similares no país. Lançamos como uma hipótese de trabalho que duas discursividades, a religiosa cristã e a capitalista, sustentam o texto da campanha de um modo contraditório.
A relevância deste trabalho pode se situar dentro da diferenciação proposta por Orlandi (2012) entre ordem e organização. A noção de ordem diz respeito ao real da cidade, com seus movimentos, sua forma histórica. A organização está ligada a um imaginário projetado sobre a cidade por seus habitantes, especialistas, urbanistas, administradores “organizando o espaço da cidade, planejando-o, calculando-o de maneira empírica ou abstrata de acordo com seus objetivos. Em geral, ignorando, silenciando as reais necessidades histórico-materiais do espaço enquanto instância real, própria à cidade que está sempre em movimento” (ORLANDI, 2012, p. 199). Temos uma relevância teórica em afirmar a importância do conceito de ordem da/na cidade para dar visibilidade a sentidos outros que, por vezes, são silenciados, apagados pelo discurso do Estado, que se insere na organização da cidade. E uma relevância social ao colocar em discussão os modos como o discurso do Estado diz da população em situação de rua e dos espaços autorizados a circular na cidade.
A perspectiva teórica que sustenta nossa reflexão é a da Análise de Discurso de linha francesa, campo de estudo materialista (e não empirista ou referencialista) que tem como objeto o discurso, definido como “efeito de sentido entre locutores” (PÊCHEUX, 1969, p. 82). O discurso materializa-se na língua, considerada em sua opacidade semântica e como um sistema relativamente autônomo, pois depende de um sujeito. O discurso precisa ser pensando em relação à ideologia, responsável pela evidência dos sentidos, pelo sentido já-lá. A ideologia materializa-se no discurso. “Não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia” (ORLANDI, 2010, p. 47).
Nosso procedimento de análise é tomar o texto da campanha para “ouvir para lá das evidências” (ORLANDI, 2010, p. 59), expondo-o à opacidade da linguagem, colocando o dito em relação ao não dito. Relacionaremos o texto a uma memória de sentidos, definida por Pêcheux (2009) como aquilo que se diz em outro lugar independentemente. Partimos do texto para remetê-lo a discursos que constituem seus sentidos.
1. Discurso e sujeitos em situação de rua
Nosso ponto de vista considera que a língua(gem) possui um caráter central para a compreensão das relações sociais. Como diz Pfeiffer (2011, p. 149): “as relações sociais são relações de sentido”. Sentidos que são divididos. Este é o trabalho do político na Análise de Discurso, que se refere à divisão e direção do sentido ou à possibilidade de os sentidos serem outros. Cabe ao analista trabalhar o político e dar visibilidade à multiplicidade de sentidos de um objeto simbólico.
Considerando o tema que focaremos neste trabalho, há o discurso do Estado sobre sujeitos em situação de rua, um discurso normatizador, e há os discursos desses próprios sujeitos. Nesta parte do trabalho, focaremos em como a perspectiva discursiva pode dar voz a esses sujeitos em um trabalho de escutar sentidos possíveis. Que sentidos esses sujeitos são capazes de produzir quando lhes dão a palavra? Para muitos deles, estar na rua é o caminho que encontraram para sobreviver. Ali, por vezes, não se encontram por vontade própria, à mercê da violência da cidade e dos perigos da noite.
Coracini (2010), em sua pesquisa sobre migrantes em situação de rua, dá corpo às narrativas de si de sujeitos em situação de rua e relata os anseios, temores, desejos, medos e necessidades que vivenciam na situação em que se encontram. Sua pesquisa mostra as fronteiras fluidas entre a rua e a casa, o eu e o outro, o passado e o presente, o público e privado. Mostra como essa população se vê a partir do olhar do outro, a vergonha que sentem em estarem naquela situação e a esperança que nutrem de um dia voltar para a casa de origem, sair da miséria, inserirem-se no mercado de trabalho, terem família, uma vida mais digna. Diz a autora:
No caso dos migrantes em situação de rua, é possível perceber o poder da ordem do discurso das classes hegemônicas agindo sobre eles, na linguagem, na autodesvalorização em função dos valores que ainda preservam ou que conservam como garantia de uma identidade perdida, apagada, ou como resistência a uma vida sem sentido e desprovida de valores. (CORACINI, 2010, p. 97)
O estereótipo da população em situação de rua, a partir da visão do Estado, é o bêbado, drogado, vagabundo, doente, etc. Por isso a insistência para não lhes dar esmola. O Estado alega que não há como saber para que usam a esmola. Então, melhor não dar. Mas o Estado se esquece de que aqueles que estão em situação de rua são também a indicação de que algo falhou no Estado capitalista hierarquizado.
Em outra pesquisa, diz Coracini (2011) que a sociedade hegemônica possui parâmetros para o que pode ser considerado “normal”:
ver, andar, ser inteligente, racional etc., como se cada um de nós não tivesse nenhuma deficiência, como se pudéssemos fazer tudo, como se fôssemos dotados da mesma acuidade visual e gestual dos surdos-mudos, da mesma acuidade auditiva e tátil dos que não veem, da mesma representação de vida que têm os paraplégicos que aprendem a se servir da boca no lugar da mão ou dos pés em lugar dos braços... Não seríamos nós tanto ou mais deficientes que os assim nomeados? (CORACINI, 2011, p. 18)
A autora não está dizendo que esses sujeitos não precisam de atenção, pelo contrário, ela ressalta que todos somos limitados em algum aspecto e que todos precisamos de respeito às nossas capacidades. Pois, todos temos o direito de trabalhar, de estudar, de nos locomover nas ruas sem que sejamos discriminados ou aviltados pela sociedade. E, acrescentamos, todos podemos nos encontrar, de uma forma ou de outra, em uma situação desigual de necessidade: uma criança pode ser agredida em casa, mulheres podem estar em casamentos abusivos, negros e gays podem estar sujeitos a preconceitos em diversos locais. No entanto, a cultura ocidental, que privilegia a racionalidade “responsável pela discriminação” (CORACINI, 2011, p. 19), insiste em apagar, silenciar, injustiçar aqueles considerados “desiguais”.
Em outro artigo sobre como a mídia jornalística constrói identidades para os chamados moradores de rua, Coracini (2014) mostra que as esparsas notícias sobre esse grupo social veiculadas nos grandes jornais (O Globo, Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo) versam sobre crimes cometidos pelos próprios moradores de rua ou contra eles.
A autora sustenta a hipótese de que as notícias sobre moradores de rua remetem à escrita folhetinesca3 de meados do século XIX devido ao ser caráter trágico, inusitado e espetacular. Manchetes como Morador de rua é queimado por desconhecidos em SP ou No Rio, corpo é deixado em carrinho de supermercado seguidas de imagens representativas atraem a atenção do leitor, pois este se identifica, de uma forma ou de outra, com a miséria humana.
Nas notícias, há um emprego recorrente da voz passiva (vide as manchetes acima), o que apaga a autoria do crime, usa-se marcadores de suspense como “de repente”, reconstitui-se os acontecimentos em discurso indireto, com linguagem assertiva e narrador onisciente como um romance policial. Expressões genéricas como “morador de rua”, “vítima”, “corpo” indefinem as identidades e esvaziam o aspecto humano desses sujeitos. Diz Coracini (2014, p. 106):
o esfacelamento do nome e as designações que os substituem produzem o efeito de sentido de uma identidade vazia, sem expressão nem relevância: não é um ser humano, mais parece um objeto, uma coisa. (...) esse mesmo esfacelamento da designação, que sempre cria uma identidade, se vê reforçado pela trama, o que permite dar prosseguimento à analogia desse tipo de texto com o folhetim.
Coracini (2014) conclui dizendo que a tendência nos jornais de relegar os moradores de rua ao nível animalesco ou objetificado, como corpos anônimos, sem identidades, sem história e invisíveis colabora para a construção do imaginário social que deprecia ou anula aqueles que não trabalham, vivem nas periferias, ou, por diversas razões, abandonam suas famílias.
Assim, ao colocar como objeto de nossa pesquisa uma política pública que toca, mesmo que parcialmente, no tema da desigualdade econômico-social e a exclusão por ela operada, concordamos com Silva (2011, p. 14/15):
Acreditamos que escutar, registrar e analisar a voz daquelas pessoas que, em situação de pobreza e exclusão social, permanecem à margem da sociedade – construída na ordem das leis e das normas que regem direitos e deveres dos que vivem em condições de cidadania – equivale a uma maneira de fortalecer o discurso, bem como a identidade de uma classe social oprimida e abandonada à própria sorte.
Nossa pesquisa não foca/não traz a(s) voz(es) dos sujeitos em situação de rua, foca no discurso do Estado e como ele funciona pelo silenciamento4 dessas vozes. Também concordamos com Silva (2011) quando diz que há uma ausência de políticas públicas eficazes para promover uma maior coesão social e respeito aos direitos humanos quando se trata desses grupos em situação de desigualdade. O texto da campanha que analisamos pede, necessariamente, que coloquemos nosso ponto de vista a respeito de políticas públicas.
2. Discurso e políticas públicas
Reconhecemos a ampla discussão acadêmica sobre políticas públicas no Brasil e o esforço de diversas entidades, como ONGs, e, até mesmo, iniciativas individuais para amenizar a precária situação da população em situação de rua. Por falta de espaço em um trabalho como esse, decidimos por focar na discussão dos efeitos de sentido evocados pelo texto de uma campanha de uma prefeitura que visa inibir os donativos para população em situação de rua.
As políticas públicas de Estado, geralmente, visam promover um acesso mais igualitário de seus recursos a um maior número possível de sujeitos provenientes das diferentes camadas da sociedade. Por um lado, certas políticas públicas produziriam um efeito de justiça e oportunidades para sujeitos das camadas desfavorecidas ou historicamente injustiçadas ascenderem socialmente. A exemplo do Prouni, Fies e da política de cotas nas universidades. Por outro lado, as políticas públicas geram discussão e análises criteriosas que devem ser realizadas para uma melhor compreensão de seu funcionamento. Certas políticas públicas, ao buscarem uma igualdade na sociedade, acabam por apagar um aspecto intrínseco às diversas formações sociais: a diversidade.
Uma interessante discussão sobre políticas públicas encontra-se em Azevedo (2004). Para a autora, política pública é a materialidade da intervenção do Estado, ou seja, é o Estado em ação. As políticas públicas, enquanto ação humana, agem de acordo com as representações sociais, valores e normas da sociedade vigente. Elas podem ser alteradas de acordo com as gestões de cada governo e interpretadas de modos diversos segundo as teorias que as analisam.
Concordamos com a autora quando afirma: “uma política pública para um setor, constitui-se a partir de uma questão que se torna socialmente problematizada. A partir de um problema que passa a ser discutido amplamente pela sociedade, exigindo atuação do Estado” (AZEVEDO, 2004, p. 61).
O Estado, no sentido de direcionar-se à questão da população em situação de rua, já amplamente problematizada na sociedade, publicou em maio de 2008 a Política Nacional para a Inclusão da População em Situação de Rua, que visa orientar e construir políticas públicas voltadas a este segmento da sociedade. Este documento caracteriza a população em situação de rua como:
composta, em grande parte, por trabalhadores: 70,9% exercem alguma atividade remunerada. Destas atividades destacam-se: catador de materiais recicláveis (27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência apenas 15,7% das pessoas. Estes dados são importantes para desfazer o preconceito muito difundido que a população em situação de rua é composta por “mendigos” e “pedintes”. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem minoria. Deste modo, a maioria tem profissão, ainda que não a estejam exercendo no momento: 58,6% dos entrevistados afirmaram ter alguma profissão. Entre as profissões mais citadas destacam-se aquelas vinculadas à construção civil (27,2%), ao comércio (4,4%), ao trabalho doméstico (4,4%) e à mecânica (4,1%). (GOVERNO FEDERAL, 2008, p. 12).
Nunes (2011), em análise sobre este documento, postula que o discurso desta política inaugura a metáfora da população5 em situação de rua, discurso “que funciona atribuindo sentidos aos sujeitos que frequentam o espaço público, tornando-os objeto de ciência, definindo-os, classificando-os e tornando-os contáveis e passíveis de assistência social” (NUNES, 2011, p. 44).
O autor nota no texto do documento a presença do discurso científico de diversos autores das ciências socias que aponta as causas da reprodução dessa população: desigualdade social, sistema capitalista de trabalho assalariado, pobreza extrema, fenômeno presente na sociedade brasileira desde a formação das cidades, ruptura de relações familiares, entre outros.
Além disso, o autor afirma que o discurso administrativo do documento, ao delimitar os sentidos da população em situação de rua, produz um silêncio sobre sentidos outros para os sujeitos públicos, particularmente sobre os de pedinte e mendigo, que evocam o discurso religioso de pedir esmola. O discurso administrativo visa construir a imagem do trabalhador (ainda que informal) e assim evitar o imaginário de que as ruas são lugares de ociosidade.
Ainda segundo o autor, o discurso administrativo constrói o sentido de provisoriedade (em situação de) para a rua, enquanto espaço de circulação. A rua é lugar de trânsito (ao trabalho, à moradia fixa) e não lugar a ser ocupado. Nunes (2011) conclui que o administrativo desambiguiza os sentidos do espaço público, controla a polissemia das palavras e legitima-se como a forma consensual que decide quem pode ou não ficar nas ruas e de que modo.
As palavras de Nunes encontram eco no questionamento de Orlandi (2010), ao final da apresentação do livro organizado por ela, Discurso e Políticas Públicas Urbanas: a Fabricação do Consenso: “As políticas públicas dizem o político ou o calam?” (ORLANDI, 2010, p. 9). Como sentidos e sujeitos são constituídos ao mesmo tempo, o apagamento do político no social apagaria a possibilidade de os sujeitos ocuparem diferentes posições na sociedade.
Pensar em políticas públicas é pensar na produção de consensos. Segundo Orlandi (2010), o consenso traz a noção de unidade e constitui a base para pensar os grupos de sujeitos não como amontoado de indivíduos, mas como a ligação que une a sociedade. Nas palavras da autora:
A definição de um sistema democrático tem a noção de consenso como objeto central de discussão. Os cientistas sociais consideram que o consenso nunca será absoluto em uma sociedade, nem incluirá de modo simétrico todos os seus integrantes, mas entendem que o consenso é necessário e que se deve buscar o consenso quanto às questões que devem ser contempladas e às decisões que são exigidas na sociedade. (ORLANDI, 2010, p. 6)
Ainda segundo a autora, a produção do consenso vem para solucionar, mesmo que parcialmente, os conflitos sociais. Elaboram-se políticas públicas para atender aspirações e sentimentos compartilhados por diferentes indivíduos ou grupos da sociedade. Parte-se, portanto, da ideia de que há regiões de homogêneas afinidades na sociedade e, a elas, as políticas públicas visam atender.
Mas, para a autora, as relações sociais não são simétricas. Nas relações sociais contemporâneas, joga-se fortemente com o par inclusão/exclusão. É necessário posicionar-se criticamente em relação às políticas públicas. Isso posto, Orlandi (2010, p. 7) tem a hipótese de que a “produção do consenso está sustentada em uma concepção de vínculo social que produz segregação”. A produção do consenso na relação com a população em situação de rua adquire uma visibilidade maior quando percebemos que esse grupo social pode ser inserido em um modelo de representação social na sociedade capitalista que é horizontal:
Aí o sujeito ou está dentro – e tem sua colocação, seu lugar – ou está fora. Não é mais o paradigma da inclusão/exclusão mas o da segregação. Não há a ilusão de possibilidade de ascensão vertical. Há a luta heroica do sujeito para ter um lugar qualquer (centro/periferia). Domínio das relações individualistas, da fragmentação, da urgência (ORLANDI, 2010, p. 13).
A população em situação de rua é esta que está na luta diária para sobreviver sem muitas aspirações de ascensão vertical na sociedade capitalista. Sociedade que quer trazer todos que se inserem nesse grupo para o trabalho. Eis um significante de maior importância na sociedade, pois está em rede parafrástica com produção. Na sociedade capitalista, é necessário produzir ou você é segregado.
3. A análise da campanha da prefeitura e sua relação com outras campanhas
A prefeitura de Pouso Alegre-MG iniciou no ano de 2019 uma campanha para que a população não dê esmolas para pessoas em situação de rua. Esta campanha baseia-se em textos – outdoors espalhados pela cidade e banners colocados em postes próximos a semáforos – com o seguinte formato:
Figura 1 – Texto da campanha da prefeitura de Pouso Alegre
Fonte: www.pousoalegre.mg.gov.br
O texto da campanha compõe-se dos enunciados acima e logo abaixo deles o telefone da assistência social e o logotipo da prefeitura da cidade de Pouso Alegre. Para fins de análise, consideramos o enunciado enquanto unidade que integra texto. O enunciado é um elemento linguístico com forma, ou seja, é constituído por sintagmas, e tem sentido. O enunciado possui duas características: ele tem uma consistência interna e uma independência relativa em relação às outras sequências linguísticas que com ele integram texto (GUIMARÃES, 2011).
Uma política pública que visa criar campanhas para não dar esmolas é comum em diversas cidades ao longo do país. Nessas campanhas, o enunciado não dê esmola, mostre o caminho, geralmente, regulariza-se a partir de uma base que se mantém e uma parte que a ele se acresce, que pode ser como nos seguintes exemplos retirados de sites de diversas prefeituras: Não dê esmola, mostre o caminho; Não dê esmola, dê cidadania; Não dê esmola, encaminhe para acolhimento; Não dê esmola, dê futuro; Não dê esmola, dê oportunidade; Não dê esmola, ofereça dignidade.
Esses enunciados sustentam-se em um jogo entre a paráfrase e a polissemia na linguagem. De acordo com Orlandi (2011), a paráfrase e a polissemia são dois processos constituintes da produção da linguagem: A paráfrase é o retorno ao mesmo. A polissemia é tensão que aponta para o rompimento. É preciso pensar esses dois processos na relação homem/linguagem/sociedade. A linguagem é aberta, incompleta, sujeita a falhas, à falta e ao novo. Mas não são todos os sentidos que são possíveis, porém há sentidos que se sedimentam de acordo com a organização social. Os processos parafrásticos e polissêmicos representam a tensão entre o sentido possível e o sedimentado.
Esses dois processos denotam a dinâmica da língua constitutivamente incompleta e afetada pela história. Para que a língua faça sentido é preciso que a história intervenha. E a história é passível de transformação, ruptura. Nas palavras de Orlandi (2010, p. 37): “nem os sujeitos nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles estão sempre se fazendo, havendo um trabalho contínuo, um movimento constante do simbólico e da história”.
Os sentidos não são colados às palavras, mas resultam do emprego que os sujeitos fazem das palavras de acordo com as posições sociais que ocupam. Essas posições são inscritas em formações ideológicas, que são forças em confronto na conjuntura ideológica de uma formação social. As formações ideológicas, por sua vez, comportam uma ou várias formações discursivas, regiões de onde os sentidos se originam. São as formações discursivas que determinam o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1975). Elas estão atreladas numa conjuntura dada e deriva de condições de produção específicas. Através das formações discursivas existentes é que há a possibilidade de diversos sentidos, “a formação discursiva é o lugar da constituição do sentido (sua “matriz”, por assim dizer)” (PÊCHEUX, 1975, p. 148).
As formações discursivas não são fixas e imutáveis, elas estão em constante transformação; suas bordas não são delimitáveis, o que faz com que as formações discursivas se interpenetram, formando uma rede. O sujeito do discurso, interpelado pela ideologia, identifica-se com uma(s) formação(ões) discursiva(s) que o domina(m). Essa identificação funda a unidade imaginária do sujeito (PÊCHEUX, 1975). Portanto, nem os sujeitos nem os sentidos são transparentes, mas heterogêneos, moventes, fluidos.
O sentido que se insere em uma estrutura repetível estabilizada é não dê esmola. É o efeito de estabilização que essas campanhas visam fixar na população de uma forma geral. A segunda parte do enunciado abre-se a uma atualização. Visa colocar algo novo. O novo que essa segunda parte coloca (caminho, cidadania, futuro, trabalho, acolhimento, oportunidade, dignidade) opõe-se à esmola. No entanto, esse novo é uma atualização de uma nova campanha de uma nova prefeitura. Não há rompimento de sentidos, pois o enunciado refere-se ao discurso produtor de consensos do Estado, o discurso de organização.
Ressaltamos o contraste entre as letras em caixa alta em cores vermelha e branca ao fundo preto, uma característica de textos que precisam de certo destaque e precisam ser lidos de forma rápida. Mas também consideramos que a cor vermelha insere os sentidos das palavras esmola e caminho em uma mesma formação discursiva com efeito de sentido de uma negatividade associada a esta cor (acidentes, sangue etc). Podemos parafrasear este primeiro enunciado por: pedir esmola não é um caminho que traz um final feliz. Junto a essa negatividade, pode-se acrescentar o peso da cor preta ao fundo, associado ao luto.
Essa negatividade é ainda reforçada pelo enunciado “esmola não liberta, aprisiona”. Esse enunciado – de importância secundária para o texto, pois é escrito em letras menores, o que dificulta sua leitura à distância – está em forma de uma declaração que produz o efeito de uma verdade. O enunciado aproxima o sentido de esmola ao de prisão. Prisão é o espaço reservado na sociedade para aqueles que se encontram à sua margem. Sentidos contraditórios, pois, a partir da campanha, sustentada pelo discurso do Estado, é possível estar preso estando livre. A prisão é a dependência da esmola. Para o Estado, isso não é autorizado.
As aspas no enunciado marcam a heterogeneidade do discurso (ALTHIER-REVUZ, 1990). Mostra que esse enunciado já foi dito em circunstâncias similares. O sentido de liberdade está na mesma rede de sentidos de cidadania, futuro, trabalho, acolhimento, oportunidade, dignidade que as outras campanhas trazem. É o discurso do Estado sobredeterminando os sentidos da cidade. Ora, há um sentido específico que o discurso do Estado, na figura da prefeitura, mobiliza para as palavras caminho e liberdade. Sentidos que devem ser pensados na campanha enquanto uma política pública, pois faz parte da condição de produção desses sentidos.
Ao suspender a evidência ideológica do sentido de caminho, colocamos os seguintes questionamentos: Quais os sentidos de caminho no enunciado? Está como sinônimo de endereço? É, portanto, o endereço da prefeitura, da assistência social ou qualquer outro órgão governamental responsável pelo acolhimento de população em situação de rua que deve ser mostrado? Mas, e a rua onde se encontra essa população, não é em si um caminho?
Ao propormos esses questionamentos, vemos agir a política pública produtora de consenso. Uma política que visa estabilizar apenas um sentido para caminho. O sentido correto do discurso do Estado. Porém, o sentido é dividido, pois se insere em formações discursivas diferentes e até contraditórias. O efeito de sentido único é ideológico, imaginário. O real do discurso é a “descontinuidade, a dispersão, a incompletude, a falta, o equívoco, a contradição, constitutivas tanto do sujeito quanto do sentido.” (ORLANDI, 2010, p. 74).
A rua onde os sujeitos pedem esmola é e não é um caminho. Para o Estado, não é o caminho correto onde deveriam estar. Lembrando o que nos afirmou Nunes (2011) acima, a rua é lugar de trânsito e não de fixação. A campanha, ao propor que se leia caminho apenas do lado do Estado, opera um triplo silenciamento: 1) Outros sentidos possíveis para caminho, 2) Outras posições-sujeito e 3) Outros locais de circulação na cidade. Mas, a constituição do sujeito pelo Estado funciona pela falha.
Orlandi (2014, p. 164) afirma que: “os sujeitos se individuam pela falta, na falha do Estado”. A autora vê a falha como estruturante do Estado, um aspecto que lhe é, portanto, constitutivo. E a falta do Estado é “como uma forma de presença em condições de produção em que deveria estar lá mas não está, falta. Exemplo: a falta de aparatos/instituições do Estado como escola, segurança etc.” (ORLANDI, 2014, p. 164, grifo da autora). A população em situação de rua precisa ser pensada em relação com a falha do Estado.
Na trilha dos sentidos de caminho, colocamos, então, novos questionamentos: a população em situação de rua, produzidos pela falha do Estado, precisa que alguém lhes mostre o caminho (da Prefeitura)? Não são capazes de, por si mesmos, achar esse caminho? Como diz Coracini (2010), acima referida, muitos daqueles que se encontram em situação de rua são lúcidos, narram suas histórias de vida, conversam. Esses novos questionamentos nos levam a compreender as discursividades que se imbricam na sustentação do sentido de caminho na campanha.
A estrutura de ordem do enunciado mostre o caminho não se trata de um performativo pragmático ou que é (somente) para dizer para essa população o endereço da prefeitura. O enunciado, e sua integração ao texto de uma campanha da prefeitura, faz parte do jogo discursivo de subjetivação do indivíduo pelo Estado. Como dissemos anteriormente, temos a hipótese de que duas discursividades sustentam o texto da campanha: uma discursividade religiosa cristã e uma capitalista, mas essas discursividades são contraditórias. Mas, antes que falemos mais sobre elas, faz-se necessário discorreremos sobre o processo de subjetivação do sujeito considerando a língua e o Estado.
4. O sujeito não é causa de si
Para a Análise de Discurso, o sujeito não é causa e origem de si. Ele está inserido em formações sociais que o antecedem e o determinam. A relação do sujeito com as instituições sociais, portanto, possui um valor heurístico fundamental para o analista que visa compreender, de forma materialista, a produção dos sentidos e dos sujeitos. Importante ressaltar que a relação do sujeito com as instituições na sociedade é dinâmica, sempre em movimento. Diz Orlandi (1998, p. 203): “A identidade é um movimento na história”, pois ela se transforma, não é fixa, natural. Deve-se compreender o sujeito em uma determinada conjuntura histórica. Para esclarecermos mais esse ponto, trazemos Haroche (1975).
A autora, com base em Althusser (1971), mostra-nos que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia, o que resulta em uma forma sujeito histórica. Os modos de individuação do sujeito se dão de acordo com a época em que este se insere. Diferentes épocas produzem diferentes sujeitos. O poder6, o Estado e o direito são coercitivos ao sujeito. O processo de individuação do sujeito busca evidenciá-lo enquanto tal: deixá-lo reconhecível, visível, calculável.
A autora traz que, na Idade Média, o sujeito submetia-se ao seu senhor e este a Deus, a forma sujeito histórica era o sujeito religioso. Com o avanço da economia e do Direito e a diminuição da influência religiosa, há uma transformação da forma sujeito histórica para o sujeito de direito: um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso. Um sujeito que está na tensão entre a autonomia e responsabilidade. Essa é a forma sujeito contemporânea, um sujeito capitalista de direitos e deveres. O sujeito atual é submisso ao Estado e às leis.
Orlandi (2005) também apresenta suas contribuições para a constituição do sujeito. Diz a autora que a impressão de um sujeito origem de si é um equívoco que se assenta no desconhecimento de um duplo movimento na compreensão da subjetividade. No primeiro movimento, como já dito em Haroche (1975), o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Esse é o primeiro passo para que o indivíduo se subjetive. Esse processo expressa a ilusão de o sujeito ser a origem de si e de sua fala, ser fonte de seu dizer.
Além disso, para constituir-se, o sujeito deve se submeter à língua, ao simbólico. Não à língua compreendida como um sistema formal, abstrato e fechado. A constituição do sujeito se dá “pelo jogo da língua na história” (ORLANDI, 2005, p. 102). Ou seja, trata-se, de um lado, da língua em sua injunção a significar e, de outro, do mundo exercendo sua força inexorável. A língua em sua ordem própria não se sobrepõe ao mundo. Abre-se, portanto, a possibilidade de a língua falhar: fato constitutivo da ordem simbólica. Diz a autora:
O sujeito se submete à língua(gem) – mergulhado em sua experiência de mundo e determinado pela injunção a dar sentido, a significar(se) – em um gesto, um movimento sócio-historicamente situado em que se reflete sua interpelação pela ideologia. (ORLANDI, 2005, p. 103)
O fato de a língua não fechar sobre si mesma faz com que ela abra ao equívoco (falha da língua na história). A ideologia também é um ritual com falhas. “Na relação contínua entre, de um lado, a estrutura, a regra, a estabilização e o acontecimento, e, de outro, o jogo e o movimento, os sentidos e os sujeitos experimentam mundo e linguagem, repetem e se deslocam, permanecem e rompem limites”. (ORLANDI, 2005, p. 103).
Em um segundo movimento de individualização, o Estado, suas instituições e as relações materializadas pela formação social que lhe corresponde individualizam a forma sujeito histórica, produzindo diferentes efeitos nos processos de identificação. O indivíduo é resultado de um processo.
Esse jogo entre a língua, a ideologia e a história significa a determinação histórica dos sentidos e dos sujeitos, que poderiam ser quaisquer uns, mas não são. Podemos acrescentar que o sujeito, determinado por um fato que lhe é estrutural, pode falhar, escapar a um discurso que lhe diz o que fazer, o que dizer, onde andar, onde dormir etc. como a população em situação de rua.
Pelo caráter movente dos sentidos e a abertura do simbólico a novas significações, o Estado e suas instituições podem exercer suas coerções aos sujeitos, ao mesmo tempo, cabe-lhes a resistência a sentidos impostos. A resistência leva à materialização de outras posições do sujeito na história. Posições que nem sempre correspondem ao que o Estado deseja. Essas teorizações mostram a complexa relação entre o sujeito, a ideologia, a história, a linguagem e o discurso.
5. Sobre as discursividades que sustentam a campanha
Discutiremos agora como o enunciado Não dê esmola, mostre o caminho, integrado ao texto da campanha, sustenta-se em duas discursividades: a religiosa cristã e a capitalista. A primeira discursividade é percebida pela opacidade da palavra caminho. O discurso do Estado materializado no texto da campanha considera que aqueles que estão em situação de rua não estão no caminho, pelo menos no caminho que o Estado considera correto. Mas qual é esse caminho correto?
Pelo jogo da memória discursiva, “aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente” (ORLANDI, 2010, p. 31), memória de sentidos que sustenta todo dizer, no enunciado, ecoa o discurso religioso cristão. Vejamos as seguintes citações bíblicas:
“Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.” (João 14:6)
“Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele.” (Provérbios: 22:6)
“O rico domina sobre os pobres e o que toma emprestado é servo do que empresta.” (Provérbios: 22:7)
Temos aí o eco do discurso religioso na constituição do discurso do Estado para subjetivar seus cidadãos. Haroche (1975) nos mostra que o discurso religioso já foi mais forte na constituição do sujeito, mas sua presença é ainda hoje percebida em nossa sociedade. Coracini (2011) também diz que ainda hoje percebem-se discursos que justificam a pobreza pela vontade de Deus:
Há alguns anos atrás, ouvi de alguém, fiel praticante da igreja católica, a seguinte frase: “Graças a Deus que há pobres, porque assim temos o que fazer”. A pobreza, então, para pessoas que pensam dessa maneira, tornou-se um modo de praticar a caridade, de exibir a sua bondade (“Coitados!”), de preservar sua imagem de cristão ou de cidadão “consciente” e engajado (...) (CORACINI, 2011, p. 17)
O discurso da igreja católica junto ao discurso do Estado produz sentidos para os sujeitos em situação de rua. Coloca-os como “pobres”, “coitados”, “incapazes”. Precisam que alguém lhes diga o que fazer, não possuem voz. Perceba que a estrutura de ordem do enunciado Não dê esmola, mostre o caminho provoca a exclusão dos sujeitos em situação de rua pelo efeito-leitor aí em funcionamento. O direcionamento dos sentidos seria diferente se o enunciado fosse: Não peça esmola, este não é o caminho. Mas, talvez, não seria este enunciado mais democrático? É pelo efeito-leitor que percebemos o funcionamento da discursividade capitalista imbricada no enunciado da campanha.
5.1 O efeito-leitor e o funcionamento da discursividade capitalista
Todo texto tem uma função-autor e um efeito-leitor. O texto é unidade de sentido dentro de uma situação (ORLANDI, 2010). O texto importa para o analista de discurso não apenas pela sua organização linguística, mas como ele organiza a relação da língua com a história. O texto é um objeto linguístico-histórico.
A todo texto pode ser atribuído uma autoria. Ser autor de um texto é uma função a ser assumida por um sujeito: a função-autor. O autor é uma dimensão do sujeito que está mais afetada pela exterioridade, pelo contexto sócio-histórico, e responsável pela coesão, coerência e não contradição do texto (ORLANDI, 2010). No texto aqui em análise, esta função é atribuída à Prefeitura. Perceba que não importa o sujeito empírico que montou o texto ou o colocou de fato nos postes dos semáforos. O que importa é que este sujeito cria um texto afetado pelo discurso do Estado.
O efeito-leitor é a contraparte da função-autor. Se a todo texto pode ser atribuído uma autoria, também todo texto mobiliza leitores específicos. O efeito-leitor tem a ver com o modo em que o discurso é textualizado. Ele é uma construção discursiva e não se confunde com o sujeito-leitor, aqueles leitores que entrarão em contato de fato com o texto. Nas palavras de Orlandi (2005):
se temos, de um lado, a função-autor como unidade de sentido formulado, em função de uma imagem de leitor virtual, temos, de outro, o efeito-leitor como unidade (imaginária) de um sentido lido. [...] o efeito-leitor é uma função do sujeito como a função-autor. (ORLANDI, 2005, p. 65-66)
Diz a autora que o efeito-leitor resulta da maneira como um autor textualiza, formula coisas a partir de uma certa discursividade. Dessa maneira, o autor produzirá possibilidades de sentido que constituirão uma posição de um sujeito que, ao ler, “entrará nessas possibilidades constituindo um efeito-leitor, produzindo um efeito-leitor. O sujeito incorporará isso como sendo esse efeito-leitor.” (ORLANDI, 2006, p. 37).
O texto da campanha da Prefeitura de Pouso Alegre é formulado a partir de uma instituição do Estado encarregada de gerenciar a cidade. O texto produz, enquanto efeito, um leitor que é o sujeito capitalista de direitos e deveres. Um sujeito que, supostamente, já está no caminho certo e é capaz de mostrar esse caminho a outros.
A construção desse efeito-leitor se dá quando se remete o texto as suas condições de produção e circulação: banners e outdoors de autoria da prefeitura colocados estrategicamente em postes próximos a semáforos. Os possíveis leitores são motoristas e pedestres, cidadãos a caminho do trabalho. Trabalhadores que pagam impostos e são úteis à sociedade. Os textos encontram-se nos semáforos porque também são locais bastante frequentados pela população em situação de rua. Nos semáforos eles pedem as esmolas, mas eles são excluídos enquanto possíveis leitores deste texto. O texto da campanha não conversa com eles.
Se pensarmos em termos discursivos, não dar esmola já é mostrar o caminho que a Prefeitura pretende mostrar. O dinheiro precisa ser ganho com o trabalho. Não importa a questão pragmática ou empírica envolvida na ordem do enunciado, mas a construção social dos sentidos em termos de um efeito imaginário ideológico que cola a linguagem com o mundo.
Pelo efeito-leitor só dá esmola quem tem dinheiro, se tem dinheiro é porque trabalha. Trabalhar é o caminho da ou para a cidadania, o futuro, o acolhimento, a oportunidade, a dignidade e a liberdade. Orlandi (2004) diz que o sujeito que não vai à escola é por ela significado. Podemos parafrasear dizendo que o sujeito que não trabalha é pelo trabalho significado. Este é um dos modos de subjetivação do sujeito pelo Estado na contemporaneidade.
Um modo contraditório, paradoxal, porque o enunciado não dê esmola, mostre o caminho já traz no próprio termo esmola o discurso religioso cristão. Não dê esmola contraria para reafirmá-lo em seguida. Segundo a igreja católica, a esmola é um dos três exercícios quaresmais, junto da oração e a penitência. O discurso de organização do Estado sobredetermina esse sentido cristão de esmola e coloca em visibilidade o de caminho. Mas como essa sobredeterminação se dá? Vejamos.
Para Adorno (2016), um objeto paradoxal é caracterizado pela possibilidade de atribuição simultânea de diferentes sentidos a partir de diferentes posições sujeitos causando o efeito de não diferenciação desses sentidos/sujeitos. Isso porque o objeto paradoxal catalisa a polissemia ao admitir que diferentes posições-sujeitos se reconhecem no objeto. E esse efeito catalisador acaba por apagar, no movimento da história, a posição que sobredetermina as outras, no caso, a posição dominante, que é a posição que busca o consenso, que, no nosso caso, é o Estado, que coloca o trabalho como o sentido predominante na campanha.
Considerações finais
Ao compreender o texto da campanha, percebemos que nossa hipótese inicial, qual seja, a de que as discursividades religiosa cristã e capitalista sustentam o discurso do Estado, confirma-se. Vimos, no texto em análise, que o discurso do Estado não se direciona diretamente à nomeada população em situação de rua. Ele administra os sentidos lançando mão de discursividades outras para subjetivar seus cidadãos. E isso se dá pelo discurso e não de modo pragmático. Ao elaborar suas campanhas, o Estado funciona pela produção de consensos e, de modo hierárquico, direciona-se para a população em situação de rua, não lhes dando voz.
O discurso do Estado visa um controle sobre o social. Um controle que está na ordem do que Rancière (2009) entende por polícia: “uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos do ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa (RANCIÈRE, 2009, p. 42). Mas, o Estado falha e o sujeito resiste aos seus modos de subjetivação. Outros sentidos e outras posições-sujeito emergem da falha.
Compreender como o discurso do Estado subjetiva seus indivíduos permite ver que a liberdade não é irrestrita. A liberdade possível é a liberdade do Estado, pelo trabalho. Na sociedade, os sentidos são divididos, conflituosos, contraditórios. Nosso trabalho buscou dar visibilidade a esses sentidos e apontou para a necessidade de as políticas públicas conversarem com aqueles que elas visam atender.
Referências
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Data de Recebimento: 16/02/2022
Data de Aprovação: 25/03/2022
1 Para o autor: “o povo nada mais é que a massa indiferenciada daqueles que não têm nenhum título positivo – nem riqueza, nem virtude – mas que, no entanto, têm reconhecida a mesma liberdade que aqueles que os possuem. A gente do povo é simplesmente livre como os outros” (RANCIÈRE, 2009, p. 23). Rancière vai postular que a liberdade e, por conseguinte, a igualdade de todos para com todos é condição para se atuar na democracia.
2 Orlandi (2004) diz que há uma sobredeterminação do urbano sobre a cidade de modo que o discurso do urbano silencia o real da cidade. Essa sobredeterminação produz um efeito de verticalização das relações horizontais na cidade e esta se transforma em espaço social hierarquizado. No processo de verticalização, as diferenças, verticalizadas, significam-se pela remissão categórica a níveis de dominação.
3 Os folhetins são romances cujos capítulos eram publicados semanalmente na sequência nas últimas páginas de jornais no século XIX e XX. Eles deixavam uma espécie de gancho para a continuação da história e fazer com que o leitor compre o jornal para continuar a ler. As temáticas giravam em torno da vida e pretendiam atingir um público popular.
4 Para uma noção de silêncio, cf Orlandi (2007).
5 O termo população enunciado a partir do discurso do Estado pode ser remetido ao que Foucault (2008) denominou de biopolítica, que são práticas disciplinares que visam o conjunto dos indivíduos. Segundo o filósofo, a biopolítica é uma tecnologia de poder com várias técnicas que visam o controle de populações inteiras.
6 Cabe lembrar dos diversos trabalhos de Michel Foucault sobre o papel das instituições na formação do sujeito.